Mostrar mensagens com a etiqueta Erik Satie. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Erik Satie. Mostrar todas as mensagens

domingo, fevereiro 07, 2021

Talvez um buraco habitado pelo vazio

 



Estes dias são muito absurdos. Vivo num lugar que até é agradável mas, estando confinada, tanto poderia estar aqui como noutro lugar qualquer. Quando, no confinamento do ano passado, nos mudámos para o campo também estávamos ali como se o mundo fosse apenas  aquele lugar. Agora também. Saímos para fazer uma caminhada aqui à volta e, de momento, este é o nosso mundo.

Tem estado, por aqui, muito frio, vento, húmido, chuviscoso. Desagradável. Saí para dar uma volta pelo jardim por volta das seis e, pouco depois, tive que reentrar, o frio estava mau, triste, escuro. 

Aos sábados gosto de dormir até mais tarde para pôr o sono em dia. Mas tinha-me esquecido de desligar o despertador pelo que acordei cedo e já não consegui voltar a adormecer. De tarde, reclinei-me no sofá, pensando repor a situação. Contudo, estava a começar o Samba no canal Hollywood, filme que em seu tempo tinha visto no escurinho de uma sala de cinema, e não quis deixar de rever. Por isso, não dormi de tarde a agora ainda estou com sono.

E mais? Que dizer mais? Nem sei bem.

Talvez que os dois aquários da família já fizeram anos e festejámos -- que é como quem diz -- através de videoconferências. Em qualquer das vezes foi aquela complicação do costume para a minha mãe se pôr a bordo. Cantámos os parabéns em coro, a várias vozes, em total desafinação. Por estes tempos, os presentes chegam por correio e os beijinhos são dados por palavras. No outro dia, dizia a um menino pequenino que nos desse uma fatia de bolo. Disse que não podia ser. Dissemos que estendesse a mão que nós agarrávamos o bolo. Ele assim fez com a sua mãozinha. Encolheu os ombros e disse: é um bolo invisível. E o meu coração derreteu-se em ternura. Estão todos mais crescidos. Há muito tempo que não os abraço à vontade. Ultimamente abraçava-os pelas costas, beijava-os na nuca. Será que ainda vão aceitar que eu os puxe para o meu colo e os abrace e os encha de carinhos? Não sei. Se calhar ficam com receio que os contagie. Este vírus é diabólico, sequelas all over mesmo em quem não é directamente infectado.

No outro dia, fartos desta monotonia, resolvemos ligar para um dos restaurantes onde íamos, às vezes, jantar. Não faz entregas aqui, apenas ali perto. É o filho que vai entregar. Resolvemos ir nós lá. Fiquei no carro. Contou o meu marido que o restaurante, antes cheio que nem um ovo, estava (obviamente) vazio. A mulher na cozinha, como sempre esteve, mas sem ajudantes, só ela. Ele cá fora na sala a atender os pedidos (por telefone). E o filho a ver se tinha que ir fazer entregas. Diz o meu marido que estavam de máscara, o senhor com um cabelo muito grande. Não se deve ajeitar a cortar em casa. Nesse dia, uma vez chegados a casa, preparámos um gin, depois refastelámo-nos com um belo jantar que não tive que confeccionar e, no fim, para acompanhar a bela sobremesa que também veio de lá, bebemos uma bela ginja de Óbidos. Ao ver a garrafa, lembrei-me que a comprámos lá, num passeio que lá demos entre o Natal e o Ano Novo de 2019. Passeámos com vagar, subimos e descemos as ruínhas, entrei nas livrarias. Parece que foi há uma eternidade. 

Era, para nós, muito natural passearmos. Agora, mesmo que, dentro de algum tempo seja levantado o confinamento, já teremos adquirido outros hábitos. Já não iremos com a mesma naturalidade a restaurantes, quereremos verificar se estão arejados, se há distanciamento, estaremos atentos às máscaras, teremos receio que alguém tenha tossido e deixado gotículas no lugar ou nas coisas em que vamos mexer. 

Estranho, tudo isto.

