segunda-feira, outubro 31, 2016

O que é que o Mondego tem?


Bem, talvez eu devesse ter restringido a pergunta: o que é que, em Coimbra, o Mondego tem? 

Ao contrário dos rios da minha vida -- o Sado em Setúbal e o Tejo em Lisboa, rios que ali são quase mar, todos eles pressa de se misturarem com o oceano -- o Mondego em Coimbra é um rio que gosta de ser rio, que se entrega à cidade.

Banhado pela luz protegida que já lhe chega coada pelo casario da cidade e pela ondulação dos montes, neste domingo quente de um outono veranil, o Mondego mostrava ser um rio suavíssimo.

Pelas suas margens andei porque, por voltas que dê, é sempre para junto das águas que o meu coração me leva.

As cores das árvores das margens tombam, pesadas de tanto ouro, os caminhos estão atapetados, e, no rio, as pessoas caminham sobre as águas ou deslizam em barquinhos que, vistos de mais longe, parecem de brincar. E os patos convivem com quem passa e um azul sereníssimo banha a paisagem.

Passei o rio pela ponte Pedro e Inês, uma ponte elegante, também tranquila.



Um apontamento. Estava eu na ponte, deliciada, a olhar em todos os sentidos, a fotografar os barquinhos através do colorido dos painéis, a espreitar as casas, as pessoas, o repuxo a meio do rio -- quando vejo, mais à frente, uma cena fantástica. Uma louríssima avultada -- para aí de meia idade e não muito alta, com uma cabeleira que mais parecia uma generosa cachoeira tombando pelas costas e descendo-lhe até à cintura, montada numa bicicleta mas com os pés no chão, calção noir de lycra, blusa talqualmente de lycra mas em pink-choque, encostada aos painéis da ponte, sorrindo -- fazia-se à fotografia. E, pasmada, vi que quem a fotografava era, nem mais nem menos que, imagine-se... o meu marido. Nem queria acreditar no que via. E o que ele demorou... e a loura a sorrir, em pose... Com o espanto nem me ocorreu logo captar o momento mas, ainda assim, ainda fui a tempo de tirar duas fotografias que comprovam o fenómeno.
Quando cheguei perto, estava ele a devolver-lhe o telemóvel. Perguntei-lhe se, quando estava a disparar, lhe tinha dito para ela dizer 'ba-ta-ta' ou 'cheeeeese' para ficar com um sorriso de boca aberta. Respondeu 'não sejas parva'. Perguntei-lhe se tinha sido ele a oferecer os seus serviços, tipo 'está tão gira, não quer que eu lhe tire uma fotografia?', e ele voltou a dizer para eu não ser parva, que tinha sido a loura platinadésima a pedir-lhe. Perguntei-lhe a que propósito é que, com tanta gente a passar na ponte, ela lhe tinha pedido justamente a ele, 'Sei lá. E o que é que querias que eu lhe dissesse?' e eu respondi que ele devia ter dito 'não posso, a minha mulher está ali'.
E isto, descrito desta maneira, até pode parecer uma crise de ciúmes. Mas é porque não esclareci que só vendo a cena... Só não ponho aqui uma das fotografias para não os identificar porque, juro, só vendo. De facto, eu ria à gargalhada e ele, que não é de gargalhar, também sorria. Contou que, de cada vez que queria disparar, aquilo lhe saía do sítio. Com um telemóvel desconhecido e a ver mal ao pé... Por isso, tinha demorado. Estou agora a ver as fotografias. Hilariante. Tudo aquilo é o oposto do 'género' dele, desde o estilo da ciclista até à situação em si.
Seja como for, sugeri que, quando ali voltasse, usasse um cartaz no peito e outro nas costas a dizer 'tiro selfies com gajas boas'. Não sei porquê mas acho que havia muita ciclista (e não só) que não se faria rogada.
Mas pronto, calo-me já e deixo-vos com as imagens da beleza do Mondego em Coimbra.






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E já cá volto para mostrar por onde andei depois. Mas, para já, digo que almoçámos no Alfredo, do lado de lá do rio. Mandámos vir uma feijoada e cabrido no forno que partilhámos. Excelentes. Um exagero de comida face ao que comemos habitualmente. Contudo, com o que andámos a seguir, acho que talvez as calorias tenham ido à vida.

Doce de tipo conventual delicioso.
Não me lembro se se chama Rosinhas de Rainha Sta Isabel.
(Ovo, amêndoa, laranja)
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Tenho que me levantar cedo e não quero maçar-vos para além da conta. 

Gostava  ainda de vos mostrar o Convento de Sta Clara e outras belezuras sacras e também a Quinta das Lágrimas, uma grávida com um barrigão estendida na relva e outras suaves calmarias mas nem sei se o faça ou me deixe disso e vá mas é pregar para outra freguesia. Já vejo.

Portanto, até já ou até amanhã.

E, entretanto, é ir passeando pelo blogue abaixo, como se fossem turistas acidentais à descoberta de Coimbra.

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O colorido de Coimbra by night


Gosto do entardecer e de andar na rua quando o entardecer se torna anoitecer. As luzes acendem-se, as cores vivas começam a diluir-se na escuridão, os rumores do dia dão lugar ao mistério dos vultos, o dia é devorado pela noite.

No sábado andámos pelas belas ruas de Coimbra até ser noite escura. Fui fotografando até não ser mais possível. As fotografias que aqui mostro acompanham o desaparecimento da luz enquanto íamos caminhando, as casas elegantes, as árvores, as pessoas que recebem a noite numa mesa ao ar livre. 

Depois cruzámo-nos com um grupo de estudantes com as suas guitarras, alguns ainda cantando. Outro com os estandartes. Mais atrás, sozinho, um último. Ia tocando, entoando baixinho. A noite ficou ainda mais romântica. Já não o consegui fotografar, a noite desfocou a imagem.











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E já cá volto com a reportagem deste domingo.

E a quem aqui chegou agora sem saber que há muito mais imagens de Coimbra por aí abaixo, aqui fica o convite: das ruelas à universidade, do rio até aos diplomas ao quilo para quem quer ser doutor sem queimar a pestana, há de tudo. É só irem deslizando.

