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sexta-feira, setembro 11, 2020

¿Quién los ve andar por la ciudad si todos están ciegos ?





Passei quase todo o dia na rua, debaixo do alpendre. Vesti uma blusinha de alças, desencantei uns calções curtinhos e, descalça, estive a trabalhar. Quando tive reuniões, vesti uma blusa de manga curta por cima do top. Pus uns brincos, passei um gloss nos lábios. Da cintura para cima fiquei decente, com sorte até executiva. No resto, fiquei como estava (ie, como sou). 


Ao fim do dia, reguei. Descalça, os pés sentindo a relva morna, macia, molhada. Depois, reclinei-me na espreguiçadeira. Descobri um recanto na relva, perto do alpendre, em que a privacidade é total. Isso agradou-me muito. Estive a apanhar o restinho de sol e a ler. Quando o sol se pôs, ficou frio de repente. Vim para casa a pensar que teria que vestir outra coisa. Depois de andar há que tempos vestida à fresca parece que já nem sei bem o que hei-de vestir por casa. Felizmente, a casa é bem isolada, não estava fria. E ainda estou vestida como estava.

Durante o dia passaram-se várias coisas mas digno de destaque, que me lembre, nada. Só as guerras do costume. Mas alguma coisa em mim parece ter-se distanciado de tudo o que me parece disparatado ou inútil. 


Durante uma das reuniões, estava a ver que um se mostrava desligado, desinteressado. Tem outras ideias, outras ambições. Quando me pareceu oportuno, dirigi-me a ele, pedi que expressasse objectivamente qual a sua ideia. Entrou em contradições, não disse coisa com coisa. Há pessoas que simplesmente são do contra, mesmo que não tenham melhor alternativa. Ou que, alimentando sonhos de ávida ambição, não conseguem esconder a frustração se alguém lhes cerceia o caminho. Sinto alguma impaciência para lidar com pessoas assim mas, ao mesmo tempo, alguma pena. São pessoas que tendem a entusiasmar-se muito com as expectativas que criam para, pouco depois, caírem no maior desalento. São pessoas emocionalmente instáveis que, geralmente, contribuem para aumentar os problemas, não para resolvê-los. Mas não o percebem pelo que, em cima de tudo, se sentem injustiçados, acham sempre que, se fossem eles, fariam tudo bem e que, inexplicavelmente, os outros não entregam o destino das coisas nas suas mãos. Não há pachorra. Mas, fazer o quê?, tenho que desencantá-la. O que me vale é que, mal acaba a reunião, me desligo.

Como tinha dito, voltei ao Narciso e Goldmund. Reclinada ao sol, foi com prazer que estive a ler a bela escrita de Hermann Hesse. Até dobrei a ponta de uma folha para hoje aqui a transcrever. Mas ao fim do dia, o meu marido, ao chegar a casa, resolveu convencer-me a ir ao supermercado, que seria a melhor hora, o supermercado vazio, etc. Não fazia parte dos meus planos mas lá fui. Claro que, com este enxerto, o meu programa de festas acabou por dar para tarde. Não conhecia ainda bem aquele supermercado. Hoje consegui vê-lo com mais calma. Gostei. Tem bons pães e isso para mim é um factor de diferenciação. E tem boa fruta.


Chegámos tarde a casa. Como comprámos muita coisa, a seguir foi aquele protocolo de lavar tudo, de deitar embalagens fora, de pôr coisas em quarentena, uma coisa que cansa e maça e desgasta. Como vamos aguentar isto por mais uns meses? Raios partam o merdinhas do corona. Para esse é que já não há mesmo pachorra nenhuma.

Resultado: agora não dou com o livro e já é tarde para, a esta linda hora, ainda ir desencadear uma caça ao tesouro. Na volta, ainda ficou lá fora. Gostava de aqui ter, para partilhar convosco, algumas das belas palavras que, ao fim do dia, dentro de mim, fizeram companhia ao canto dos pássaros. Parece que as coisas só são verdadeiramente boas quando as partilhamos, não é? Eu, pelo menos, quando gosto de alguma coisa, gosto que outros possam degustar aquilo que me parece pitéu bom demais para uma única boca.

Como não tenho, vou em busca de palavras ditas que me soem bem. Podem aqui parecer deslocadas mas será mera aparência. É que podia não ter escrito nada -- porque nada de relevante disse -- e ter apenas partilhado o Los amantes de Cortázar por ele mesmo (poema de que extraí o título deste post) ou as curiosas fotografias de Boris Mikhailov ou a Melody Gardot a interpretar o Love me like a river does. E teria sido suficiente. Tudo sem muito a ver umas coisas com as outras tirando o facto de eu gostar de qualquer delas.

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Desejo-vos um dia feliz.

quarta-feira, junho 19, 2019

Gestos, essa arquitectura do nada





As minhas sobrancelhas não têm história. São como são de nascença, sem depilação, sem desenhos por cima, sem reformatação, sem coloração. 