Enfim.

No meu jardim reina o silêncio. Mal se ouve algum pássaro. De vez em quando, algum lá bem no alto, muitas vezes ao longe. De todos aqueles que tanto cantavam agora nem um pio. Não sei onde andam. Estarão transidos de frio, sem vontade de alegrias?

Há ainda laranjas nas laranjeiras e são muito, muito doces. E tangerinas. Mas estas caem muito. O jasmim está a ficar florido. Não consigo deixar de lá mergulhar o rosto para aspirar o perfume que é intenso demais para o meu gosto. Ainda assim cheiro. Quero perceber se o perfume vai evoluir.

Uma outra trepadeira, uma que deixou a anterior proprietária espantada pelo que cresceu, está agora a florir, uma flor com uma cor inesperada, muito bonita.

Também fiquei admirada com outra coisa. Ainda não compreendi a dinâmica dos meus novos vizinhos. Dá ideia que é uma comuna de rapaziada. Não consigo descortinar a lógica do grupo. O meu filho diz que deve ser malta que está a formar uma empresa. Espanto-me: iriam alugar uma moradia destas...? O meu marido, para quem nada disto interessa e que goza com a minha curiosidade, para apimentar o mistério fala de outras hipóteses, qualquer delas improvável e estapafúrdia. Mas, dizia eu, estava a sair da sala para um passeio pelo meu jardim, dou de caras com um dos jovens, saindo também da sua, de boné. Devia ir pôr comida nos cães, digo eu. Não sei se anda em casa de boné. Pelos vistos, anda. Sol não há na rua e, em casa, muito menos. Mas, então, ao dar de caras comigo, sorriu abertamente, fez-me adeus com a mão, e disse-me um 'olá, bom dia'. Fiquei muito admirada pois parecem-me sempre muito lá na deles, sempre enfiados em casa, se saem para o alpendre é para estarem na conversa uns com os outros, totalmente alheados em relação à casa do lado. Juraria que nunca antes me tinha visto. E, no entanto, cumprimentou-me com um ar surpreendentemente amistoso.

E eu estar a relatar isto revela bem a falta de assunto que envolve estes meus dias. Nada mais há a relatar. Li, vi televisão, fiz o almoço, fiz um jantar ligeiro, fiz alguns pagamentos, tratei de algumas coisas que, durante a semana, ficam por fazer, fiz os meus telefonemas. O dia correu devagar. Nem é o ser devagar. É a sensação de inutilidade. Parece que estou num buraco inespacial, intemporal. Antes, os meus dias estavam preenchidos de mil coisas para fazer, ia aqui, ia ali, alguém vinha cá, não tinha tempo para mim nem para descansar. Tantas vezes me queixei: gostava de ter um bocado só para mim. Agora é o oposto. O oposto mais oposto que é possível.

Várias vezes ao longo destes dias também me apetece ir passear. Meter-me no carro e ir por aí. Descobrir lugares, olhar pela janela do carro, ter vontade de parar para fotografar, deleitar-me com a beleza que sempre me surpreende. Quando poderei voltar a passear? Íamos passear, íamos descobrir restaurantes, íamos descobrir hotéis. Agora, se formos passear se calhar levamos farnel. Não sei. Parece que não sei pensar nem fazer planos. Parece que acho que não vale a pena fazer planos. E o vazio parece que fica ainda maior.

No outro dia estava a pensar que deveria ter mais uma mesa debaixo do alpendre. O meu marido disse que não, que a mesa que lá está é muito grande, cabemos todos, e ainda temos a mesa desdobrável e mais a outra pequena, redonda, de ferro. Mas eu fiquei a pensar que antes nos encostávamos todos uns aos outros e que, se calhar, nem tão cedo vamos sentir-nos à vontade com essa proximidade. Pelo Natal dividimo-nos por três mesas, distantes umas das outras. Será que, nos próximos tempos, será sempre assim? E sê-lo-á durante tanto tempo que nos esqueçamos que, antes, o normal era estarmos próximos, conversando, rindo, sem receio, descontraídos?