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domingo, outubro 30, 2016

Onde Isabel ainda traz o regaço cheio de rosas
- e consegue a proeza de eu me mostrar aqui, numa selfie involuntária


Deixo para trás a minha oferta comercial destinada aos putativos senhores duplamente doutores formados em social-galdeirice e jota-trampolinice e, continuando o passeio por entre paredes faladeiras e as pessoas levitadeiras, vou revelar-vos o belo lugar por onde ando.

Isabel, a Rainha Santa, ainda por aqui anda e eu, ao mostrar-vos as rosas que traz no regaço, descobri-me por detrás dela. Pensei: não mostro esta fotografia. Mas depois, tomada por um súbito misticismo, achei que milagre que é milagre não dispensa uma selfie para o testemunhar.


Bem. Isabel está um pouco por todo o lado. Por vezes mais formosa, por vezes mais feiosa. Umas vezes com cinturinha de vespa, outras mais encorpada. Mas a coroa, as rosas e o ar generoso acompanham-na pela cidade.


Pelas ruas reina a animação. As cidades arranjaram-se, souberam descobrir os seus ex libris, e os habitantes e o turismo retribuiram o cuidado.


Património Mundial, a universidade e a cidade são preciosidades a céu aberto. O rio suavíssimo, romântico com a sua paisagem circundante, o casario, os fantásticos edifícios, as igrejas, os salões para os doutores de verdade formalizarem os seus rituais, a biblioteca. Tudo é encantador.

E, falando em biblioteca, a Biblioteca Joanina! 

Não se pode fotografar. Que desgosto não poder fotografar para vos mostrar. Linda, linda de morrer, linda. Aliás, linda não. Magnífica. E o cheiro! Tão bom. Andar por ali. O cheiro das madeiras, dos livros. As cores coadas por uma luz muito ténue. Devia poder lá ir à noite, apenas eu e os morcegos. Seria extraordinário. Não devia haver um único português que não conhecesse esta biblioteca. 


Natural, pois, que pelas ruas, para além da estudantina que enche o ar de música ou de jovial alegria, se ouçam brasileiros, espanhóis, franceses, muitos. Repito-me: entre paredes velhas, monumentos imponentes, torres históricas, uma animação. Não uma enchente como se vê em Lisboa mas muita gente, vozes alegres, línguas diferentes. Dá gosto.


Não vou pôr-me a falar de cada maravilha que porque são muitas, porque sei que, se me pusesse aqui a descrever cada sala, cada escadaria, a beleza da paisagem, a revitalização de espaços, a esplanada do museu pairando sobre a cidade, me tornaria ainda maçadora do que é costume.


O que vos digo é que, se ainda não conhecem, deverão tentar vir conhecer. É mesmo muito bonito.


No post abaixo já vos contei: fiz duzentas e tal fotografias. Agora nem sei o que escolher para tentar transmitir a ideia do que é a cidade ou para despertar em vós a vontade de aqui vir. Monumentos, estátuas. paisagens, ruas da cidade? 


Ou o rio? As pontes? A Sé? As omnipresentes escadas? As Faculdades?
Um aparte: admirada com o conhecimento de atalhos e de percursos que o meu marido demonstrava, já estava a ficar desconfiada. É certo que, durante um período, vinha frequentemente cá, a trabalho. Mas presume-se que uma pessoa que vem em visitas profissionais não sabe como chegar melhor ao largo das escolas ou de onde se tem uma grande vista. Perguntou-me, então, se eu já me tinha esquecido que ele tinha feito lá um semestre. É verdade, já nem me lembrava de tal coisa. Sem que consiga explicar bem qual o racional da coisa, veio fazer o 1º semestre do curso aqui. Ele e outro. Presumo que foi a ideia de virem para a borga. No entanto, nado e criado em Lisboa, acabou por achar que a terra era provinciana demais para os seus hábitos, que não era bem aquilo que procurava. Hoje seria certamente diferente mas lembremo-nos que isto de que falo foi na pré-história.
Foi num dessas alturas em que, estando ainda aqui a estudar aqui mas já a ver como se transferir, o vi um dia a entrar num pavilhão cheio de gente, olhando em volta e detendo um prolongado olhar em mim. Foi nesse momento que a coisa se deu. Nesse momento de puro acaso. 
Se não se tivesse desgostado desta cidade e ido em busca do regresso à capital, se não tivesse entrado ali naquele dia ou se o nosso olhar não se tivesse cruzado, a nossa vida teria sido outra. Ele diz, malícia na voz: 'já viste? podias ter ficado com os calmeirões angolanos que andavam atrás de ti e ser muito mais feliz...'. Típico. Tinha que sair parvoíce. Na altura, eu namorava outro mas ele faz de conta que já se esqueceu do facto e tenta ser jocoso. De facto, havia uns angolanos esculturais, negros, negros, que me achavam graça e a quem eu também achava graça. Mas, enfim, a graça que eu lhes achava talvez não fosse a mesma que eles achavam em mim. Mas não sei, nem isso interessa. Seja como for, rio-me (e, por prudência, não lhe dou troco).
Adiante.


A ver se num outro post, vos mostro algumas das casas da cidade, as ruas à noite, algumas montras. Mas, para já, deixo-vos com esta fotografia que me vi aflita para fazer pois orientasse eu a câmara como orientasse, alguma coisa ficava torta. A inclinação do piso e das ruas não facilitam uma perspectiva neutra. Mas acho esta parte da cidade tão fantástica que vos mostro mesmo assim com alguns prédios a parecerem que estão quase a cair -- mas não estão.


Subi por aquela rua estreita à direita e durante não sei quanto tempo mais continuei a subir.

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E claro que já toda a gente sabe a que cidade em que estou mas, para o confirmar, aqui fica a prova dos nove.




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Coimbra. Belíssima Coimbra.


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E queiram, Caros Leitores, continuar a descer porque a descer todos os santos ajudam. 

E, caso estejam a precisar de ser doutores, não deixem de ir bater à porta da UJM (Universidade Janadona e Marada) onde se servem canudos a pedido. 

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Paredes faladeiras


Ora, então, muito bem. Agora que já tive o meu momento publicitário, comerciando canudos à dúzia (títalos a preço de chuchu e garantindo uma escalada rápida e bem remunerada a putativos doutores, bacharéis ou eternos badamecos), volto ao turismo.

