quarta-feira, agosto 31, 2022

Marta Temido e a Saúde em Portugal*

 

Há poucos médicos, poucos enfermeiros e poucos técnicos de electromedicina no país. Quem pode pagar mais rouba-os a quem tem mais limitações.

A partir daqui, começam os problemas.

Para resolver o assunto, há que atacar a raiz do problema. Alargar o número de vagas nos estabelecimentos de ensino é uma solução de médio/longo prazo. A curto prazo, há que 'importá-los'. Imigrantes nestas especialidades deveriam ser fortemente incentivados a vir e ficar por cá.

Li a sugestão do M. J. Marmelo de que quem estuda em estabelecimentos de ensino público seja obrigado a prestar serviço no SNS durante um número mínimo de anos. Parecer-me-ia uma boa solução. Não resolveria tudo mas todas as ajudas são boas.

Já aqui falei numa outra questão. A escassez de recursos humanos nas equipas obriga a que os que estão presentes tenham que fazer horas extraordinárias. Segundo a legislação em vigor e segundo os regulamentos em vigor nos diferentes acordos de trabalho não apenas há limite ao número de horas suplementares efectuadas como, consoante o número de horas, em especial à noite e/ou ao fim de semana, se adquire direito a gozar descansos compensatórios. Só que, se as pessoas gozam esses dias a que têm direito, outros terão que fazer trabalho suplementar para colmatar as faltas. É uma bola de neve. É um círculo vicioso.

Mesmo que não existissem pessoas a menos, há férias, há baixas. Só se evitam horas extraordinárias com equipas folgadas e férias muito bem distribuídas. 

Ora as equipas estão deficitárias e, com a pandemia, não houve como ter pessoal clínico em férias criteriosamente calendarizadas. Foi um toque a reunir. Todos eram poucos. Acumularam-se horas a mais, dias de férias e compensação por gozar a mais. Se agora os gozam, fecham urgências, ficam os serviços deficitários. Se não os gozam, entram em burnout.

O desastre teria, pois, que acontecer.

A única hipótese seria contratar gente para compor equipas enquanto os outros folgam. Só que não há gente disponível para isso. E, quando os há, ou são inexperientes ou ganham fortunas.

Com o SNS em exaustão (primeiro pela Covid e, depois da Covid, a apareceram todos os achaques resultantes de acompanhamento e diagnósticos tardios), muitos profissionais não aguentaram, fugiram para os privados. 

Poder-se-ia pensar que há nisto também algum maquiavelismo por parte dos privados: roubam ao público para o público ir ao tapete e eles, privados, terem maior clientela. Contudo, não o creio. Quem já tem seguros de saúde ou protocolos como a ADSE já vai maioritariamente ao privado. Os privados não têm falta de clientes. Os que vão ao SNS são maioritariamente os que não têm como ir aos privados. 

Mas cada vez as pessoas vivem mais anos e têm mais doenças. Além disso, ainda acontece que, quando a situação é grave, as pessoas preferem os hospitais públicos. 

Aconteceu-me estar numa clínica privada e ser-me diagnosticado um enfarte agudo de miocárdio. Activaram o protocolo do INEM e perguntaram para onde queria ir. Não hesitei, quis um hospital público. Assisti por dentro à confusão das urgências, à situação limite que se vive num SO, vi as imensas limitações. Na realidade não tive um enfarte mas verificou-se uma condição que fez com que tivesse que passar a ser seguida em Cardiologia. E voltei ao privado. Mas voltei porque posso. 

E, portanto, o SNS é o sistema a quem tudo se exige e que se encontra espalmado entre a falta de recursos humanos, por um lado, e falta de dinheiro, por outro.

No entanto, se houvesse gente suficiente e a possibilidade de exercer a gestão sem ser em situação de carência e crise, se calhar não seria preciso mais dinheiro.

Assim, é muito difícil. Tem solução. Tudo tem. Já o referi acima: há que injectar gente nas equipas, via imigração. Uma vez as equipas completas e com gente de reserva, pô-los a gozar as férias e as compensações em atraso. Depois organizar, repensar, reinventar. Há que pensar a longo prazo: abrir vagas nas escolas. E há que ter sangue frio e não ceder a pressões.

Portugal é ainda um país corporativista. Há coisas que são culturais, que atravessam gerações. Há que ouvir os médicos e os enfermeiros mas não ceder, por ceder, às suas múltiplas exigências, tantas vezes classistas, tantas vezes desprovidas de racionalidade. Têm razão em muitas coisas mas, pelo efectivo poder de pressão que detêm, muitas vezes exercem o que parece ser quase chantagem e não o que se exigiria, espírito de colaboração..

Ouvi há pouco na televisão que o SNS foi criado numa altura em que os problemas de saúde eram, sobretudo, agudos e com causa única e que hoje a situação é o contrário: a prevalência é de doenças crónicas e origens variadas, obrigando a tratamentos prolongados através de equipas cruzadas. Como eu, pessoas que têm que continuar a ser seguidas, se calhar para o resto da vida, há aos montes. E os hospitais e os centros de saúde não foram concebidos ou dimensionados para isso Ou seja, estamos perante uma séria questão estrutural que requer estudos e uma implementação demorada e complexa.

Face a isto, o que dizer de Marta Temido?

Do que lhe vi, só tenho a dizer muito bem. É uma pessoa resistente, ponderada, com uma imensa capacidade de trabalho. O que ela aguentou, a forma inteligente e firme como o aguentou, faz dela uma heroína. Penso que só temos a agradecer-lhe. Devemos-lhe a forma objectiva e racional, tantas vezes de improviso (porque ainda não havia ciência comprovada), como enfrentámos a pandemia, devemos-lhe a forma coesa como a sociedade soube adoptar os cuidados que se iam sabendo eficazes. Devemo-lo a ela bem como a Graça Freitas ou a Lacerda Sales que a coadjuvaram de forma leal e coerente.

Não há soluções mágicas para a Saúde e é bom que quem suceder a Marta Temido venha com humildade, nunca se esquecendo de louvar o trabalho meritório da sua antecessora que enfrentou uma pandemia terrível, com o SNS sempre disponível.

Agora estamos a pagar o tremendo esforço do período da pandemia, as consequências do corporativismo das classes clínicas, as consequências do fortalecimento dos sectores dos seguros de saúde e da saúde privada e as consequências da mudança de paradigma dos cuidados de saúde necessários -- mas, ingratos como somos, não faltará quem se esqueça disso e se apresse a crucificá-la.

Eu não me esqueço. Vi-a à beira da exaustão, vi-a à beira das lágrimas, via-a a envelhecer, a pele a ir ficando mais manchada e mais macilenta. E sempre corajosa, sempre presente. Do que ela abdicou a nível familiar nem consigo imaginar. Nunca a ouvimos queixar-se. E, por tudo isto e por tudo o que acho que lhe devemos, aqui fica o meu reconhecimento pela sua extraordinária dedicação e competência como Ministra da Saúde. Muito obrigada, Marta Temido.

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* Peço desculpa se o título deste post parece formal ou pomposo pois sei que o que escrevi é incompleto, superficial, coisa de leiga. Simplesmente, não me ocorreu outro. 

Pensei em Na despedida de Marta Temido ou Ficamos de melhor saúde depois da saída de Marta Temido? ou, ainda, Sai Marta, alegram-se as comadres. Mas, não sei porquê, apeteceu-me o comedimento.

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Desejo-vos uma boa quarta-feira

Saúde. Justiça. Generosidade. Paz.

terça-feira, agosto 30, 2022

Por causa de um mocho inspirado (ou coruja?) eu e o urso cabeludo chegámos a casa feitos num oito

 

Agora andamos entre o campo e os limites da cidade. Ao fim do dia, saímos do campo. Escuso de dizer que, ao aproximar-nos da big city, me apeteceu algo. Nada de novo e o meu marido, embora contrariado, fez-me a vontade. Faz de conta que estou grávida e estou de desejos. Por acaso nunca tive. Mas, se tivesse tido, acho que deveria ter sido satisfeita para as crianças não virem aguadas. Por isso, fomos para o meio da cidade. Lá chegada, hesitei entre o gianduja e o chocolate com rum. 

