sexta-feira, fevereiro 21, 2020

E se, em vez disto, um diário?





Portei-me bem. Acontece-me muitas vezes ficar surpreendida como me porto tão bem e tanto mais quanto é de uma forma que não é comandada por mim. Nessas alturas, não posso deixar de ficar contente por haver várias centrais de comando dentro da minha cabeça. 

Depois, também por comando desconhecido, mantive-me indiferente como se nada daquilo me dissesse respeito. Indiferente. As coisas passando-se num mundo que não é o meu.

Tinha receado não poder estar livre à hora de almoço mas, afinal, estive. Fomos aos indianos que descobrimos recentemente e que, se calhar, são nepaleses. Um restaurante muito simpático, com um ambiente acolhedor, uma média luz que transmite a vontade de a gente ter conversas cúmplices, com subentendidos sussurrados não vá alguém da mesa ao lado perceber. 

A seguir, devia ir logo trabalhar mas não fui. Já sozinha, apeteceu-me entrar dentro da natureza. Não quero saber que seja uma natureza fabricada pois tudo nasceu uma primeira vez e não interessa se a semente voou ou se alguém a pôs lá, o que interessa é se os pássaros a adoptam como sua casa e se a minha alma a adopta como seu refúgio. A seguir fui ver a livraria pequenina e não digo se me deixei ou não tentar que não sou masoquista, só digo que estar lá também deve ser equivalente a meditar pois não apenas me sinto tranquila e desligada do mundo enquanto lá estou como saio de lá revigorada.

Olhei para o relógio e pensei que devia ir. Mas não fui. De novo pelos caminhos que serpenteiam sob a copa das grandes árvores, dirigi-me à outra livraria. Aí não andei apenas de roda dos livros. Andei a passar a mão pela seda da túnica, a ver as caixinhas de comprimidos com motivos de pinturas, a experimentar o canto dos passarinhos de peluches, sempre com vontade de trazer outro, a passar a mão pelo vidro macio da meia esfera que tem flores dentro. Feliz e livre como um passarinho. Mas, na realidade, um passarinho de faz de conta.

Daí segui para o menos um, para a exposição dos projectos para a expansão dos jardins. Um dos projectos é de pessoa conhecida e gostava que fosse o projecto vencedor. Mas são todos bons. Andei por lá, por entre os jovens que fotografavam as maquetes e viam atentamente os desenhos. Gostei de andar entre eles. O que diziam, como riam, o interesse com que viam os trabalhos dos grandes, agradou-me muito. Faltou-me a minha máquina fotográfica. Tenho a certeza que podia tê-los fotografado de longe e de perto que não me teriam visto, tão absortos estavam uns nos outros e no que viam. Assim, incompleta e sem máquina, ainda mais invisível fui.

A contragosto lá saí para ir trabalhar. 

E trabalhei como se não fosse aquela que tinha andado no jardim e a deambular por uma exposição de arquitectura. Ainda não me habituei a não me surpreender com a gente desconhecida que vive dentro de mim.

Depois, à vinda para casa, os dias já grandinhos, a luz fugidia, as árvores a transformarem-se em silhuetas que aos poucos se vão dissolvendo na penumbra, a música boa, baixinho, vagarosa. Em horas assim não suporto música rápida ou ruidosa, apenas música lenta, mais silêncio que som. Não quero notícias nem vida real. Deslizo na estrada mas é como se deslizasse sobre planos abstractos, numa elegante geometria analítica que se fundisse com memórias, com imaginação, com palavras que nascem soltas e se misturam umas com as outras e se fundem com as sombras e com as luzes. Ocorreu-me que poderia começar um diário de verdade, onde pudesse falar sem enigmas, onde escrevesse os nomes que aqui não ouso, onde dissesse por extenso o nome do lobo e a saudade que tenho do seu uivo, onde me aventurasse por becos e vielas e labirintos, onde soltasse o perfume das flores que crescem dentro de mim, onde abrisse as mãos e o coração sob as palavras para as ajudar a voar para um lugar habitado por anjos e mistérios.

Depois cheguei a casa e agora estou aqui, no escurinho, a escrever e a ouvir música e a escolher fotografias de flores mas com pena de não estar antes a escrever um diário de verdade, cheio de bichos inventados, cheio de histórias sonhadas, cheio de palavras que nunca seriam ditas.


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Desejo-lhe uma happy friday.

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4 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

A isso se chama viver e, por isso, estar desperta para a vida circundante que surge sempre como uma caixinha cheia de pequenas ou grandes novidades que movem essa bela capacidade chamada curiosidade.

Um rico dia.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Acresce que tenho um certo sentido prático: tenho sempre presente a ideia de que o que hoje tenho à disposição para ver e apreciar um dia vou deixar de ter. Frequento muitos sítios e conheço muita gente porque a vida profissional tal o proporciona. Por isso, penso que um dia que me veja confrontada com um estilo de vida mais simples, vou ter muito menos com que me entreter. Por isso, aproveito o quanto posso. E sempre sentindo-me feliz e agradecida o que faz com que as sensações sejam até melhor.

Abraço, Francisco.

E um belo sábado!

Gato Aurélio disse...

"Falei em memórias. Mas irá esta crónica revelar-se como tal? Só o tempo o dirá. Neste momento, ao fim de uma página, parece-me mais um diário do que umas memórias. Bom, deixá-lo então ser um diário. Que pena não ter mantido um antes, que registo não teria sido! Mas os principais eventos da minha vida são já passados e agora só me resta «recordar na tranquilidade».[...] É claro que nunca falei disto às damas e cavalheiros do teatro. Seria uma risota pegada."
https://gatoaurelio.blogspot.com/2020/02/papel-pardo.html

bom dia inútil!
:-)

Um Jeito Manso disse...

Olá Gata,

Gostei de ler. Gosto de diários. Gosto do que se revela e do que se esconde nos diários. Obrigada pela ligação às suas palavras.

Uma semana feliz.