Caminho por ruas, vielas, escadas e escadinhas, espreito as casas, leio as paredes. E fotografo.

Bombardear pela Paz é como foder pela Virgindade


A obrigação de produzir
aliena a paixão de criar

De vez em quando passo por estas bandas, mas, sendo em trabalho, não me sobra tempo para curtições. Ou é coisa de ir e vir no mesmo dia e passeio a pé ou de carro a ver as vistas viste-lo (passe a redunância) ou, se mete pernoita, é chegar à cidade para entrar directinha no hotel, check in, ida ao quarto, telefonemas a correr, encontrar cá em baixo para ir jantar, voltar tarde, ir para o quarto, depois levantar cedo para nova implacável jornada, check out, carro, reuniões e ala para casa que se faz tarde.
E que não se pense que é porque gosto. Não, nada disso. Ia lá eu gostar de um tal regime? É apenas porque sou uma maria vai com os outros. Num grupo predominante ou exclusivamente masculino e achando os cavalheiros que é este regime que faz crescer a economia, não consigo ter voz activa para lhes mudar os hábitos. Claro que lhes digo que estão enganados, que a dita crescia melhor se a gente tivesse tempo para passear, se a gente se levantasse mais tarde, se as reuniões fossem mais curtas e feitas à beira rio, a olhar o reflexo das árvores nas águas ou se eles, de vez em quando, me agraciassem com um poema. Mas, ocupados com noplats, ebitdas, swots e outras frioleiras, nem me ouvem. Não sonham com o que perdem mas esperar o quê se é sabido que os homens só conseguem usar um neurónio de cada vez...?

Mas, portanto, dizia eu que não é que a cidade me seja desconhecida. Mas é quase como se fosse. 

O meu marido hoje teimava que já estínhamos estado ali, justamente naquele sítio. Olhei. Sim, de facto. Mas quando? 

Nenhum cor-de-rosa faz sentido

Lembrou-se, então. No casamento de um colega. Todos vestidos de branco, de boné, enfeites dourados, de espada e nem sei se até de luvas brancas. Cruzaram espadas e os noivos passaram por baixo. Fizeram umas saudações. Uma coisa com simbolismo. Não sei qual mas isso também não interessa para nada -- foi bonito. Eu jovenzinha, cabelo curtinho, quase rapadinho, vestidinho com bordados às cores. Era ele marinheiro de água doce e, quando todos juntos, eram bonitos demais para imporem respeito a algum inimigo. Devia ter eu vinte e três anos, já uma filha bebé, e ele, vá lá saber-se porquê, foi chamado para ir fazer a tropa. Nem percebíamos. A tropa? Se já ninguém ia para a tropa, que ideia. Foi ele e mais uns quantos. Para a Marinha. Foi dar aulas. Deviam estar com falta de professores. Mais de dois anos. Ao princípio assustei-me, ia perder o emprego -- e que coisa era essa de ir para a tropa? Depois gostei, aquilo era bom. Mas ele não. Não tem pingo de militarismo. Apesar de aquilo ser agradável e de ser bem tratado e estimado, estava deserto para se ver livre de fardas. Convidaram-no: um curso nos Estados Unidos, uma carreira. Não quis. Tive pena. O Clube Naval, a Messe de Oficiais e essas coisas, tudo era deliciosamente civilizado.

Adiante que iso agora não é para aqui chamado.

Pouco tempo depois de lá estar, na Marinha, um dos colegas de recruta e de não sei quê (não sei como se chama o período a seguir à recruta) casou-se e convidou-nos bem como a outros marujos. Uma diferença abissal dos casamentos das nossas bandas. Logo que chegámos já havia banquete em casa dos pais dele. Depois o casamento e as fotografias. Estava calor como este sábado e aquilo não acabava. A minha tensão baixíssima. Depois o copo de água. Nunca tinha visto uma coisa daquelas. Não sei onde era, um espaço enorme, várias mesas corridas, centenas de pessoas. Começou a vir comida e não acabava, toda a gente comia como se não houvesse amanhã. As mesas davam a volta àquele enorme salão e ao meio as crianças andavam a correr e a brincar. Depois houve baile ali ao meio enquanto nas mesas ainda se comia.  Eu não, não conseguia. Mas também já nem conseguia ver comida. Tanto que aquela gente comeu, senhores. Tanto, tanto. Por fim, já andava tudo alegre, camisas de fora das calças, cantavam e dançavam e riam e bebiam, uma algazarra indescritível. Saímos de lá já de noite e eu com a cabeça completamente feita em água. 

Não é normal ter medo de amar

E é verdade, foi aqui e passámos por onde hoje voltámos a passar. A passear.

Passear: das coisas boas da vida.

Andar a pé, a ver tudo, a ouvir as paredes. Fotografar. O meu marido diz: 'É isto. Os exageros'. Gosta de andar em frente, sem parar. E eu gosto de tudo, paro a ver, fotografo. Hoje mais de duzentas. Mas há bocado, enquanto fui tomar um duche, disse-me 'deixa lá ver as fotografias'. Aborrece-se quando ando a fotografar mas depois gosta de ver. Também me fotografou. Ao ver, disse 'ficaste bem' -- e eu a achar que tenho que perder uns três ou quatro quilos.

Mas, como ia dizendo, hoje o dia foi tranquilo. Comemos bem mas não tanto como quando eu era uma miúda toda orgulhosa por ser casada com um marinheiro tão garboso; e hoje não houve cantoria nem baile armado.

Andámos imenso a pé. Horas. Quando ando mais cansada só me apetece espanejar. Escalámos a cidade, visitámos e espreitámos, horas de sobe e desce, e sinto-me descansada e leve que dá gosto.


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E, aqui chegada, volto a perguntar: onde é que eu ando?

Já recebi um palpite mas com ponto de interrogação. Não vale. Portanto, façam-me um favor: quero certezas, não perguntas.

Dou uma ajudinha. Bem, nem é uma ajudinha, é quase dizer o nome da cidade. Ora vejam a fotografia abaixo. 

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Tenho que incluir banda sonora...?

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E, enquanto não volto para tirar a prova a limpo, desçam, por favor, para uma informação preciosa a propósito dos ditos títalos universitários e para verem, logo a seguir, gente levitadeira.