Optei pelo primeiro embora infeliz por, uma vez mais, não haver o de kumquat que esse, sim, me eleva aos céus. 

Adiante.

A seguir, pensámos no que seria o jantar. Tinha solução mas o meu marido estava mais numa de sushi. Resolvemos então ir ao japonês da 5 de Outubro. Mas não o encontrámos. Mais à frente vimos um outro. Pensámos que, na volta, era o mesmo com outro nome e outro décor e umas portas depois. Afinal nada a ver. Fui lá dentro. Incaracterístico. Se não fosse por já ser tarde e já ter metido na cabeça que a janta ia ser peixinho cru tinha virado costas. Assim, arranjei duas caixinhas deles. 

Quando chegámos, estava a rega a bombar. Há umas semanas o meu marido quis reduzir pois não é altura para gastações de água. Andou de roda da geringonça e veio de lá dizendo que já estava. Pois não estava, não senhor. No dia seguinte andou a ver se descobria os manuais. Não descobriu mas fez nova tentativa. Debalde. Dias depois, quando o jardineiro veio, contei-lhe que não queríamos tanta rega e que não conseguíamos anular um dos programas. Esteve lá de roda, ligou ao patrão e veio de lá a dizer que já estava. Qual o quê? Não se suspende nem por mais uma. Um sistema de rega com vontade própria.

Hoje, ao chegarmos, calhou estar a esguinchar na direcção do portão. Tentámos passar por entre os pingos da dita cuja mas nada, apanhámos banho a sério, nós dois e o urso cabeludo. O meu marido solta palavrões, invectivando os aspersores, a central, o jardineiro, e o mundo em geral. Eu e o dog pela trela esquivamo-nos a correr para dentro de casa mas, ainda assim, tive que pôr a blusa a secar, ele, que tem que trazer a tralha do carro, vem molhado a sério.

Adiante..

Agora que escrevo o canito já dorme a sono solto. Passado um bocado de chegar a casa, comeu como se não houvesse amanhã, arrotou que se ouviu a milhas e veio de lá de dentro quase a trocar as patas para se jogar no chão do corredor, aqui ao pé da sala, caindo a dormir.

A noite passada, in heaven, foi noite de S. João para ele e para nós dois. Habitualmente o cabelos dorme na salinha contígua ao nosso quarto. Como sempre, os vidros ficam abertos pois, para mim, a aragem fresca da madrugada é uma fonte de vida, não passo sem. 

Eis senão quando um sonoro uhuuuuuu-u, uhuuuuuu-u mesmo ao lado das portadas. Não sei se era mocho ou coruja mas estava. de certeza, na azinheira encostada à casa ou, então, no beiral sobre a portada. Escusado será dizer que o animal de guarda que pensa que é tudo dele se passou dos carretos. Estava possesso como se a casa estivesse prestes a ser invadida por um exército de larápios. Ladrou, saltou, doidão da vida. Do lado de lá, o bicho calava-se momentaneamente para, logo de seguida, atirar nova provocação: uhuuuuuu-u, uhuuuuuu-u. Eu dizia com calma: 'Está tudo bem, deixa, é só um passarinho', mas ele nada. Um ladrava e o outro piava (se é que aquilo encaixava na categoria dos piares). O meu marido, já passado, fazia um sonoro schiu! acompanhado de um enfurecido 'Tá calado!'. Os pernoitantes estavam do outro lado da casa, não ouviram nem mocho nem coruja, só a fera a ladrar. 

Por fim, a ave lá se calou mas o bicho-cão não conseguia calar-se, nem sei se já não ladrava a sonhar. Resultado: espertei. Uma espertina desgraçada. O meu marido adormeceu logo a seguir, eu é que fiquei até de madrugada. Uma seca das valentes, detesto noites em claro.

Pior é ter uma reunião complicada de manhã quando estava capaz era de me enfiar debaixo dos lençóis. Mas é o que é. Acho que consegui fazer de conta que estava bem. A seguir ao almoço pensei que conseguiria descansar. Tinha só que enviar uns quantos mails e, a seguir, poderia descansar um pouco. Sim, sim. Logo a seguir um telefonema. Pronto, descanso à vida.

Portanto, hoje está o felpudo e estou eu: perdidos de sono. Vidas duras as nossas.

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E, assim sendo, com vossa licencinha, vou pregar para outra freguesia.

Saúde. Bondade. Paz.

segunda-feira, agosto 29, 2022

Breve crónica de um dia in heaven com receita de ossobuco dentro.

E citações inteligentes de Einstein, só porque sim

 


Os esquilos estão certamente habituados ao silêncio, ao canto dos pássaros, ao sino que toca ao longe. 

Agora, quando aqui estamos, como não estamos só os dois, há muito ruído, os meninos falam muito alto, há sempre alguém à procura de alguém, alguém a chamar alguém. 

De manhã, varremos no lado da casa perto da fonte e da pedra grande. Vários carrinhos de mão cheios de folhas secas, de bolotas, de caruma, de pinhas roídas. Toda a gente a trabalhar. O meu marido lá por baixo desbastando árvores e nós todos, cá em cima, varrendo. Em alguns sítios já só lá vai de ancinho, que a caruma ganhou altura e se mistura com terra.

De esquilos nem sinal. Devem estar abrigados, intrigados, no alto dos cedros ou dos pinheiros, esperando que chegue a noite para virem cá a baixo tentar perceber o que se passa. Mas devem andar na zona mais baixa do terreno, que foi onde o meu marido viu o último. Já devem ter percebido que aqui em cima há arraial todo o santo dia.

O dia esteve muito bom, não excessivamente quente. À tarde a luz está dourada. Tenho tirado poucas fotografias pois, quando estivemos no Algarve, levava quer o cão quer a máquina para a praia. Colocava a máquina dentro do cesto. Mas foi naqueles dias de calores excessivos. O urso felpudo, encalorado, coitado, escavava freneticamente até encontrar areia molhada para nela se deitar. Nesse exercício de escavação, atirava areia pelos ares a uma velocidade e distância consideráveis. Muita dessa areia entrou para a cesta, mais concretamente para cima da máquina fotográfica. Resultado: o zoom não funciona, deve ter grãos de areia no mecanismo. Ora tirar fotografias sem usar a objectiva é coisa contranatura, não dá.

Os figos ressentiram-se com os calores excessivos. Não cresceram. Estão muito pequenos embora doces. As folhas estão a cair como se estivéssemos no fim do verão. Há vários cachos de uvas que também sofrem do mesmo mal. Os bagos pequenos, já quase secos. Não chove.

Para o jantar de ontem fiz douradas assadas e uma salada de choco com tinta. Acompanhou-se com batatas roxas cozidas com casca e, no final, temperadas com azeite, alho picado e coentros. Para o almoço de hoje, voltei a fazer uma salada de verão. Para o jantar fiz ossobuco.

Fiz assim o ossobuco:

De manhã, no tacho (um dos maiores que tenho), coloquei azeite, vinho tinto, cebolas cortadas grosseiramente, dentes de alho, folhas de louro, um pouco de alecrim e um pouco de sal. Tapei para a carne ficar a marinar. Eram várias rodelas assaz grandes de osso com carne em volta. Perto das quatro da tarde, juntei salsa, coentros, 2 alhos franceses, mais cebola, e liguei o lume. Depois de levantar fervura, baixei. Ficou até às sete e tal a cozinhar em lume fraquíssimo. Depois desliguei o lume e ficou a repousar.

Perto da hora de jantar, escorri o líquido do molho, juntei uma pinga de água para ficar a ser o dobro da quantidade de água. Juntei duas cenouras aos bocadinhos, salsa. Deixei que fervesse um bocado para amaciar a cenoura. Juntei uma maçã aos cubinhos (para cortar a gordura do molho) e juntei o arroz. Depois de ferver, baixei o lume e deixei a cozinhar até o arroz absorver todo o caldo.

Entretanto, tirei as rodelas de carne para fora do tacho, tirei o pauzinho do alecrim e as folhas de louro e, com a varinha, triturei as cebolas, a salsa e os coentros, os alhos franceses. Ficou um molho espesso. Juntei um pouco de vinagre balsâmico e mexi bem. Voltei a colocar a carne no tacho, agora mergulhada no molho espesso.