Ao ver o grupo abaixo, um grupo de belas e elegantes mulheres -- todas mulheres Chanel -- conversando em volta de uma grande mesa, todas distantes umas das outras, pensei que vão passar a ser precisas mesas de uma dimensão bem maior do que as anteriores. A vida aos poucos irá distanciar-se do que era, não irá? E todos nos distanciaremos uns dos outros. 

__________________________________________________________________ 

O charme discreto da Casa Chanel, o charme discreto da burguesia

A roundtable conversation hosted by Caroline de Maigret with ambassadors and friends of the House Penélope Cruz, Marion Cotillard, Charlotte Casiraghi, Vanessa Paradis, Alma Jodorowsky, Lily-Rose Depp, Izïa Higelin, Blesnya Minher and Joana Preiss.Filmed after the CHANEL Spring-Summer 2021 Haute Couture show at the Grand Palais in Paris
.

________________________________________

As flores foram fotografadas por Doan Ly

Lá em cima, Trois Gnossiennes por Hans van Manen com Ludmila Pagliero e Hugo Marchand

_________________________________________________________________

Desejo-vos um bom e feliz dia de domingo

quinta-feira, dezembro 10, 2020

Do what you love

 


Sobre o que é mesmo relevante mais vale a gente nem fazer perguntas. Questões deveras relevantes são, por natureza, irresolúveis. Tudo o que é de dimensão terrestre, humana ou comezinha é modelizável, equacionável, de resposta ao alcance da mão. Pode a resposta até ser 'indeterminada' ou 'impossível' mas isso, em si, é uma resposta. Agora o que é intemporal, intangível e que contém a semente da eternidade (o que não é a mesma coisa que ser intemporal) está, por definição, longe do toque humano. Como aqueles espaços abertos a que dificilmente conseguimos atribuir contornos ou estabelecer definições ou funções, assim as grandes questões.

De onde viemos, para onde vamos, o que andamos aqui a fazer -- são questões dessas. Não interessam. Jamais haverá resposta para elas. Podem alguns, por vezes, achar-se ungidos por uma mão divina que lhes permite aventar hipóteses que isso não será senão um consolo, um fraco consolo como diria o senhor consultor presidencial. A própria existência é um acidente, um acaso que vingou mas que, como todos os acasos, tem um prazo de validade. Atingi-lo ou não será também fruto de infinitas e improváveis combinações de acasos. E mais do que isso pouco mais se poderá dizer.

Claro que a natureza apura a inteligência das espécies e, portanto, raciocinando em cima da milionésima derivada da coisa, talvez se possa dizer que viemos para propagar a espécie e ajudar a manter a memória -- e que cá andaremos até que o propósito esteja atingido. Mas isso será já uma inocente e vã tentativa de construção ideológica tão falível quanto inútil.

Haverá quem construa cátedras em volta de bem elaborados enunciados sobre estas questões. São questões intelectualmente estimulantes. Mas inúteis. Tão inútil quanto passar uma vida a ensinar a esquartejar textos para os esventrar do seu sentido, descarnando-as até ficarem no osso da mais pura gramática. E quem diz isso, diz a fazer desenhos artísticos em unhas. Ou a fazer construções na areia à beira de água. Tudo meritório, tudo inútil.

Ora bem, perante a arrasadora evidência que aniquila qualquer amostra de racionalidade que dê forma à nossa existência, o melhor a fazer é o mesmo que fazem todos os outros animais: sobreviver e, nos intervalos, curtir -- ou curtir e, sempre que necessário, sobreviver. Pode parecer a mesma coisa mas, uma vez mais, não é. São, aliás, duas atitudes opostas. E é nas gradações entre estes dois extremos que se encontram as diferentes atitudes perante o tremendo desafio que é a vida.

Seria pois natural que os seres humanos não fossem menos inteligentes que os seres não humanos: ou seja, que ocupassem o tempo enquanto dura a sua precária existência na curtição e, nos intervalos, a cuidarem de se manter vivos, da forma menos gravosa possível.