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Doutores, bacharéis, licenciados, mestres, engenheiros, pardaleiros, zarolheiros, cambalhoteiros, filibusteiros, zabaneiros
-- É escolher, é escolher!
É pr'ó jotinha e pr'á assessorinha!
Na UJM pode arranjar cursos superiores e inferiores a preço de saldo.
E aos pares!


Faço um intervalo da minha deambulação turística para dizer que vendo títalos universitários. É só mandarem-me o vosso nome completo, nome de mãe e pai, lugar de nascimento, número de cidadão e fazerem uma little transferência para a minha conta. Não é para mim, claro, que eu não estou nisto pelo negócio: é tudo pelo enriquecimento humano, ou seja, para uma fundação com fins lucrativos.

Passo atestado, escrevo até em letra gótica sobre papel vegetal, colo-lhe um selo de plástico prateado, suspendo-lhe uma fita da cor do curso e acondiciono tudo dentro de um canudo de latão. Coisa à maneira que pode ser exibida em qualquer gabinete ministerial ou assessoria camarária.

Podem crer que os títalos académicos aqui da Universidade Janadona e Marada, vulgo UJM, são dos bons. Temos um sistema de qualidade certificado que garante que todos os títalos aqui concedidos resultam de um processo de avaliação apuradíssimo que criva os bestiúnculos que se candidatam só deixando passar os que têm a escola toda das jotas, que já mostraram ter dotes comprovados de lambe cus, que sabem dizer sound bites com ar assertivo e que acham que singrar na vida é sinónimo de andar à babugem.

Dão-se boas referências. Um lote de alumni de arraçada estirpe pode ver-se todos os dias a pisar os corredores do poder, a passear-se pelos balcões onde se vendem comentários a copo, a sorrir e a abanar a cabeça como cães amestrados enquanto o grande chefe fala ou a fazer número quando é preciso medir afluências a metro.

UJM, a universidade do português corrente que quer singrar na vida.


É inscreverem-se, é inscreverem-se! Fazem-se descontos e dão-se brindes.

A UJM é barata, não cansa a pestana e os resultados são imediatos!

Se quer ser doutor ou assessor, chefe de gabinete ou adjunto e não tem tempo a perder com estudos, exames e tretas dessas venha já até à UJM! 


Esperamos por si.

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Uns metros acima do chão


Numa cidade muito bonita, com um calor de algarves, capto pessoas que gostam de estar desprendidas do chão.




Onde é que eu estou? Alguém adivinha?

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sábado, outubro 29, 2016

Mi liga, vai...
And turn me on... vai...Turn lá...



Havia a arquitecta e já dela aqui algumas vezes falei. Uma mulher excessiva, absolutamente livre, destravada em tudo, imoderada, desbocada, divertidíssima. Dos meses em que lidei quase diariamente com ela guardo as melhores recordações.

Não era bonita nem elegante segundo os cânones. Alta, volumosa, descomplexada, tornava-se atraente pelo conjunto, pelo excesso, pelo riso.

Como me sinto mais próxima de pessoas assim do que de gente muito irrepreensível e piedosa, logo se estabeleceu entre nós compreensão e estima.

No meio havia um engenheiro. Eu representava o dono da obra, ela a arquitecta que idealizara o projecto e zelava pela fidelidade da obra à ideia, ele o responsável pela execução.

O engenheiro, um bom homem, preocupado com o orçamento, preocupado com os desafios que as ideias dela lhe colocavam, preocupado com o pessoal a seu cargo -- e ela nem aí, cheia de ideias, que tinha porque tinha que ser e ele que se desunhasse. Ele dizia que desistia, ela dizia que bye bye, ele dizia que deixava a obra a meio, ela dizia que o que não faltava era quem tivesse competência para fazer uma obra banal. Eu divertia-me com a permanente refrega e guardava dentro de mim o registo daqueles momentos tão divertidos.

Uma vez, o presidente da empresa, homem habituado a mandar e a quem meio mundo reverenciava, prestigiado ex-ministro, quis lá ir ver as obras. Gostou, elogiou-a mas, às tantas, disse que uma coisa qualquer se calhar ficava melhor lá de uma determinada maneira. O que ele foi dizer. Não sei porque raio de carga de água ela passou-se, mas passou-se à séria e, furibunda, virou-se a ele, assanhada e, alto e bom som, vociferou: 'Era o que me faltava estar a ouvir palpites. Não há cão nem gato que não me apareça pela frente a dar palpites! Era o que me faltava!'. Ele ficou varado. E, quando ia reagir, vai ela e vira-lhe as costas e sai porta fora. A mim deu-me vontade de rir mas ele ficou lívido. Nunca mais lá pôs os pés e ficou a odiá-la. E ela a ele. 

Mas o engenheiro das obras.

Um dia precisou de resolver lá um problema: onde ela queria abrir uma parede, passavam uns canos e ele precisava de saber se poderiam adaptar a abertura por forma a não ter que mexer na canalização. E ela não atendia o telefone. E era urgente. E eu num dilema: andando ela de namorado novo, provavelmente estava em casa sem vontade de atender um engenheiro a falar-lhe de problemas. Mas se não se falava, também não se ia adulterar a ideia ou, alternativamente, arranjar problemas e gastos extras.

Então, dei-lhe o número de telefone de casa dela. No outro dia, mal me viu, o bom homem veio na minha direcção, escandalizado. Então o que era? Em vez de tocar, aquilo passava para o atendedor de chamadas e aparecia a voz dela, dengosa, falando à brasileira de casa de meninas 'mi liga... vai...' e continuava com palavras convidativas -- de tal forma que ele até tinha tido vergonha de continuar a ouvir. Nem tinha chegado ao ponto em que poderia deixar mensagem.

Quando, nessa tarde, ela apareceu na obra e lhe contei, fartou-se de rir. E eu tinha acertado: estava mesmo com o namorado e queria estar sossegada. Sabia que, com uma mensagem de acolhimento daquelas, quem ouvisse não ia voltar a ligar tão cedo.

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Turn me on


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La maja desnuda (lá em cima) armada em menina de anúncio do Correio da Manhã é tropelia de Kajetan Obarski que não quis cá saber de venerações a Goya.

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E queiram, agora, descer até ao post abaixo.
Conforme queiram.