Acompanhou a carne quer o arroz, quer salada de alface a canónigos quer metades de pera em calda.


Só mais um pormenor: não são apenas os esquilos que estranham o barulho. Penso que o urso felpudo também se ressente um pouco do movimento que agora há cá em casa. Habitualmente, na maior parte do tempo, estava apenas com os donos que estão a trabalhar, por vezes não presentes. E, se estão, não correm, não brincam o tempo todo, e deixam-no gozar a sua vidinha como muito bem lhe apetece. Agora, por estes dias, há sempre qualquer coisa a acontecer aqui em casa e ele anda de um para outro, brinca com um, brinca com outro, feliz, feliz da vida. Ou, então, é o permanente desafio de guardar a casa: sai a correr de cada vez que algum som lhe chega do lado da estrada. Hoje de tarde, por exemplo, o som de uns cavalos deixou-o ao rubro. Correu, correu, ladrou, um frenesim. Pois não sei se por tudo isso, agora à noite, certamente cansado, foi deitar-se atrás do sofá, quase entalado entre as costas do mesmo e a parede. O meu marido há bocado passou por aqui, muito intrigado que não o via em lado nenhum. Pudera. Ali ninguém o incomoda de certeza absoluta. Encontrou ali um refúgio, provavelmente a ver se tem sossego. Fofo.

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E agora cheguei ao Youtube e tinha um vídeo com citações interessantes do Einstein. Não vêm a propósito mas isso não me parece grave até porque raciocínios inteligentes vêm sempre a propósito. O Einstein é aqui sempre muito bem vindo, às horas que lhe apetecer aparecer. 

Quotes Of Albert Einstein _ An Intelligent Person Avoids 3 Things

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Fotografias feitas aqui, in heaven

Gautier Capuçon interpreta o O oboé de Gabriel do filme  "A Missão" (Ennio Morricone)


NB: A tecla do H continua renitente em colaborar. Por isso, se derem por falta da letra já sabem do que é: mais uma greve de verão.

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Desejo-vos uma boa semana a começar já nesta segunda-feira

Saúde. Serenidade. Paz.

domingo, agosto 28, 2022

Um animal que usa desodorizante e lava os tomatinhos. Uns cavalos que se rebolam a rir.

E, peço desculpa pelo despropósito, mas não é que a Suzana Vieira já fez 80 anos...? Dá para acreditar?

 

Lá mais abaixo, depois da curva da estrada, há uns currais. Ao fim da tarde, o dono deve limpá-los pois, se o vento está daquele lado, chega até aqui cheiro a gado, a estrume. Assim aconteceu hoje. Ao descer os degraus para a sala de baixo, que tinha a janela a bascular para arejar a casa, senti o cheiro e disse: 'Cheira a animal,,,'. Nesse instante cruzou-se comigo, a correr, o menino mais velho que tinha interrompido o visionamento do jogo de futebol para ir levar qualquer coisa à mãe. Ao ouvir o que eu tinha dito, disse-me: 'Pus desodorizante...!' e seguiu a correr. Fiquei a rir sozinha durante não sei quanto tempo.

Ao contar à minha filha, ela lembrou-se da célebre história dos tomatinhos. Já a contei aqui mas talvez os que me leem hoje não sejam os mesmos que leram esse sucedido.

Era a passagem de ano e eu estava na cozinha a preparar a comida para o manjar nocturno. A minha filha tinha vindo mais cedo, estava a ajudar-me. Entretanto, era hora dos miúdos tomarem banho. O mais crescido tomou banho sozinho, deveria ter uns seis anos. Foi para o quarto, que antes era o quarto do tio, limpar-se e vestir-se enquanto, na casa de banho, a mãe dava assistência ao banho do mais novo. 

Então, quando fui preparar a salada, gritei para a minha fila: 'Olha lá, lavaste os tomatinhos?', referindo-me aos tomates cherry. Nisto, antes que ela tivesse tempo de responder, diz o puto lá do quarto: 'Claro que lavei...'.

O que nos rimos. Ainda hoje me rio.

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Tirando isso, o que tenho a dizer é que há bocado vi o mais novo rindo, rindo, quase chorando a rir. Veio mostrar-me. Estava a ver um vídeo com um cavalo que parecia cantar e rir ao mesmo tempo. O que ele se ria com o cavalo.

Andei à procura para vos mostrar e não encontrei. Mas encontrei este que também tem uns cavalos que riem à maneira

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E, ao abrir o youtube, aparece-me esta notícia surpreendente: a simpática, divertida e fogosa Suzana Vieira já fez 80 anos. Não dá para acreditar. E não digo isto apenas pela aceleração do tempo que num ápice leva uma pessoa dos quarenta para os oitenta, digo porque olho para ela e não vejo ali uma mulher de oitenta anos. Pelo menos como eu dantes achava que eram as mulheres aos 80 anos. Parece que o tempo não passa por ela. Continua bonita, alegre, com gosto na vida, com esperança de voltar a encontrar o amor. E que bem que o cabelo lhe fica assim. E que bem que os adereços em azul ou verde turquesa ficam com roupa branca.

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Há bocado o menino de onze anos dizia que gostava que eu tivesse bisnetos e dizia-me que se calhar não falta assim tanto, que talvez o irmão tenha filhos daqui por dez anos e que dez anos não é assim tanto. Tranquilizei-o e disse-lhe que pode ser que eu viva muito mais que isso, talvez vinte ou trinta ou até quarenta anos, sabe-se lá... Vi que estava a fazer contas de cabeça. Dei-lhe um beijinho. 

Ontem também disse que gostava que a bisavó conseguisse ser trisavó. A minha mãe exclamou que era bom mas que o irmão não precisava de se apressar, que ainda é muito novo para se pensar nisso.

De uma maneira ou de outra todos os meninos, de vez em quando, dão mostras de se preocupar com a finitude da vida que irá levando alguns dos que hoje se sentam à nossa mesa. Tenta falar-se disto com naturalidade. 

Para mim uma das mais extraordinárias nesta matéria passou-se também com o mais crescido.

Numa das vezes que o meu pai esteve mal e foi hospitalizado, geralmente nos últimos anos com pneumonias, os médicos pensaram que estava já nos finalmentes e informaram que, se queríamos ir despedir-nos, tinha que ser logo. Ele estava nos cuidados intensivos e só podia lá estar uma pessoa de cada vez. Larguei tudo e fui a abrir para o hospital e a minha filha também quis lá ir pra se despedir do avô. Não sei porquê, levou os miúdos. Quando ela entrou, eu fiquei cá fora com eles e com a minha mãe. O ambiente entre nós estava pesado, julgávamos que era a última vez que o víamos, e que estava por pouco. Felizmente, como tantas vezes aconteceu, dias depois estava a ter alta. A resistência daquele corpo era incrível. Mas, nessa altura, ele já estava acamado. Além disso, o barulho lá em casa fazia-lhe muita impressão pelo que, quando lá íamos ao magote, se encostava a porta do quarto. Ele já não ouvia nem via nem gostava que o vissem assim pelo que não levávamos os meninos para o pé dele. Os meninos andavam pela casa ou pelo jardim, lanchavam, brincavam uns com os outros e nós tentámos que a confusão não perturbasse o meu pai.

Pois bem. Qual não é o meu espanto quando, um belo dia, talvez um ano ou mais depois daquele dia, esse menino mais velho se sai com esta: 'Ó Tá, é verdade, tenho-me esquecido de perguntar: naquela vez o avô chegou a sobreviver...?' Fartei-me de rir. 'Ó seu maluco, seu despassarado... Claro que sim, está vivo, está lá em casa... Não estás farto de lá ir depois disso? E não reparas que dizem sempre para não se fazer barulho...?'. Pensou um pouco, 'Ah, sim...' Mas ah sim como podia ser ah não. Foi como se naquela tarde a que assistiu à nossa aflição, ele, tão pequenino ainda, tivesse feito o luto. E virado a página.