Claro que toda esta minha conversa revela uma de duas coisas: ou estou fora da realidade e desconheço o mundo cão em que grande parte da população sobrevive ou sou doida e julgo a humanidade à luz dos privilégios de quem disponibilidade para estar para aqui com conversas da treta. Ou talvez sejam as duas ao mesmo tempo. Mas também não vou para aqui pôr-me a questionar ou a rebater isso. Seria igualmente inútil.

Digo apenas a única coisa que tenho para mim como muito verdadeira: há uma mistura ideal, quase perfeita, entre fazer aquilo de que se gosta e sobreviver de uma maneira tão prazerosa que nos permita potenciar o tempo e a qualidade para aquilo de que verdadeiramente gostamos. 

Quero eu dizer na minha que se, por exemplo, aquilo de que gostamos mesmo é de andar a fazer montinhos de pedras à beira do rio mas se, para sobrevivermos, tivermos que andar a limpar esgotos em condutas subterrâneas durante todo o dia não sobrando tempo para ir para a beira do rio fazer montinhos, então mais vale ajustar alguma coisa para que a vida não seja uma monótona e persistente frustração. Pode, por exemplo, arranjar-se uma forma de sobreviver que permita deixar tempo para ir para a beira do rio fazer os ditos montinhos ou, em vez de tudo isso, arranjar uma forma inteligente de conjugar o gosto com a forma de sobrevivência como, por exemplo, ser pastor, ocupando o tempo livre a fazer montinhos de pedra ali mesmo, na montanha.

E tudo isto, não tenho dúvidas, é conversa jogada fora. Mas fazer o quê a esta hora? É a minha forma de existir, estando na boa: escrevendo, ouvindo música, colocando aqui fotografias que fiz durante o dia colocando-me debaixo das árvores -- dois outros prazeres: fotografar e estar perto de árvores --, vendo vídeos macios e que vêm em paz. Antes, no início da noite, falei com a minha mãe, com os meus filhos, soube que os meninos estão bem. E já li. E, entretanto, trabalhei fazendo aquilo que gosto de fazer: mudar, organizar, motivar, inspirar, puxar, construir.

Um dos vídeos que hoje o YouTube tinha para me mostrar, vá lá eu saber porquê, é justamente este: Faz aquilo de que gostas e eu, com vossa licença, vou partilhá-lo convosco.

____________________

Hoje os meus dedos não correram na direcção dos contos de natal. Como dizia ontem a outra, a mais bela: não se escolhe. Os dedos aventuraram-se por onde querem e eu limito-me a observar.

_______________________________________

Desejo-vos uma boa quinta-feira.
Be happy.

quinta-feira, julho 16, 2020

Nestes dias de canícula, respiremos juntos, dancemos à chuva





Estava um calor que não se aguentava. Gosto de calor, em estando à vontade gosto de andar sem roupa nem sapato. Mas nem assim se aguentava. Tanto calor, tanto. Na véspera, também muito, a meio da tarde o céu toldou-se. Tudo cinzento, opressivo. As cigarras suspenderam a gritaria. Não gostei. Pensei que tomara que não fosse a tal trovoada seca que tantas vezes traz sustos no ventre. Em vez de desemprenhar as águas, desemprenha raios e coriscos. Não costuma trazer vida, tantas vezes vem é com coisa má. Mas, passado algum tempo, o véu cinzento carregado foi-se indo e as cigarras voltaram à sua agitação. Passado um bocado, algumas nuvens brancas e, pouco depois, nem isso, só um imenso azul. 

Hoje sempre azul, melhor assim, mas, ó céus!, dele descia um calor abrasador. Muito mau estar a receber aquele sol na pele. Não se conseguia.


Parece que as temperaturas vão continuar a subir. Mete medo. Se se levanta uma aragem mais agitada o medo cresce. O tempo assim traz em si um desvio ao natural. Não gosto. Gosto de sentir a natureza como tenho ideia que ela era antes de se transfigurar. Em dias como estes sinto saudades da aragem fresca, das primeiras chuvas, do arrepio cheiroso a terra que sobe pela pele.