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Os olhinhos do Trump foram até às ruas de Copenhaga


Em todo o lado onde se vote para eleger o próximo presidente americano, há que batalhar: 
não a Trump.

We would like to say to the American citizens: don’t forget to vote – it has consequences.”  
-- disse Pia Olsen Dyhr

Que disse também:

I don’t think Trump as president will be positive for the development of the world and therefore Denmark


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A trupe dos palhaços assustadores



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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado.

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sexta-feira, outubro 28, 2016

João, o mano de António





Só para dizer uma coisa. Qualquer coisa me caíu mal aqui há algum tempo, pouco, tenho ideia que um sumo frio a meio da digestão de umas ostras, ou coisa do género. Sentia-me mal, a desmaiar (a minha tensão, sempre baixa, quase tangencia os níveis de desmaio com alguma facilidade). Fui às urgências. Quando lá estava, entre meias palavras de alguém, percebi que ele tinha passado mal, que havia qualquer coisa de grave.

Tempos antes, quando andava por lá por altura da artroscopia aos joelhos, via-o passar, silencioso, quase esvoaçante na sua bata branca. 

Via-o, então, mais magro, envelhecido.


E lembrava-o anos antes, bem mais novo, mais encorpado, sorridente, ar sedutor, no 31 da Armada, logo ali abaixo. Por vezes, via-o à noite na televisão, contando a sua experiência americana, as suas expectativas na medicina de cá, as inovações que tinha trazido. Confiante na televisão, confiante ali, encantando a companhia de mesa. À porta do 31 há buganvílias bem coloridas e ele passava por elas, homem bonito, e eu pensava nele como o irmão do António. A família Lobo Antunes tinha produzido meia dúzia de rapazes talentosos. Aquele era o bem sucedido neurocirurgião, irmão do irreverente e então bem mediático escritor.


De vez enquanto, nos anos que medeiam as recordações, lia testemunhos agradecidos, falavam da sua atenção, da sua dedicação, do apoio humano que prestava aos que dele se abeiravam para cirurgias críticas.

Quando o via atravessar o amplo recinto da recepção principal, ar quase tímido, a bata aberta esvoaçante, pensava que deve ser ainda mais duro para um médico ver o mal a tomar conta do corpo e nada poder fazer para o impedir.


António, que sempre pouco falou com os irmãos mas que tanto gosta deles, vai ficando mais sozinho. E eu, que não gosto de aqui falar dos que se vão, confesso que sinto pena.

Tal como me senti triste quando morreu Margarida Sousa Uva, uma mulher que abdicou da sua vida e que se manteve sempre delicada e silenciosa, um sorriso sempre um pouco triste. Senti pena que tivesse estado doente, que tivesse sofrido. Li que morreu em casa e penso que deve ser muito triste para quem vê extinguir-se a vida de alguém que muito se ama. Os filhos vendo a mãe a sofrer, a ser abandonada pela vida. Custa-me muito pensar nisso.

Lembro-me dos meus tios que, com a mesma doença, se foram tão rapidamente e quase de seguida. Quando ainda não se sentia muito mal, o meu tio gracejava: 'não podemos rir-nos um do outro'. E soltava a sua gargalhada mas agora, em vez de longa e sonora, breve. Como se rindo de uma ironia, o riso era breve. Uma dor grande a deles, a dos meus primos, a minha, a dos meus pais. As operações, a aflição à espera do resultado dos exames, a aflição ao saber que o fígado já estava afectado, depois que já se tinha espalhado, o corpo cansado, o já mal poder andar, o cansaço na voz, o a gente sentir que já não duravam muito. Falava com eles e pensava que não sabia se voltaria a fazê-lo. Ainda agora, às sextas feiras ao fim da tarde, volta e meia penso 'antes, a esta hora, eu pensava que não podia esquecer-me de ligar à minha tia'. Ou quando eu andava a ver com a Embaixada de Cuba como fazer para o meu tio ir lá tratar-se, parece que tinham um tratamento promissor, e na segunda-feira iam ao médico para ver como; e o meu primo ligou-me à hora do almoço e eu pensava que era para me dizer o que é que eu tinha que tratar mas ele estava a chorar e quase não conseguia falar e era para me dizer que o pai tinha morrido. E depois tive que ir dar a notícia à minha mãe e ela chorou tanto e eu não queria que ela sofresse e ela também não sabia como dizer ao meu pai para não o fazer sofrer porque eles eram tão amigos.


E o susto com a minha mãe. A voz dela, nervosa, a dizer que tinha que falar comigo, que tínhamos coisas a combinar. E eu a chegar lá a casa, eu com a aflição a apertar-me o pescoço, e ela a dizer que tinha cancro, que tinha que ser operada e a chorar, e agora o que vai ser do teu pai? E depois uma pessoa a agarrar-se a cada esperança, que era só ali, que era dos melhores, que se tirava tudo. Mas depois, para a operação, mais exames e os exames a terem que ser repetidos, uma mancha suspeita, e logo a esperança a desaparecer, e a aflição sempre presente, quase sem se conseguir respirar, a inquietação, a ansiedade. 

Ficou bem. Mas o medo. O medo.

E lembro a cunhada de uma amiga minha. A cunhada mais nova, vinte e poucos anos. Um caroço. Ela a dizer-me que estavam muito preocupados e que a cunhada já se tinha informado, já sabia o que tinha. Estava em casa dela pois eram do Alentejo e tinha que ir ao IPO. Eu lá em casa e a mãe a dizer-me que não, com certeza apenas um gânglio, que tinha apetite, bem encarada. E eu cheia de pena.

Piorou, experimentou tratamentos em Londres, fez quimioterapia, perdeu o cabelo, andava com um lenço quase turbante, bonita, jovem, ninguém diria. Voltei a vê-la num verão, em Vale de Lobo. Biquini amarelo, lenço amarelo com moedas douradas como uma cigana, e ela rindo, de pé entre amigos, feliz, exuberante. Ninguém diria. Sentia-se bem, talvez se tivesse curado, pensava.

Poucos meses depois, no início do ano, encontrei a minha amiga na Avenida da Liberdade. Estava magra, mal encarada, triste. A cunhada tinha morrido lá em casa dias antes. Foi horrível, contou. Para todos um grande sofrimento, nem imaginas, dizia-me ela, exausta. Contou-me: pelo natal quis um blusão de pele, vê tu. Estava de cama, muito mal, sem força, e quis um blusão de pele. Fizemos-lhe a vontade, claro. Contou a minha amiga, um fio de voz. Fez-me impressão. Perguntei-lhe se a cunhada tinha chegado a vestir o blusão. Desatou a chorar.