E eu acho graça a isto. Enquanto cá estamos é de aproveitar e rir porque, quando virarmos a esquina, já não estaremos cá para nos arrependermos e para gozar os bons momentinhos que não gozámos enquanto podíamos. E rapidamente perderemos a importância que tivemos para tantos dos que nos rodeavam. E isto seja aos 20, aos 30, aos 40, aos 50, aos 60, aos 70, aos 80, aos 90, aos 100 e por aí vai. Cada bocadinho de vida é para ser vivido o melhor que pudermos e soubermos. O resto é conversa.

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Desejo-vos um bom dia de domingo

Saúde. Alegria. Paz.

sábado, agosto 27, 2022

O que guardamos na carteira (e outras coisas de mulheres)

-- E Kate Moss e o seu Cosmoss --

 


Uma vez um amigo perguntou-me se eu tinha uma coisa qualquer, provavelmente chicletes. Sei que lhe disse que sim e, como não estava perto da minha carteira mas ele sim, disse-lhe que procurasse ele lá dentro. Ele, bem mandado, ia fazê-lo. Mas eis senão quando um outro, o Chico, exclamou: 'Não vás, pá. Nunca se mexe na carteira de uma mulher. É um perigo. Quando a gente lá mete a mão nunca se sabe o que lá vai encontrar'. Fartei-me de rir e pensei que, de facto, ainda bem que ele não tinha metido a mão. Poderia ter encontrado uma saqueta com um penso higiénico, por exemplo. Ou sabe-se lá que mais.

Agora já não uso carteiras tão pejadas. Carregava pesos excessivos e o pior é que, quando queria encontrar alguma coisa, era um castigo. Tinha que vir muita coisa cá para fora até que aparecesse o que queria. Agora uso geralmente uma carteirita pequena, quase redonda, em pele cor de pérola. Tenho atravessado o ano corrente sempre com ela. Ainda hoje a minha fila me disse que a bolsita já viu melhores dias e que já se arranjava outra melhor. Mas não. Agora estou assim. As coisas, se servem e me agradam, vão até ao limite. Já lá vai o tempo em que tinha uma carteira de cada cor para fazer pendant com a restante toilette. Frugalizei-me e sinto-me bem assim.

Esta que agora uso tem uma alça comprida que dá para usar à tiracolo e tem um tamanho que dá para lá meter a bolsa dos documentos que tem um sub-bolso para o dinheiro, dá para as chaves, para o telemóvel, para o pente, para um baton, para papéis variados e de origem e função desconhecidas e outros pequenos objectos não identificados. Dimensão perfeita. 

Dantes tinha um baton em framboesa, outro em rosa-praia, outro em carmim, outro só gloss para um brilhozinho rápido quando os lábios o pediam e eu tinha como satisfazer o pedido. Agora tenho só um na cor rosa framboesa light. Uso nos lábios ou como um blush, quando me apetece dar um subtil toque de rouge ao semblante.

É como a bolsa dos documentos. Passei anos a tentar a carteira ideal para documentos e dinheiros. Usava-as grandes. Ficavam gordas, obesas, mal fechavam, tantos os cartões, o dinheiro, as fotografias e sabe-se lá mais o quê. Depois passei para umas mais pequenas. Também com compartimentos para tudo e mais alguma coisa. Acabavam feitas ovo a deitar por fora. Até que numa lojinha chinesa descobri a bolsinha ideal: pequenina, de um material que parece pele mas é coisa sintética, sem trolorós. Uma bolsinha simples, sem divisórias ou pretensões, apenas um fechinho de zipar em cima. Os cartões todos juntos. De lado, um bolsinho também com fechinho onde guardo uma nota e umas moedas. Simples e eficaz. Perfeita. Dantes eram de pele, de boa qualidade, caras. Esta, que é a melhor que já tive, se custou 10€ foi muito. 

Hoje eu e a minha filha e os meninos fomos almoçar fora com a minha mãe. Às tantas, a minha filha viu que a avó tem fotografias na carteira dos documentos e do dinheiro: várias fotografias minhas, formato passe, de quando andava no liceu e uma na faculdade, fotografias dos meus primos, fotografias dos netos, fotografias do meu pai. Fiquei como sempre fico quando constato que há pessoas que conseguem conservar as coisas durante toda a vida sem nunca lhes perderem o rasto. Em tempos também tive fotografias mas tantas vezes mudei de carteira que faço lá ideia do paradeiro do que lá estava dentro. Perco o rasto às coisas e já me convenci que isso é genético, ingerível e incorrigível.

A minha mãe também conserva uma agenda com números de telefone. Está numa mesinha ao pé do telefone fixo. Se alguma vez tentei ter uma agenda assim já não sei dela. Não tenho. Nada se conserva nos sítios destinados. Se algum dos miúdos vê uma agenda onde quer que seja, logo pega nela para fazer desenhos, para brincar às empresas, para o que calhar. Depois muda-a de sítio. E depois eu esqueço-me dela. Se ficar sem o telemóvel ,perco a minha ligação com o mundo. Os únicos números que sei de cor são o do meu próprio telemóvel e o número do fixo da casa minha mãe, porque é o mesmo desde sempre, desde que eu lá morava.

Enfim, é o que é. Não vale a pena querer ser quem não sou. Creio que a minha mãe ainda alimenta alguma secreta esperança de me conseguir educar mas é uma ilusão. 

Engraçado é ver a Kate Moss a mostrar o conteúdo da sua carteira. Também sai de lá tudo e mais alguma coisa. Uma graça.

What does Kate Moss, our September 2022 cover star, keep in her bag? | Vogue France

Kate Moss is our cover girl for our September 2022 issue! In this edition, her out-of-this-world beauty is captured by Carlijn Jacobs in an exclusive fashion shoot. If, like us, you have always wondered what Kate Moss keeps in her bag, you are in luck as the supermodel, who will soon launch her own beauty brand, took part in our, "In the Bag" series, to share the secrets hidden inside her handbag!


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As fotografias que usei são obviamente de Kate Moss 
(que está prestes a lançar a sua própria linha de produtos de beleza, Cosmoss)

Kate Moss x Cosmoss | Follow Me To Cosmoss


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Desejo-vos um bom sábado
Saúde. Bom humor. Paz.

sexta-feira, agosto 26, 2022

Afinal, se calhar, um assunto ainda em aberto

 


Andava há muitos anos a pensar que tinha que encontrar um sítio. Parecia que não poderia começar sem antes ter um sítio para isso. Quando pensava, imaginava uma mesa grande. Uma flor num canto. A mesa num lugar onde eu pudesse estar isolada mas, ao mesmo tempo, não sozinha.

Era como se sem antes ter esse lugar e essa mesa nada pudesse acontecer.

Quando viemos ver esta casa, pensei que talvez esse lugar pudesse ser a antecâmara do que viria a ser o meu quarto. Agora está assim: entra-se e está esse espaço que tem uma janela que dá para o jardim. Na parede em frente da parede em que está essa janela há uma lareira e, por cima, da lareira há uma estante. A meio está a secretária. É uma secretária grande, de nogueira com tampo em pele verde embutida na madeira. Como era usada pelos meus filhos quando eram miúdos, tinha receio que riscassem ou cortassem a pele e, então, mandei fazer um tampo de vidro. Nem se dá por ele mas protege. De um lado da secretária está uma estante alta, escura, de portas de vidro. Tem agora livros de história. Naturalmente nunca abri um único. São do meu marido que, espantosamente, os acha muito interessantes. Do outro lado está a escrivaninha com alçado que nos acompanha desde sempre. É também de nogueira, folheada a raiz de nogueira. A parte de cima é fechada com portas de vidro. É nessas prateleiras que está a velhinha Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Dessa antecâmara passa-se para o quarto que tem uma saída de calor da lareira numa das paredes e um closet que é uma pequena obra de arte de marcenaria. Gosto muito deste meu quarto. Tem canteiros debaixo da janela que está ao lado da minha cama.

Pensava que ali, naquela antecâmara, que é como que um pequeno escritório, poderia estar sossegada, com luz, com conforto, com vista para o jardim. Preparada para receber a inspiração.

Mas, depois de estar arranjado, aquele espaço estava era com tudo a ver com o meu marido, não comigo. Não me vejo ali sentada, a escrever.

Portanto, o assunto, para mim, continuou em aberto.