Fui ali à janela. Está escuro. Só as luzes da cidade iluminam o rio. Vem um fio de ar mais fresco mas não a maresia fresca e cheirosa pela qual anseio. 

Esta quinta-feira tenho tanto que fazer que nem sei para onde me virar, muita coisa para tratar. O que me tem trazido animada e que traz o regaço cheio de mudança começa a dar-me trabalho. E prende-me as ideias. Tenho vontade de me deixar estar agarrada a isso, a pensar, a fazer projectos, a antecipar como será. Que voltas e reviravoltas a minha vida está a levar. Parece impossível. E o mais curioso é que, quanto mais mudo, mais ainda me apetece mudar. Despir a pele toda, renascer com uma vida inteiramente nova.


Faço contas. Penso: já estamos no verão? Quanto mais tempo deste calor iremos ter? Como será a minha vida até ao Outono? Tanta coisa que me espera e eu com tanta vontade de começar a percorrer novos caminhos. E o outro surto? No outono? Até ao inverno? Até ao início da primavera? Como vai ser? Nesta vida condicionada em que não consigo habituar-me a viver como se na normalidade estivesse? A trabalhar em casa? Cada vez mais desabituados de contactos físicos? Voltaremos a habituar-nos? Como serei eu um dia que tudo isto acabe? 

Esta quinta-feira calçarei sapatos altos, voltarei a perfumar-me. Um brilhozinho nos lábios não vale a pena. No outro dia esqueci-me e, quando dei por mim, estava a máscara toda cor-de-rosa por dentro. E, quando cheguei a casa e me descalcei, doíam-me os pés. Há muito tempo que não usava sapatos altos. Tudo estranho nesta vida arrafeirada. Para estar a falar ao pé dos outros, pomos máscaras. Sentimos vontade de ir para casa e falarmos por videoconferência para estarmos com os rostos à vista. Ontem um jovem pediu para falar comigo, tinha uma coisa para me dizer. Depois perguntou se podia desabafar. Claro que sim. Olhos nos olhos, em privado. No outro dia um colega, ao ouvir outro a pedir para falar comigo em privado, disse que era o confessionário. Um confessionário virtual, olhos nos olhos. Gosto. É uma sensação de ainda maior proximidade. O rosto de um junto ao rosto do outro, a conversarmos, a respirarmos em sintonia, em total confiança. E só me ocorre que não vamos esquecer-nos destas conversas nem vamos querer prescindir desta proximidade que é tão real.


Bem, derivei. Já devo ir na enésima derivada. O tema era também outro: era o como seria bom dançar à chuva, à noite, talvez ao luar, talvez um lobo a espreitar, arfando no silêncio da intimidade lunar.

Assim faz o extraordinário Sergei Polunin, semi-deus, semi-bicho, semi-homem-pássaro (e é deliberadamente que o somatório transcende a unidade).
‘We can do together what we can’t do alone’- Hard times can come into everyone’s life. It is hard to not give up. Take a moment, breathe, and find the strength that you need to go into a brighter future. Dance will help to go through the bad times, and everything will get better. As long as we are dancing together.

Voa Sergei, voa.

And let's breathe together


Respiremos juntos também, falemos olhos nos olhos.

E saúde. E um dia sereno.

sexta-feira, março 22, 2019

Qual a palavra para dizer azul, silêncio, limpidez?





Nos outros, eu gosto de ler textos curtos, palavras soltas. Mas eu, quando me ponho a escrever, não sei ser contida. Falta-me um freio, falta-me um filtro, falta-me a sabedoria para destilar as ideias. 

É como na pintura. As que escolhi e comprei aqui para casa são neutras, claras, simples. Eu, se me ponho a pintar, desfaço-me em cor, incapaz de controlar a torrente.

Não sei que é isto em mim, este excesso. 


Por exemplo, agora estou com vontade de escrever sem ser por nada e gostava mesmo era de ser capaz de saber dizer palavras silenciosas, transparentes. Estou a escrever e a parar, a pensar, sem saber como escrever para que, quem leia, se sinta como se estivesse a contemplar, em silêncio, uma lâmina de gelo azul, límpida, perfeita. Pétalas de azul efémero.