Leio que morreu em casa, o doutor João Lobo Antunes. Talvez as abas da sua bata branca se tenham aberto como asas, talvez seja agora um anjo. E sei que talvez não faça sentido eu dizer isto. Mas quem sabe se faz.


Uma vez o meu pai dizia, com muita pena, que se não tivesse sido a pneumonia, o meu avô não tinha morrido. Morreu aos noventa e tal, o meu avô, não sei exactamente quantos. Eu respondi: 'Mas quê? Vivia até aos duzentos?'. A minha mãe desatou-se a rir e o meu pai também sorriu. Todos, um dia, nos vamos. Com sorte, iremos sem sofrimento depois de uma vida feliz. Mas custa-me especialmente quando uma pessoa vê o seu corpo a ser progressivamente minado pela doença, sente que está a dar trabalho e a causar sofrimento aos outros, vê que os outros percebem a sua finitude, vê a pena nos olhos dos outros, percebe que não vai estar para acompanhar a vida dos que ama. Isso custa-me muito. Os leigos talvez alimentem uma esperança. Os médicos sabem que não, conhecem as fases, sabem que vai ser sempre pior até ao fim. E confirmam isso no olhar daqueles que os amam.


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Não gosto de falar dos que partem. Não sei dizer palavras de circunstância nem sei esconder as emoções. Por isso, raramente falo. E comecei este texto a dizer que era só uma coisa, não queria alongar-me. Mas agora já não me lembro que coisa era.

Talvez que me lembro dele, no verão, sorriso luminoso, a passar entre as buganvílias em flor.


[Desculpem-me este texto tão sombrio].

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As imagens mostram como somos no mais íntimo de nós. 

A beleza que a compaixão de João Lobo Antunes soube compreender.


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Desejo-vos a todos, meus Caros Leitores, um dia feliz.

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quinta-feira, outubro 27, 2016

Podia ser um aprendiz de líder* mas não: é apenas um aprendiz de maluco
[Ena Jorge, tanto peixinho... Anda ver o Oceanário...]


Continuo com ele. Algum psicólogo que aí esteja que explique isto. Pensará o meu subconsciente que, com tanta maluqueira por que passo durante o dia, já só me sinto bem entre doidos? Ou quererá ele, o meu subconsciente, que eu perceba que não tenho razão de queixa já que malucos a sério são de outro calibre que não aqueles aprendizes que animam o meu dia?

Le Puy en Velay, França

Pois não sei. O que sei é que saio cedo de casa e só regresso bem de noite e, todo o santo dia, é um entra e sai e um 'temos um problema' ou 'posso dar-lhe uma palavrinha?' e, pelo meio, telefonemas, dezenas de mails, reuniões. E eu, aqui chegada, às quinhentas da noite, só me apetece uma de duas: ou um duche prolongado ou pôr-me a ver vídeos malucos. Como duche prolongado a esta hora faria o meu marido rifar-me já que agradece que eu, ao menos, não faça barulho, opto por me pôr aqui a rir a ver endoidados verdadeiramente encartados. Nisto dos doidos varridos tenho alguns de estimação. Agora voltei ao João Vuvu ou João de Deus.

Há bocado estive a ver o Sócrates com a Judite. Aquele penteado e aquela pintura de olhos não favorece especialmente o rosto. Refiro-me à Judite, bem entendido. Ele igual a si próprio. De cabeça erguida, afirmativo, oferecendo o peito às balas. Pode ser que um dia eu reconheça que me enganei redondamente. Mas, até lá, vejo-o como sempre o vi. Indiferente às polémicas e aos cães que ladram na beira da estrada, ele e a sua carruagem continuam a passar.


A vida é curta para ser gasta com logros, ódios, sombras negras, ocas vaidades. 

Caíu um assessor por, ao que se diz, mais uma falsa licenciatura. Cai debaixo de uma pública humilhação. A ser verdade o que se lê nos jornais, interrogo-me se o que ele sentia ao ser tratado por doutor ou engenheiro compensava o risco de vir a passar por este vexame. Eu diria que não.

Mas cada um sabe de si. Quem sou eu para julgar sobre as motivações dos outros?

Juliette et les Esprits, Montpellier, França

Não ligo a tretas, à imagem, a tudo o que me parece fútil e efémero. Não me passaria pela cabeça dizer que sou doutorada. Para quê? Qual o gozo disso? Se fosse, tudo bem. Mas não sendo, para quê querer parecer o que se não é? Sou licenciada numa altura em que eram 5 anos intensivos, fiz pós graduações, cenas de programas de gestão de alta direcção e tanta coisa que já nem me lembro bem. Não tenho o hábito de registar o que faço, ou os cursos, seminários ou conferências em que participo. Vejo CVs em que cada passo que dão aparece plasmado como se tivessem posto um pé na lua. Nem me encaixo nos europasses, como é bom de ver. No outro dia pediram-me um CV actualizado e até me deu vontade de rir a versão antiga que encontrei. Optei por escrever de novo, sintetizado, sem palha. De tudo isso, espremido, o que uso hoje é quase nada. Pouco do que preciso tem a ver com isso. Serve-me de mais a literatura, um poema lido ou ouvido, a música, o conhecimento das pessoas e da vida do que de toda a teoria com que tentaram empanturrar-me. Felizmente tive o discernimento de dosear o que retinha. 

Cada vez mais acho que as pessoas que se levam muito a sério não são boas da cabeça. Ou são umas chatas que não se aguentam ou são chanfradas. 

Não sei se foi ontem ou antes de ontem, vi um bocado da entrevista de Jerónimo de Sousa na televisão, não sei em que canal. Pensei: 'ora aqui está um homem bom'. E fiquei contente por ter pensado isto. Acho que é das melhores coisas que se pode dizer de um homem. Não faço ideia se o líder do PCP estudou mas isso é tão irrelevante face ao que ele tem de densidade humana e de carisma que parece até estultícia trazer esse assunto para aqui.