Depois pensei que talvez pudesse ser na sala de cima. Excepto quando cá estão os miúdos, que ocupam aquele espaço para múltiplas brincadeiras, nomeadamente para brincarem às empresas ou para andarem às lutas, pouco a usamos. Há também uma secretária larga e, ainda, uma mesa. Tem também muita luz e de uma das janelas vê-se o nosso jardim e de outras vê-se o jardim da casa do lado. Poderia ser. 

Mas, não sei qual a razão, parece que não pegou. Não sei porquê nem vale a pena tentar saber. Há coisas que não se explicam.

Até que há dois dias peguei no computador e fui sentar-me na mesa de madeira que está no pátio novo, debaixo da buganvília e do jasmim amarelo. Em cima dessa mesa tenho um pequeno vaso com uma planta muito simples. 

Mal me viu ali, o ursinho felpudo veio deitar-se ao pé de mim, na terra que confina com o pátio e que também está debaixo do telheiro de ramagens verdes.

Depois fui buscar uma coisa que também é fundamental: uma bebida. Por acaso foi um chá frio de lima e gengibre. Mas podia ser qualquer outra, de preferência fresca.

E, assim instalada, abrigada, comecei a escrever. Não tinha pensado antes no que ia escrever. Simplesmente comecei. Uma ideia vaga, muito vaga sobre a personagem principal. 

Mal estava a ganhar embalagem, chegou o meu marido. Sentou-se à mesa e começou na conversa. Passado um bocado, estranhou a minha indiferença. Tive que lhe explicar que, finalmente, ao fim de cinquenta mil anos a tentar descobrir o spot que atrairia a inspiração, o tinha descoberto e mal estava a deixar que ela baixasse, tinha ele chegado para perturbar o momento. Riu-se e disse: 'Ah, então é por isso que estás aqui, camuflada'. Ou seja, para dizer a verdade, não ligou patavina. Disse que era melhor irmos dar uma volta com o cão antes que se fizesse tarte.

Portanto, interrompi e, nesse dia, já não retomei. Impossível. Ou estou imersa ou não vale a pena.

Ontem, ao fim da tarde, repeti o movimento: peguei no computador, num copo de chá frio e lá fui. Retomei. Alterei o último parágrafo pois, ao começar a escrever, a situação sofreu um twist. Fui por aí, por esse caminho que se tinha aberto. Ao pé de mim, o meu amigo cabeludo, sossegadinho, companheirão. Mas, como só começo ao fim da tarde, uma vez mais chegou o meu marido e bye bye silêncio, bye bye concentração, bye bye inspiração.

Hoje não tive tempo. Mas pior que isso, não sei por onde ir. Talvez, quando começar a escrever, o destino daquela pessoa se desenrole. A questão é que a história é mesmo sobre isso: sobre uma pessoa cuja vida se desconhece. E eu tenho que descobrir. Senão descobrir não tenho sobre o que escrever.

Uma outra preocupação. Agora está bom tempo, dá para estar ali na rua. E quando arrefecer? Vou estar encasacada com uma caneca de chá? Não creio. É que outra condição me é indispensável: tenho que estar confortável pois nada me poderá distrair. 

Portanto, resumindo: ainda não sei bem o que vai ser e como vai ser.

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As imagens são algumas das melhores do The 2022 iPhone Photography Award: a  primeira, na categoria Abstract, é de William Ainger, a segunda e a terceira,, na categoria Still Life são respectivamente de Reem Borhan e de Robin Robertis e a última, na categoria Nature é de Charlotte Mason-Mottram

Maria Bethânia interpreta Asa Branca

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Desejo-vos uma boa sexta-feira

Saúde. Partilha. Afecto. Paz.

quinta-feira, agosto 25, 2022

O algoritmo de Patrícia Gaspar, a Serra da Estrela que vai ficar melhor segundo Mariana Vieira da Silva e, já agora, a ciência dos incêndios florestais

 

Com os fins de semana passados no campo, com a família toda de férias, com o trabalho a continuar, tentando retomar o hábito da leitura e estando em fase de dar início a uma nova actividade, ando como que em suspenso sobre a realidade. Pouca televisão tenho visto e o interesse que 'as gordas' me despertam é muito relativo.

Entretanto. hoje a temperatura baixou um pouco e disseram-me uns familiares que, de tarde, entre Coimbra e o Porto, apanharam alguma chuva. Menos mal. Nada do que é preciso mas, pelo menos, não agravou a triste situação de seca prolongada.

Claro que a situação dos incêndios melhorou. Mas houve dias em que se olhava para o mapa dos fogos e havia chamas por todo o lado.

No meio desta situação dramática, em que parte do país arde, duas coisas parece terem provocado uma excitação colectiva, pelo menos junto da oposição mas, estou em crer, também junto das redes sociais: a Secretária de Estado Patrícia Gaspar ter revelado que, de acordo com os algoritmos, seria expectável que a superfície ardida fosse maior em cerca de 30% e a afirmação de Mariana Vieira da Silva sobre as melhorias que espera que ocorram depois do plano que o Governo tem para a recuperação da Serra da Estrela.

Quando leio algumas reacções, geralmente por parte de gente muito burra que fala como se fosse muito inteligente, fico irritada. 

Explico porquê.

Sobre o algoritmo: 

  • Mal fora que, perante a avassaladora progressão de sinais de que as alterações climáticas já cá estão e vieram para ficar, com consequências muito complicadas, ninguém tivesse criado modelos de previsão e análise de impactos. Mal fora. O que se espera é que geógrafos, biólogos, zoólogos, matemáticos et al se juntem em equipas de trabalho e criem algoritmos que apoiem os decisores. Com medições localizadas e linhas de tendência para temperaturas, para níveis de humidade no ar, no terreno, na vegetação, índices de florestação, homogeneidade das culturas, com indicadores reais e previstos para a velocidade do vento, etc., não será difícil prever a extensão e velocidade de propagação dos incêndios caso se verifique a pouca sorte de haver a primeira chama, a infeliz faísca, a inoportuna brasa.

O facto de Patrícia Gaspar falar nisto apenas me tranquiliza. Não estou tranquila quanto ao desastre das alterações climáticas nem quanto à dificuldade de aceder a alguns locais em que os fogos avançam imparáveis. Estou tranquila é com o facto de haver algoritmos para modelizar esta triste e perigosa realidade e termos governantes que valorizam os bons algoritmos como ferramenta de apoio à decisão.

Sobre a afirmação de Mariana Vieira da Silva:

  • Mal fora que, perante a destruição a que se assistiu na Serra da Estrela, havendo a oportunidade de mitigar os riscos e melhorar as condições de prevenção e combate aos incêndios, tal não fosse aproveitado. Introduzir espécies vegetais mais resistentes, florestar de forma racional, criar caminhos, adoptar a sério a prática dos rebanhos sapadores, ter postos de vigia melhor localizados e preparados, ter sistemas de detecção e ataque primário mais rápidos e mais eficazes -- é o que se espera. E fico mais tranquila ao ouvir a ministra dizer que a Serra da Estrela vai ficar melhor preparada para resistir a esta tendência de haver cada vez fogos florestais mais difíceis de controlar.

Por isso, penso que só gente mentecapta ou com a mente deformada pela prática da maledicência pode achar que a afirmação de Patrícia Gaspar conflitua com a de Mariana Vieira da Silva ou que alguma delas se 'espalhou' ao dizer o que disse.

Há algum tempo, recebi um mail de alguém que dizia que eu, quando falo de gente burra, pareço arrogante. Lamento que isso aconteça pois a mim própria não me vejo como arrogante. Contudo, claro, a forma como me vejo de pouco servirá se for diferente como  maioria das outras pessoas me vir. Gosto de pensar que sou humilde, que estou sempre disposta a aprender e a ouvir os argumentos dos outros. Mas há um mas, reconheço. Quando falo nos outros com quem estou sempre disposta a aprender excluo os burros, aqueles ignorantes inconscientes da sua ignorância que juntam ao seu desconhecimento das coisas de que falam o vício da maledicência.