Também gostava de saber falar sobre a paz. Não a impossível paz no mundo mas, sim, apenas, a paz entre duas pessoas talvez unidas por invisíveis e inconfessáveis laços feitos de palavras. Mas não sei. Acredito que seria preciso muito mais do que sei. Não sei alcançar as quimeras, não sei como aproximar-me do transcendente. Nem sei se a palavra transcendente aqui faz sentido pois desconheço as letras que deslizam, frescas, azuis, que se unem, que formam palavras puras. Afecto, luz, paz, água, azul, olhar, silêncio. Ou fogo.


Uma cama azul, infinita, amores perfeitos e intangíveis, palavras cegas, perdidas, procurando o gesto, o tacto, o remoto olhar. Soubesse eu qual a palavra, a única palavra, soubesse eu dizer pouco e numa única palavra guardar dentro o reflexo, a saudade, o sonho, o murmúrio, o fogo. Mas não sei.

Talvez a palavra amor.

Mas não sei.

_________________________________________________________________

As fotografias mostram o gelo a quebrar-se no Lago de Michigan
_________________________________________________________________


________________________________

quarta-feira, março 13, 2019

Viktoria Modesta
-- a sensual rapariga biónica que o Crazy Horse vai ter em palco em Junho





Viktorija Moskaļova, nasceu na Letónia, na antiga União Soviética, há trinta e um anos. Se há pessoas cujo destino parece traçado à nascença, a bela menina de pele muito branca e cabelo muito preto, foi uma delas. 

O parto correu mal. Houve negligência médica. Fruto disso, passou anos a entrar e a sair de hospitais, acabando por ficar com uma deficiência grave numa perna. 

Para fugirem da sociedade condicionada da antiga União Soviética, tinha ela doze anos quando foram para o Reino Unido. Não viveram, de novo, tempos fáceis -- agora no mundo underground de Londres.

Depois de várias cirurgias sem sucesso e com o futuro comprometido, aos vinte anos Viktorija tomou uma decisão dramática e, de certa forma, muito corajosa: na esperança de passar a ter uma vida 'normal', não fez por menos e resolveu amputar a perna do joelho para baixo.

Desde pequena que tinha tido aulas de música e que cantava. Apesar de todos os problemas, aos quinze tinha-se estreado como modelo. Mas foi, justamente, a partir do momento em que se libertou das amarras das dores que deu asas à sua incomum criatividade. A deficiência viria a transformar-se no seu maior trunfo. Reparando que as próteses que simulavam os membros nunca se confundiam com pernas de verdade, decidiu optar pelo oposto: arranjar uma prótese estilizada, nada que pretendesse ser uma perna de carne e osso. E a partir daí não parou de inovar. 

Com um corpo espectacular, um rosto bonito e uma pele perfeita, todo o seu erotismo se evidencia de uma forma que acaba por ser superlativa quando, em acréscimo aos dotes naturais, se junta o apontamento gótico da perna artificial. E a prótese pode ser em acrílico transparente, pode ser em negro opaco, pode ser luminosa -- mas tem sempre um toque de arte futurista.


Viktorija chama-se agora Viktoria Modesta e é um sucesso. Canta, dança, desfila. É uma performer talentosa, orgulhosa, inovadora.

Viktoria mostra bem ao mundo como há fatalidades que, afinal, são reversíveis. Ou conversíveis. E mostra que a beleza não se cinge a estereótipos. E mostra também que a vida pode ser aquilo que quisermos.

Viktoria, na senda de outras 'bombas' como Dita Von Teese ou Pamela Anderson, vai ser cabeça de cartaz entre 3 a 16 de Junho no Crazy Horse no célebre cabaret parisiense. Claro que é para quem pode: os bilhetes custam 127€ (no entanto, calma, dão também direito a uma garrafa de champanhe).