Quando vejo que se usam sobrancelhas bem definidas, até a atirar para o farto, bem penteadas e marcantes, sobrancelhas que são, em si, um statement, e olho para as minhas, tão o oposto, tão discretas, tão claras e despercebidas, penso que um dia hei-de experimentar escurecê-las um pouco, engrossá-las -- tudo na base do efémero, claro, com um lápis castanho para poder sair com a lavagem -- só para ver se a minha personalidade muda. E depois olharia de frente e inclinaria levemente a cabeça a ver se impunha respeito. Li que sim, que produz bom efeito.

Deveria fazê-lo primeiro em casa, ao espelho, ensaiar a pose, testar se resulta.

Só que sou fútil por natureza. Se reconfigurasse as sobrancelhas e me olhasse com sobranceria ao espelho estou em crer que, em vez de me sentir intimidada pelo respeito que o olhar e a atitude imporiam, haveria de me pôr a prestar atenção a pormenores que não vinham nada ao caso: que talvez o tom de castanho devesse ter sido mais arruivado em vez de tão soturno, que talvez as devesse ter alongado mais em vez de manter a curvatura original, que devia era ter disfarçado a cicatriz, que devia era ter apanhado o cabelo, quiçá posto um chapéu, talvez aquele chapéu basco com a fita encarnada. 

Portanto, porque intimamente ainda não acreditei que seja interessante impressionar alguém com base em situações não naturais e espontâneas, ainda não mexi nas minhas sobrancelhas. Também receio que, sem querer, ao mudar algo em mim, sem querer desvende um ser misterioso que me habita e que só estava à espera de uma oportunidade para se revelar.

Mas, agora que escrevo isto, penso que mal também não fazia e que talvez fosse mesmo interessante perceber se me sentiria diferente se me olhasse ao espelho e me visse com umas sobrancelhas à Frida. Como se sente uma mulher que tem umas sobrancelhas espessas e insolentes como asas de bicho peludo, descarado, mal intencionado?

Vou ali fazer isso e já venho. Um momento, por favor. Só espero é que não aconteça nenhum bruxedo.

Tenho medo. Tenham medo.

Já fui e já estou de volta, quase horrorizada. Para começar, não encontrei nenhum lápis castanho ou, sequer, preto. Encontrei um verde e um azul escuro. Optei pelo azul que é marinho. Pintei-as e juntei-as. À medida que as ia pintando, quase horrorizada ia vendo que parecia estar a deixar de ser eu. 

Quando as acabei e ficaram azuis espessas e escuras, juntas ao meio, eu era outra. Impossível ser eu, manter a mesma maneira de ser, com tais sobrancelhas. Fiquei com um ar mais do que rural, um ar primitivo. A mulher primitiva que, com ar sério, me olhava não era eu, era alguém saído de outro tempo, com uma outra maneira de ser, perigosa, castigadora. Ainda pensei fotografar mas não consegui. Peguei numa toalhita e limpei tudo. Aquela podia ter sido eu há muitos anos, a viver numa gruta, talvez na minha misteriosa gruta, alimentando-me de bagas e frutas e dormindo no meio de lobos. Aliás, talvez seja isso. Talvez fosse isso que vi quando me vi ao espelho, uma mulher lobo, com umas sobrancelhas azuis prestes a voar.

E tudo isto é uma conversa que parece não ter sentido, eu sei -- mas, por acaso, até acho que tem. O nosso corpo condiciona a nossa maneira de estar. Talvez não seja por acaso que, em algumas línguas, ser e estar se dizem da mesma maneira. E, portanto, quero eu dizer, o nosso corpo condiciona a nossa maneira de estar e, logo, de ser. E poderia dar alguns exemplos. Só não os dou porque, sem querer, iria descrever-me fisicamente e, francamente, tenho mais que fazer -- e vocês certamente também.


E apeteceu-me escrever isto depois de ouvir a crónica de Fernando Alves, 'O segredo está nas sobrancelhas' que me foi enviado e que muito agradeço. Tanta a gentileza.

[Um dia ainda gostava de ouvir um texto meu lido pelo Fernando Alves. Será que iria ficar presa à voz dele, esperando o desenlace, o arrepio final, o poema a varrer-me a pele? Como se as palavras estivessem a nascer dele?]

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E, claro, fui conhecer o poema por ele referido 


Amo-te por sobrancelhas, por cabelo, debato-te em corredores
branquísimos onde se jogam as fontes da luz,
Discuto-te a cada nome, arranco-te com delicadeza de cicatriz,
vou pondo no teu cabelo cinzas de relâmpago
e fitas que dormiam na chuva.
Não quero que tenhas uma forma, que sejas
precisamente o que vem por trás de tua mão,
porque a água, considera a água, e os leões
quando se dissolvem no açúcar da fábula,
e os gestos, essa arquitectura do nada,
acendendo as lâmpadas a meio do encontro.

Tudo amanhã é a ardósia onde te invento e desenho.
pronto a apagar-te, assim não és, nem tampouco
com esse cabelo liso, esse sorriso.

Procuro a tua súmula, o bordo da taça onde o vinho
é também a lua e o espelho,
procuro essa linha que faz tremer um homem
numa galería de museu.

Além disso quero-te, e faz tempo e frio.

[Júlio Cortázar]


E dias felizes para quem aí está desse lado. 

[E saibam que estou a olhar para vocês com a minha cabeça levemente inclinada na vossa direcção]