Patrícia Gaspar e Mariana Vieira da Silva são duas pessoas competentes, preparadas para as funções que exercem, inteligentes, fortes, abnegadas na forma como se dedicam ao que fazem. Temos sorte em ter pessoas assim no nosso Governo.


Acresce que só gente com palas de lado e por cima dos olhos é que pensa que o problema dos incêndios florestais é um problema português com causas atribuíveis ao governo português. Melhor fora que assim fosse. Mas não é. É um problema que atravessa várias regiões do mundo e que, infelizmente, já entrou naquele loop em que as coisas são ao mesmo tempo causa e consequência.

Recomendo a visualização do vídeo abaixo. Tudo está muito bem explicado.

The climate science behind wildfires: why are they getting worse?

We are in an emergency. Wildfires are raging across the world as scorching temperatures and dry conditions fuel the blazes that have cost lives and destroyed livelihoods.

The combination of extreme heat, changes in our ecosystem and prolonged drought have in many regions led to the worst fires in almost a decade, and come after the IPCC handed down a damning landmark report on the climate crisis.

But technically, there are fewer wildfires than in the past – the problem now is that they are worse than ever and we are running out of time to act, as the Guardian's global environment editor, Jonathan Watts, explains

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Um dia bom

Saúde. Paz.

quarta-feira, agosto 24, 2022

Dominas o Português ou também cais nestes erros comuns? Testa o que sabes

 



Hoje tivemos festa cá em casa. Não sei se foi o último leão da série se o primeiro virgem. Quiçá é um leão virgem, uma daquelas misturas explosivas. Uma turma chegou da praia e a outra  de fora, directinhos do aeroporto para cá. Tivemos cantoria e até em marroquino se cantaram os parabéns. O bolo, encomendado pela aniversariante e entregue cá em casa, era delicioso e lindo. Quando vejo estes bolos (e já o bolo dos outros leõzinhos tinha sido obra da mesma inspirada boleira), fico sempre tentada a vencer a minha inibição e fazer nova aproximação à arte doceira.

Claro que tivemos também música pimba, 'aperta, aperta com ela', jogo da cabra-cega e um jogo de mímica que nos pôs a todos a rir a bom rir. Bem queremos que também haja bailarico mas os rapazes estão em maioria e preferem maluqueiras de outras naturezas. 

Claro que foi aquela boa disposição de sempre, conversa, risota, chinfrim, o cão maluco ora de roda de um ora de outro, todos felizes da vida. Os anos vão passando e ainda bem que cá estamos a vê-los passar. Venham mais que chegamos bem para eles.

Depois de terem saído, já aqui me fartei de rir com as fotografias e com os vídeos. Grandes malucos. Momentos que ficam na nossa memória.

Agora abranda um pouco a nível de aniversários. Nesta família parece que ninguém se lembrou de procriar nos primeiros meses do ano. E ainda bem. A ver se finalmente consigo começar a fazer um pouco de dieta.

Entretanto, lembrei-me de falar no quiz de português aos que tinham estado fora. Também ficaram surpreendidos com algumas coisas. Também eu. Pensando que ia tirar de letra, zerinho erros, tive que enfiar a viola no saco. Em 14 falhei 2. Aliás, falhei 3 mas uma foi um horrível lapso. Era uma daquelas tão óbvia que eu pensei: 'credo, alguém falhará esta...?' e nisto, sem saber como, carreguei-lhe. Depois pensei que devia recomeçar mas como já tinha falhado uma e já sabia a resposta correcta, seria batota. 

Mas o divertido foi pôr os meninos a fazerem aquilo. Só interjeições de fúria. Falharam para aí metade. O mais velho dizia que ninguém diz aquilo, referindo-se à resposta correcta, que ele nunca ia cair naquela, que, se dissesse aquilo, os amigos iam gozar com ele.

Mas como ficaram picados, passado um bocado estavam com um quiz para mim, para se vingarem. Quando vi, declarei-me logo vencida. Bandeiras. Só sei uma, a de Portugal. Bem, se calhar mais uma meia dúzia mas acho que mesmo essa meia dúzia apenas sei reconhecer. Se, de cabeça, me puser a descrever, falham-me, de certeza, os pormenores. Até aquelas que, vendo-as, não me oferecem quaisquer dúvidas, ao descrevê-las, ai, ai, ai... Brasil, por exemplo. Uma vergonha. Disse: Verde. E tem um círculo branco coma risca azul. Depois vi que faltava o amarelo. Corrigi mas não acertei. Até que um dos meninos me falou no losango do qual nem me lembrava, estava naquela baralhação de onde encaixar o amarelo, o azul e o branco. Ridículo, não é? Mas é. Ou seja, o meu fraco poder de observação bem patente nisto. Por mais que quisesse fugir ao quiz, obrigaram-me a alinhar. Mas desisti ao fim de uma meia dúzia sem conseguir acertar uma. Só países esquisitos. Mas mesmo que fossem banais, não acertava. Ficaram delirantes. Anteviam que seria uma desgraça mas não imaginariam a dimensão da ignorância.

Mas, enfim, é o que é.

Seja como for, para quem não teve oportunidade de ver o Público naquele dia e testar os seus conhecimentos de língua portuguesa, aqui fica:

Dominas o Português ou também cais nestes erros comuns? Testa o que sabes

São erros comuns, daqueles que já foram reproduzidos tantas vezes que grande parte já acha que é mesmo assim que se diz (ou escreve). E tu, cais nessa armadilha ou tens o bom Português na ponta da língua?

Não digo quais as duas que errei (por sinal, as mesmas duas que a minha filha) para não vos influenciar. Espero que tenham melhor sorte que eu. 

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Desejo-vos uma boa quarta-feira

Saúde. Simpatia. Paz.

terça-feira, agosto 23, 2022

Um coração que não sei se é real se é fake. Mandos e desmandos duma geração Z. E uma fera punk e muito fofa


Naturalmente que a excursão do coração do outro até ao Brasil me deixa beige. Para começar, não sei se alguém tem a certeza que aquela miudeza ali já com ar cozido e recozido já esteve mesmo dentro de um qualquer longínquo Pedro desta vida. Quem garante que aquilo não é fake, por exemplo coração de porco...? Não dizem que coração de suíno é tão bom quanto o de nós outros? Quem garante que não pegaram num e o puseram em calda, se calhar feito pickles para ficar mais descorado? Sim, quem garante?

Não digo que não haja por aí, algures, nalguma arca frigorífica ou nalgum cofre com recheio mal cheiroso, algum deslavado coração que seja mesmo o do outro mas eu, se fosse o guardião da real miudeza, não ia arriscar levá-la para perto do Bolsonaro e outros que tais. Vai que o Bolsonoro resolve mandar rezar missa cantada para o defunto coração? Vai que, numa dessas ou num nalgum daqueles comícios manhosos, o dito Jair deixa cair o frasco e a coisa se esparrama pelo chão. Vai que vai a passar um cão, pega a esbodegada coisa e abala a correr com ela na boca? Vai que nunca mais ninguém põe os olhos em cima do cão?

Não é que se perdesse alguma coisa mas isto há gente para tudo, gente com cismas, gente que gosta de guardar tesourinhos deprimentes. O que digo é que eu, se fosse a eles, mandava um coração fake quiçá enfeitado com uma coroazinha imperial, blink blink, para dar mais graça

E, por falar em haver gente para tudo, hoje, não sei a que propósito, veio aquilo do LGBTQ. Ninguém sabia o que era o Q. Indo-se ver, concluiu-se que isso já era. A coisa já vai num comboiozinho mais composto. LGTBQIA2S+. Nenhum de nós ali sabia a que correspondia tudo aquilo. Viu-se no google mas, nem assim, a coisa ficou clara. A realidade vai evoluindo e o nosso conhecimento dela vai ficando para trás. 

Para ilustrar este novo mundo, o mais velho exemplificou com algumas coisas bizarras, descrevendo comportamentos típicos de pessoas da sua idade. O meu marido disse: 'Este mundo está perdido, já bateu no fundo'. O puto concordou, disse que é a Geração Z, uma geração deveras marada.