Mas agora suspenda-se, meu Caro Leitor. Suspenda-se e veja bem as imagens que aqui partilho consigo. E esqueça, por favor, esqueça tudo o que julgava saber sobre incapacidade física. Esqueça. Olhe de frente. Sem pudor.


____________________

Viktoria Modesta, próxima Bionic Showgirl no Crazy Horse, Paris 2019



Viktoria Modesta - Prototype


[Vídeo de 2014 que já conta com quase 12 milhões de visualizações]

(A não perder a parte final)


E viva a vida.
Viva a vida, meu Querido Leitor.

quarta-feira, julho 04, 2018

Svetlana foi ao Porto e é tudo demasiado bonito para ser verdade.
Mas fazer o quê? Um quarto dos poemas também não é imitação literária...?
Portanto, nada como uma bela ménage a trois



Na pintura eu prefiro o que não se sabe o que é, o que não pretende ser bem feitinho. Na fotografia eu prefiro o pormenor indefinível ou o plano quase abstracto ou o prédio que tem uma árvore à frente. Na moda eu prefiro as assimetrias, as peças que se levantam ao passar da aragem, os decotes que quase poderiam ser precipícios. Nos textos eu prefiro os que têm as costuras à vista, os que provocam ou enternecem por razão nenhuma, os que me dão vontade de lhes passar uma rasteira. Nas pessoas eu prefiro as mal comportadas, as imperfeitas, as que procuram os sobressaltos.

E podia continuar.

Por isso, se vejo um poema muito arrumadinho, de uma lisura métrica e uma gramática simétrica, se numa música eu ouço uma melodia muito quadradinha, sem um sopro fora do sítio, se numa pessoa eu sinto pruridos, cuidados e temores e se numa fotografia eu vejo a pretensão da perfeição -- eu viro as costas e sigo noutra direcção. Tudo o que é muito composto, muito bem comportado ou muito perfeito a mim parece-me apenas foleiro. 

Não suporto a mediocridade ou a foleirice, em especial quando aparecem mascaradas de grande coisa.

Nomeadamente.

Estava aqui a ver umas fotografias e os meus olhos bocejavam de tanta perfeição. Até que numa achei o lugar familiarmente bonito. Detive-me. Li: Porto. Portugal.

A opinião manteve-se mas o meu olhar sentiu aquela tolerância generosa que a gente guarda para as pessoas da família por quem não sente empatia mas a quem dedica atenção porque, enfim, família é família -- Portugal é Portugal e eu tenho-o sempre no coração mesmo quando me aparece enroupado in lovely tiles.

Não sei se a Svetlana levou um banho de photoshop ou de outra coisa qualquer nem isso me interessa. O que sei é que há na autora vontade de beleza e isso merece ser louvado. A beleza é fundamental, é vitamina para a alma. Кристина Макеева tem várias fotografias deste género e, reconheço, algumas bonitas.

Mas, pronto, não faz bem o meu género -- e apenas a trago aqui porque se esmerou colocando a Svetlana envolta num padrão de azulejos e mostrando um luso-espaço que é mesmo bonito e, portanto, ok, por esta passa. E, porque hoje estou com o meu coração pacificado (confirmo: já fiz a minha má acção do dia), coloco até uma segunda fotografia da dita Кристина (desta vez a Svetlana estava em Valensole, Provence, França, toda ela cheirando a lavanda)

........................................................................................................

Agora gostava mesmo, mesmo, é que ouvissem este belíssimo poema de Herberto Helder lido por Fernando Alves num vídeo do distinto Cine Povero, sobre pintura de Escher

Um quarto dos poemas é imitação literária
(...)
e o último é ele que olha da montanha onde abriu na 
pedra o seu nome inabalável,
e voltava ao primeiro como se fosse orvalho,
(...)

..................................................................................................

E termino com um poema que acabei de receber. O L. envia-mo, desejando-me o melhor e eu, agradecida, partilho-o com todos os meus outros Leitores. Há pessoas simpáticas. É como a Gina que me deixou um comentário tão querido. Muito obrigada.