Em Palmitas, Mexico, toda a cidade foi pintada com coloridos fortes

Mas enfim. O sono com que estou faz destas: já nem sei a que propósito veio esta conversa. Mas pronto, é um sinal para me despachar, mostrar o vídeo que estive a ver há bocado, pegar na trouxa (qual trouxa?) e ir pregar para outra freguesia.

E, entretanto:

Vai chamar pai a outro!




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As fotografias de casas mostram pinturas que enganam os transeuntes incautos.
(Mais no Bored Panda)

(*) Aquele asterisco no título tem a ver com o malandreco do Sócrates ter dito à Judite que o António Costa ainda está a aprender a ser líder. Cá se fazem, cá se pagam. Olho por olho, dente por dente. Mas inócuo. Coisa de mano velho e mano novo. 


Lá no título, o aprendiz de maluco não tem nada a ver nem com o Costa nem com o Sócrates: é apenas o filho do pai aqui de cima.  

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E desçam, por favor, caso queiram ler recordações minhas a propósito do maluco que apanhava moscas.

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O bestiário ou o cortejo de Orfeu


A minha vida já deu cinquenta mil voltas, já trabalhei em vários locais, já tive colegas que perdi de vista, já perdi a conta àqueles com quem gostei tanto de conviver e de quem já raramente me lembro. Um dos meus mais fantásticos colegas começou por ser grande inimigo. Mas acabámos bons amigos. Diziam que liderávamos facções antagónicas dentro da empresa. Vínhamos de empresas que antes eram concorrentes e o processo de fusão começou por não ser bem assimilado. Se havia facções inimigas, eu não fazia por isso. Mas ele eu acho que sim. Os homens têm aquele lado bélico que os faz gostarem de ter inimigos, cultivar o ódio ao outro para alimentar tropas fiéis, travar batalhas, contabilizar despojos. As mulheres não são assim. Mas a verdade é que eu também não lhas perdoava e, de cada vez que eu achava que ele estava a pôr-se a jeito ou a ser menos transparente ou menos correcto, caía-lhe em cima a pés juntos.

Volta e meia ele apresentava queixas de mim ao presidente da empresa e este vinha tirar a coisa a limpo comigo. Só o facto de eu saber que ele se tinha armado em queixinhas já me tirava do sério e era só até surgir a hipótese de eu lhe aparecer pela frente, dando-lhe desandas que o deixavam apeado. Lembro-me que uma vez ele me tinha feito uma que me tinha deixado furibunda. Segurei-me para deixar que surgisse o momento em que o justo correctivo lhe ia doer a sério. E um dia, com ele entre os subordinados, deixei-o verdadeiramente arrasado. O vexame custa mais quando é testemunhado.

Fazer isto não me deixava feliz. Na verdade, era mais forte que eu. Por cada uma que ele me fazia, geralmente à traição, respondia-lhe eu à bruta, em campo aberto.

Numa altura, tivemos um desentendimento tão sério a nível profissional que teve que ser chamada uma empresa de consultoria para vir arbitrar a contenda. Mais uma vez a nossa empresa se dividiu ao meio, cada um de seu lado, numa luta sem tréguas. Uma vez, quando a coisa estava feia, ele tentou negociar: ele cedia numa coisa, eu cedia noutra - propôs ele. Neguei-me, que não negociava as minhas convicções. A administração assistia incrédula a uma tal disputa, tentando deitar água na fervura, tentando que conseguíssemos conciliar pontos de vista. Não conseguiu. Fomos até ao fim. Ganhei e ofereci-lhe o meu silêncio para que não pudesse acusar-me de deitar sal em ferida aberta. 

Mas, não sei como nem porquê -- talvez porque tanta guerra tão extremada tenha feito com que cada um de nós reconhecesse no outro alguns méritos -- tudo isso ficou para trás e, mais tarde, acabámos a rir das guerras que tínhamos travado.

Era uma pessoa que sendo um excelente profissional e uma pessoa que cultivava, em público, uma certa snobeira tinha, depois, em privado, um lado de desconcertante maluqueira.

Poderia escrever dezenas de posts a contar peripécias a que lhe assisti. Há pouco, depois de acordar (uma vez mais caí aqui no sofá e adormeci), a ver se espertava, pus-me a ver excertos do João de Deus. E, ao ver este aqui abaixo, lembrei-me que este meu colega, senhor director muito importante, gostava de estar no gabinete de janela aberta. Por baixo da janela havia um jardim. Por isso, volta e meia, havia uma mosca ou melga sobrevoando-lhe a secretária ou a mesa de reuniões. E estavamos nós, fossemos quantos fossemos ou fossemos quem fossemos, a tratar de assuntos que até poderiam ser importantes e, de repente, ele sacava de um mata-moscas daqueles à antiga que tinha sempre à mão, ou debaixo da cadeira (se estivesse na mesa de reuniões) ou por baixo do tampo da secretária, um daqueles que são constituídos por uma haste com um rectângulo de plástico na ponta, e zás, uma traulitada na mosca. Ainda me lembro de um dia em que ele estava, como sempre, à cabeceira da mesa e a mesa cheia de gente em volta e a tratarmos de assuntos sérios com pessoas com quem ele até nem tinha muita confiança e, estando um outro cavalheiro a falar, vai ele e zás, pumba!, um assassinato em cima da mesa mesmo à frente do outro que, não estando à espera de tal coisa, deu um salto na cadeira, verdadeiramente assarapantado.

Eu fartava-de de rir com tamanho despropósito. Depois ficava a mosca espatifada na mesa. Ele pedia licença, levantava-se e, com um papel, arrastava a defunta para outro papel que atirava para o lixo. E prosseguia a reunião como se nada de insólito se tivesse passado.

Outras vezes, dava com o mata-moscas no ar, vidrado na mosca, não descansando enquanto não a matasse. Se a mosca voava na minha direcção e eu o via ameaçador, dizia-lhe 'nem lhe passe pela cabeça dar-me com isso' porque já o tinha visto dar com aquilo em colegas, nos braços, nas costas.

Contando isto assim talvez se fique a pensar que se trata de um maluco. Talvez seja um bocadinho. Mas é um profissional dos melhores que já conheci e, quem não lhe conheça este lado mais privado (digamos assim), nem de tal suspeita já que guarda uma certa distância e gosta de mostrar um lado de gentleman, algo superior.