E ele diz isso sem saber dos que fazem fila na rua para verem aquela miudeza já fora de validade, sem saber dos ildefonsos deste mundo, dos ideologomaníacos, das estátuas de pés de barro, dos malucos que aqui me deixam comentários ofensivos que atiro para o lixo, das beatas que não sabem a quantas andam e de todos os estúpidos que por aí pululam. Um mundo perdido.

Quanto ao resto não sei bem o que dizer. Tenho andado campestre, longe das mundanidades que por aí vejo comentadas. Nos intervalos trabalho. E vou pensando no que fazer: pinto as unhas de carmim? Ou deixo-me disso? Nem um pingo de verniz? Campesina de cabo a raso? E quanto aos olhos? Mantenho-os smoky? Sem rímel, sem nada que se veja? Tento o reverse eye liner?

Pois não sei. As minhas dúvidas são deveras existenciais. Consomem a minha energia, fico sem ânimo para me ocupar dos Mithás desta vida. 

Tirando isso, o que sobra é aquilo dos cães chorarem lágrimas de verdade. Dizem que é quando reencontram os donos que mais acontece. Acredito. Coisas mais fofas, mais amigas. 

Ora vejam o urso mais feroz aqui, derretido, nas mãos do mais crescido que se divertiu a pôr-lhe a melena à punk. Fofos.

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Desejo-vos um bom dia

Saúde. Uma vida longa e feliz. Paz.

segunda-feira, agosto 22, 2022

Salada de verão made in heaven (com receita) e, uma vez mais, um susto nocturno, desta vez por conta de um urso desaparecido

 

Alguma preguiça em cima de mim. Estava na dúvida em fazer ossobuco ou choquinhos com tinta para o almoço. Mas havia ainda tantos leftovers que disseram: come-se o que houver, não é preciso fazer nada. E francamente foi o que eu queria ouvir. Apetecia-me uma refeição mais ligeira, nomeadamente a nível da confecção.

Então, improvisei. Fiz assim:

Numa taça grande coloquei o resto do arroz (basmati) e o frango assado desfiado (ambas as coisas sobras do almoço de sábado). Depois cortei três maçãs de alcobaça aos cubinhos pequeninos, três tomates grandes maduros também aos cubinhos (e ao cortá-los o suco ia escorrendo), depois cortei às tirinhas finas o conteúdo de um pacote de salada exótica (rebentos disto e daquilo), piquei finamente um bom molhinho de coentros, temperei com orégãos e azeites. Envolvi tudo bem. Por cima. coloquei um queijo fresco de cabra cortados aos bocados, três ovos cozidos picados e vários figos às rodelas. Voltei a temperar com um fio de azeite.

E estava saborosa, uma salada fria da qual não sobrou nada. A seguir comeu-se melão e alguns mais gulosos também uma sobremesa doce.

De tarde, acabei de ler o Sonechka da Ludmila Ulitskaya que, no outro dia, quando ao fim da tarde bateu uma saudade de entrar numa livraria de verdade e ver uma livreira de verdade, trouxe da Escriba

Vale um passeio de propósito a Almada para escolher uns bons livros e estar à conversa com a Rosa Alface, livreira de gema e de uma simpatia inexcedível. E dali poderão partir para o Parque da Paz para lerem um livro à beira do lago ou para a Casa da Cerca ou, claro, para um passeio a pé até ao rio com derivação para o querido Ginjal de onde se tem a melhor vista sobre Lisboa.

Li o Sonechka de seguida, agradada. Não há rodriguinhos, histórias mirabolantes, reviravoltas inesperadas. Há simplesmente boa escrita, uma história com personagens credíveis e cujo desenrolar de vida gostei de acompanhar. Não conhecia Ludmila Ulitskaya mas uma coisa é certa: vai estar sob o meu radar.

Depois, como me apeteceu continuar de enfiada, peguei na A Praia de Cesar Pavese. 

Estava calor mas não tão abrasador quanto no sábado. Penso que já o disse: até os arbustos do campo mostram as folhas enroladas e alguns parecem estar a querer secar. Uma coisa meio assustadora. A terra está seca, seca.

De manhã, quando foi dar a sua volta matinal pelo campo, o meu marido encontrou, a atravessar o caminho, lá em baixo, um esquilo. Até agora, das duas vezes que tinham sido avistados, sempre tinha sido cá em cima. Quando o pressentiu, o esquilo correu e enfiou-se por entre um cedro. E desse, saltou para o cedro do lado. Também é novidade: julgávamo-los amantes de pinheiros. De facto, nesta última semana não apareceram cá em cima tantas pinhas roídas quanto é costume. Na volta, dada a movimentação que agora tem havido por cá, resolveram procurar poiso mais tranquilo.

Claro que andei de cabeça no ar a ver se o descobria mas nem pouco mais ou menos. Os cedros são frondosos, impossível descortinar qualquer coisa cá de baixo e do lado de fora.

Para o jantar, resolvemos ir a uma das cidades mais próximas petiscar numa esplanada agradável onde se come bem. Para evitar os stresses do urso felpudo que é territorial e possessivo até em relação ao espaço da mesa à volta da qual nos sentamos, ficou em casa.

Não quisemos deixá-lo na rua não fosse meter-se em algum sarilho, enfiar-se nalguma gruta, cair da barreira, sabe-se lá, ou arranjar maneira de se escapulir para a estrada. Não é como a nossa querida cãzina que era tranquila, obediente, bem comportada. Este é temperamental, atrevido, teimoso.

Fomos cedo, por volta das sete. Dissemos-lhe o que sempre lhe dizemos: 'Fica a tomar conta da casa, está bem? Os donos já vêm'. Mas a dinâmica de saída desestabilizou-o porque não eram só os donos, era muita gente a entrar e sair, a entrar e sair. Depois de finalmente estar toda a gente cá fora e ele metido à traição dentro de casa, o meu marido viu que se tinha esquecido do álcool gel (coisa a que se afeiçoou) e um dos meninos também resolveu que queria ir beber água. Passado um minuto saíram de novo e, supostamente, o cão de guarda ficou dentro de casa. Eu, pelo menos não o vi sair. 

Depois de jantar, não viemos logo, fomos ainda dar um passeio até ao parque onde havia música e bailarico.

Quando regressámos, não sei que horas seriam, talvez umas dez ou dez e tal, não sei, esperávamos vê-lo logo ao pé da porta. Mal ouve o portão ou o carro ou mexer na porta, vem sempre sentar-se à porta à nossa espera. Desta vez não. Nada dele.

Chamámos. Nada. Na volta tinha caído num sono profundo e não nos tinha ouvido chamar. Chamámos alto. Nada. Fomos acendendo luz após luz, chamando, espreitando. Nem na cozinha, nem na despensa, sala de jantar, nem na sala da lareira, nem na sala de baixo, nem na da televisão, nem no meu quarto, nem nas casas de banho. Nada.

Todos já assustados, a chamar por ele, preocupados com o que estaria a passar-se, temendo que algo de grave se tivesse passado. 

Perguntei: 'Vocês viram-no de certeza, quando voltaram a casa?'. Sim, tinham-no visto, tinha ficado na cozinha. E eu, de facto, não o tinha visto sair.

Avançámos, então, para a parte antiga da casa onde, de novo, temos tido pernoitantes. A porta estava fechada. Estranho. Não é costume aquela porta estar fechada durante o dia. Chamámos. Nada.

Acendeu-se a luz. E lá estava ele, ao cima as escadas, encolhido, orelhas murchíssimas, imóvel, ar assustado. Não sabemos o que lhe aconteceu, como fechou a porta. E, claro, se a fechou, já não a conseguiu abrir que a porta é um pesadelo, enorme, de madeira maciça. Ali às escuras, no topo de umas escadas, sem acesso à zona da casa onde estão as portas da rua, e isto já para não dizer que também sem acesso à comida e à água, imagino como se sentiu infeliz.

Depois, quando subimos as escadas e fomos ter com ele, foi uma festa, todo agarrado a nós, o rabinho a dar a dar, só a pôr-se de pé para nos dar abracinhos e beijinhos, uma alegria. Parecia que ria a olhar para nós, todo contente. Respirámos de alívio e toda a gente lhe fez mil festinhas. A seguir, bebeu água como se não houvesse amanhã e comeu que se fartou. Pudera, tiraram-lhe um peso de cima, afinal, coitado do pobre infeliz, não tinha sido abandonado... Cãozinho mais fofo.

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

Saúde. Boas ondas. Boas vibes. Paz

domingo, agosto 21, 2022

Um susto recheado de guinchos ao dealbar d'aurora e uma açorda algarvia de galinha e grão para o jantar
(receita incluída)

 


A noite passada tinha acordado por volta das quatro e meia da manhã e estava a custar-me a adormecer. Como dormimos com os vidros abertos e persianas com as frinchas abertas, mal o sol começa a raiar já o quarto se ilumina. Não me afecta. Aliás, até gosto. Mas, então, lá fora mas junto à porta, um chinfrim danado, barulho como se de corridas, perseguições, encontrões, e logo uma guincharia terrível, uns estrondos. Claro que o dog de guarda acordou sobressaltado e correu a ladrar que nem um possesso. Ladrou, ladrou, correu de um lado para o outro numa agitação, enervado, um vozeirão, saltos ao pé da porta. Lá fora, o silêncio. 

Eu também intrigada com aquele aparato. O meu marido disse que devia ter sido uma cena qualquer com um gato. Tentei acalmá-lo mas foi impossível (refiro-me ao cão -- não ao meu marido que esse estava calmo, embora chateado por nem ao sábado conseguir dormir).

Contudo, perante o desassossego da fera, não teve outro remédio: foram lá fora, um escoltando o outro. 

No regresso, o relatório: de gato nem sinal mas um ratinho jazia no jardim. O gato com o ladrar da fera deve ter fugido e abandonou o seu troféu. O meu marido distraiu a atenção do urso, não fosse ele querer banquetear-se logo de manhã, ainda por cima com manjar alheio. Quando lá voltou já não viu o rato. Participou-me, a seguir: 'O gato já veio buscar o rato'. 

Contudo, quando, algum tempo depois, eu dei uma volta por outro lado, já o pobre ratinho tinha sido transladado para lá. Pequenino, cinzento muito clarinho, um rabo comprido quase rosado. Um inocente.

Por respeito, não captei a situação. Aliás, nessa altura mal tive tempo para uma fotografia à pressa a uma das belas flores amarelas que sempre me encantam e para aquele ser pré-histórico, uma osga moura que mais parece albina, que agora por lá se passeia, quase se confundindo com a parede 

O meu marido já estava no carro à minha espera com o urso cabeludo no banco de trás. Não dava para um enterro condigno da pobre vítima rabuda. Lá ficou, à mercê. Entretanto, imagino eu, o gato deve ter conseguido, finalmente, resgatar o produto da sua caçada.

É aquela velha história da cadeia alimentar. Que ninguém tenha peneiras: todos somos pasto de algum qualquer outro bicho. Muita prosápia, muito instagram, muita cagança para acabarmos todos da mesma maneira. 

Adiante. Os fins de semana não se querem para altas filosofias.

Passemos, pois, ao que importa. 

Fui ao supermercado que tem carne boa. De todos os que conheço, não encontrei ainda um outro assim. Tem é um inconveniente: ali ninguém tem pressa. Por isso, venho de lá sempre com as narinas a fumegar e a bater com os cascos, tanta a impaciência. Mas hoje nada disso: felizmente hoje não havia daqueles avantajados que enchem o carrinho com quilos e quilos de carne, carne certamente para a arca e para dar para um mês inteiro, tudo cortado a feitio, cada peça escolhida com rigor, um empregado mais de meia hora com cada cliente. Nem apanhei clientes amigos dos empregados, daqueles que conversam nas calmas, perguntam pela família e pelos vizinhos, sem quererem saber das pressas dos outros. Slow living por estas bandas. Mas este sábado a coisa esteve bem. Trouxe um mega frango do campo e meia galinha também campestre. Era para só trazer galinha. Mas galinha, galinha que se visse, em tamanho giga e ar de galinha feita, só havia aquela metade. Portanto, completei com o giga frango, animal a parecer capão natalício. Trouxe também uma farinheira e um chouriço de carne extra. Gosto de enchidos de boa qualidade, especialmente quando há crianças envolvidas do repasto

Sendo bichos do campo, musculados, e daquele tamanhão (refiro-me aos galináceos e não aos clientes), comecei a empreitada logo por volta das quatro da tarde. Slow food, pois.

Fiz assim:

  • Num panelão, coloquei água, um pouco de sal, duas cebolonas novas, muito grandes, cortadas aos bocados, um ramo de salsa, três cenouras de bom tamanho (sim, nas cenouras, digam o que disserem, size matters). Juntei os bichos já devidamente esquartejados (e desculpem-me a violência da descrição) e um pouco de sal. Depois de levantar fervura, baixei e assim ficou a cozinhar, o panelão devidamente tapado.
  • Quando a carne dava mostras de querer soltar-se ligeiramente dos ossos (e, uma vez mais, desculpem se a descrição vos parece gráfica demais), juntei a farinheira e o chouriço. Passado um bocado, o caldo da cozedura tinha adquirido as belas cores dos enchidos e estava na hora de juntar os ovos. Levantando o lume ao máximo, parti lá para dentro -- mas com cuidado para o mergulho ser suave -- seis ovos. Quando voltou a levantar fervura, voltei a baixar e a tapar. Cozeu mais um bocado. Finalmente juntei uma embalagem de grão cozido. Desliguei.
  • Aqui entrou em cena o meu marido. Pedi-lhe que forrasse o fundo de duas travessas com fatias generosas de baguette de pão rústico. 
  • Enquanto isso, preparei o tempero para o piso. Para uma tigela piquei finamente uma meia dúzia de grandes dentes de alho, um ramo de coentros, juntei azeite e envolvi tudo muito bem, pisando um pouco com um garfo. Se tivesse um almofariz teria esmagado mas não faço ideia onde foi parar o dito cujo. Nada de grave. Com uma concha fui retirando caldo da canja e mexendo. 
  • Depois, com uma colher, despejei esse caldo a cheirar a açorda algarvia (ou alentejana) sobre as fatias de pão. Quando estavam ensopadinhas, coloquei os pedaços de galinha e frango e depois o grão, a cenoura, os ovos escalfados e mais caldo. No fim, enfeitei com hortelã. 

Quando estávamos a começar a servir-nos, recebi uma chamada com imagem da turma que anda em turismo por fora, por terras onde o calor ainda aperta com mais força. Mostrámos-lhes as travessas (pois o prato era uma tentativa de reprodução da açorda algarvia de galinha e grão que eles tinham comido a semana passada quando ainda andavam por terras de Portugal). Mas a confusão era grande de um e do outro lado, eles mostravam cocktails, elas falavam de tatuagens, todos a falarem ao mesmo tempo. Portanto, a seguir uma chamada apenas de voz, coisa mais um a um, e fui atender para outro lado. Demorei um pouco. Quando regressei à sala de jantar, os comensais começaram a bater palmas: que a açorda estava mesmo boa, que era das melhores coisas que eu já tinha feito.

E porque é tão simples, tão agradável e creio eu, tão razoavelmente saudável, disso aqui vos quis deixar nota. 

Não usei a linda taça das folhas de couve que está lá em cima e que hoje recebi de presente porque era pequena demais para tanta comida. Fica muito bem como peça decorativa sobre a mesa da cozinha. Podia usá-la como fruteira mas acho que prefiro que fique sem nada pois assim rapidamente a uso como saladeira ou travessa de ir à mesa.

Também recebi um pequeno presépio pois gosto bastante da composição familiar pouco ortodoxa, até une chose a modos que avant la lettre: uma jovem mãe solteira, um homem generoso que lhe deu guarida (e que não sei se seria o pai da criança o qual, para disfarçar a diferença de idades, deu uma de protector), um bebé nascido numa gruta, um burro, uma vaca. Sabendo deste meu gosto, também recebi, pois, o delicado presepinho. Esqueci-me de fotografar (e, acho eu, ... esqueci-me, até, de agradecer...) e agora não dá, senão ainda ia acordar o pessoal todo. Amanhã a ver se duplamente trato disso.

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Desejo-vos um bom dia de domingo

Saúde. Bom apetite. Paz