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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira.

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quarta-feira, outubro 26, 2016

Relatividade -- aula prática





A mesa era redonda. Não conhecia ninguém. Melhor, apenas um sem me lembrar de onde. Soube-o depois: conhecimento superficial e antigo. A conversa foi-se desenrolando, solta, várias pontas. À minha direita, uma realidade muito díspar da que conheço. Falam de militares, de segurança, da escola israelita. À esquerda palavras que conheço mas que jamais pronuncio. Jargão. Muita assertividade, muito conhecimento, nenhumas dúvidas. Falam de experiências noutros países, viajados, internacionais. À minha frente um homem mais velho, ar um pouco cansado. Tal como eu, apenas ouve. De vez em quando, alguns assuntos, à direita, despertam a minha curiosidade. Ouço mais atentamente a ver se percebo e, de vez em quando, faço uma pergunta. Temo que a pergunta seja descabida mas respondem-me com delicadeza. Às tantas, o senhor da frente começa a falar. Diz coisas interessantes. Tem cansaço na voz e na expressão, como se já tivesse visto tudo o que há para ver. A conversa à esquerda vai animada, parece que descobriram a verdade, sabem tudo. Não me desperta qualquer curiosidade. O senhor olha para eles e não diz nada, acho que tem pena deles. Também mais ou menos à minha frente está um outro, silencioso. De vez em quando, parece querer enturmar-se, diz qualquer coisa. Mas ninguém parece interessar-se e ele volta a ficar silencioso.


A sala muito bonita. Pé direito muito alto, as paredes cobertas de espelhos emoldurados por talha dourada, castiçais, reflexos, luzes. Do tecto descem grandes candelabros. Na verdade, lustres imponentes. Entre os espelhos, grandes pinturas, óleos clássicos. A meio da mesa uma jarra de vidro muito alta, daquelas a que se chama solitário e, nela, um pé de flor também alto, e a flor quase escandalosa de tão exuberante num ambiente tão clássico.

A comida muito boa, o vinho bom. 

Pensava no que tinha escrito poucas horas antes. As lágrimas do refugiado, o abraço de dois outros, a triste sina dos que nada têm. E no que tinha lido depois: as crianças que ficam num contentor na fronteira e que seguirão para o reino unido onde lhes traçarão o destino. Meninos e meninas sem pais, sem um beijo à noite quando adormecem. Um mundo silencioso, insalubre, que eu e os meus companheiros de mesa ignoramos. Aqui, a esta mesa, somos evoluídos, uma elite informada.

Quando nos sentámos, tínhamos na mesa, à nossa frente, um prato grande e um pequeno por cima e, dos lados, vários talheres do mais fino material. Em frente três copos elegantes. Depois, foram trazendo mais pratos, vários, confecção sofisticada, empratamento esmerado. Nenhum dos comensais disse que a comida era boa. A mim apetecia-me introduzir esse tema, comentar 'que bem que sabe isto, quem haveria de dizer que estes ingredientes combinavam tão bem...'. Mas não disse. Parecia que todos estavam tão habituados a comida tão requintada que nem lhes ocorria saboreá-la e, ainda menos, prestar-lhe atenção. Também me apetecia dizer que o tecido do guardanapo era macio, bonito, que quase me apetecia bordá-lo. Também não o disse.


A conversa foi fluindo. Agora à direita a conversa já ia noutro sentido. Investimento público, investimento privado. Países onde se fazem grandes investimentos públicos, biliões, países em forte crescimento. Apetece-me fazer perguntas, saber melhor de que falam. O tema interessa-me mas apenas o afloro ao de leve. Não estou para grandes conversas, apetece-me guardar distância, ouvir apenas. Mas penso que, apesar de não estar particularmente conversadora, talvez este seja mesmo o meu lugar, bem longe da escrita vagabunda pela noite fora. À esquerda, a conversa vai em crescendo: projectos, uma animação, muita auto-afirmação. Tenho vontade de dizer que não é nada daquilo, que é tudo ao contrário, tudo, tudo, que deviam ficar calados durante trinta dias, a ouvir música, a ler, a olhar o mar. Mas não digo nada, não quero interromper aquela alegria. O senhor da frente agora começa a contar alguns episódios recentes passados consigo. O outro, antes silencioso, começa a despertar. Tem uma voz grave que contrasta com a candura do olhar. Conhece o mundo, traça paralelos, aponta contrastes. Penso que poderia ser professor tal a forma como coloca a voz e como usa um tom pedagógico. Acho que julga que estou a prestar atenção. Não estou. O que ele diz não me interessa.

Quando trouxeram a sobremesa estava eu a pensar que era bom que algum começasse a dizer um poema ou que, ao menos, não parecessem homens de negócios, gestores, executivos.

Depois veio o café. Já todos falavam com todos e talvez eu também estivesse a participar. Lembro-me agora que me fizeram várias perguntas, que me ouviram com atenção. Mas, agora que aqui escrevo, sei que foi uma outra. Sou muitas e talvez sempre convincente.


Depois levantámo-nos, despedimo-nos. Quando estava a sair, encontrei um conhecido com quem tinha tido uma reunião poucos dias antes. Não me apeteceu ficar mais tempo ali naquele ambiente tão requintado e, para atalhar conversa, cumprimentei-o ao mesmo tempo que me despedi. Como se estivesse cheia de pressa, fiz sinal que falávamos por telefone. E estava mesmo cheia de pressa. Ao princípio da noite, telefonou-me. Podíamos ter-nos desentendido mas encontrámos um caminho comum. Quando acabou a chamada, pude, então, finalmente, ouvir música, em paz. Estava a precisar.

E agora estou a chegar ao fim de mais uma jornada e ainda não ouvi um poema.

Não sei dizer se o meu dia valeu a pena.


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As imagens são algumas das melhores fotografias da competição da Nikon Small World Photomicrography 2016.

Da primeira dizem ser: Caudal Gill Of A Dragonfly Larva
Da segunda: Wildflower Stamens
Da terceira, a flor etérea: Retinal Ganglion Cells In The Whole-Mounted Mouse Retina
Da quarta: Leaves Of Selaginella
Da última: Front Foot (Tarsus) Of A Male Diving Beetle

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um dia feliz.

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