Inesperada chegas e te anuncias,
Rompes no subterrâneo das madrugadas
Os pedregosos trilhos dos meus dias
Nas rotas sempre inacabadas.
Entreabertas gelosias
Na esperança das luzes coadas,
Que sempre irrradias,
Nessas sonolentas e místicas chegadas
Envoltas nas tuas coqueterias.
Sol nascente,
Anúncio de um maio transbordante
No riso incendiado e quente.
Eterno e incansável navegante
Rasgando nas águas da nascente
O destino de um futuro distante.
No precipício do coração... latente
O redimir de um respirar ofegante,
Submerso no delírio que se pressente,
Exaurido, mas ainda ofertante
Ao prenúncio do astro incandescente.






........................................................................

Afinal agora é que é, agora é que termino. E termino da melhor maneira. Com uma discreta ménage a trois. Que é como quem diz: com um pas de trois.

Os primeiro-bailarinos do Royal Ballet Edward Watson, Marianela Nuñez and Nehemiah Kish interpretam uma coreografia de Frederick Ashton: Monotones II. Música de Erik Satie. Coisa em bom.


sábado, maio 19, 2018

Inteligência aumentada




Muitas vezes tenho aqui falado dos meus receios. E, por favor, não pensem. Pod eparecer que sim mas olhem que não.

Sou muito a favor do avanço, da modernidade.

Não sou de gadgets. Isso não. Puto. Quando me vejo no meio dos meus colegas, tudo homem, volta e meia vejo-os todos cobiçosos, gabando o último tablet topo de gama, fininho, peso plumíssima, belíssima reflexão, tudo do melhor. Ou relógios que são telemóveis e computadores. Ou o topo de gama desportivo cheio de alta tecnologia. E eu moita. Nada a dizer. Não me assiste. Não ligo patavina.

Mas sou toda a favor do que os novos sistemas e equipamentos podem fazer, como ajudam na medicina, na transmissão de imagens de alta precisão de forma instantânea, na identificação de padrões a uma velocidade estonteante, na automatização de tarefas burocráticas facilitando a vida a toda a gente.

Tudo isso o mais possível.

Mas há depois as muitas fronteiras. Tantas que o seu policiamento é quase impossível. E há a velocidade a que a tecnologia anda e que não é acompanhada pelas organizações ou pela legislação. E há o risco tremendo do crescimento descontrolado da inteligência artificial e do baixo custo e da total acessibilidade que tornam tudo isto preocupantemente perigoso.

Para quem não partilha estes meus receios ou para quem esteja mais afastado destas realidades e, às tantas, ainda pense que estou a ver mosquitos na outra banda, esta minha recorrente conversa deve ser maçadora. Acredito bem que sim.

Mas gostava que alguém que me lesse me levasse a sério e, se conseguir, melhor que eu, transmitr esta minha preocupação, já vale a pena.

O vídeo que aqui vos mostro não trata das máquinas a comandarem os homens. Trata, sim, das mentes a comandarem as máquinas. Ou das máquinas a aumentarem o potencial da mente humana.

Gostavam que vissem com atenção.

As potencialidades disto são extraodinárias. Os riscos são tremendos.

Todos os governos deveriam ter grupos de estudo a acompanhar estes avanços tecnológicos e as tendências que se desenham que neles assentam com vista a ponderarem os riscos, a verem como regular tudo isto.

Se isto não acontece, o futuro pode vir a ser uma coisa assustadora. 


A próxima fronteira: quando os pensamentos controlam as máquinas | The Economist


E prestem atenção, por favor:
I am very aware of the preciousness of time. I have spent my life travelling across the universe inside my mind. Through theoretical physics, I have sought to answer some of the great questions. But there are other challenges, other big questions which must be answered, and these will also need a new generation who are interested, engaged, and with an understanding of science. How will we feed an ever growing population, provide clean water, generate renewable energy, prevent and cure disease, and slow down global climate change. One of the great revelations of the space age has been the perspective it has given humanity on ourselves. When we see the earth from space, we see ourselves as a whole. We see the unity and not the divisions. It is such a simple image with a compelling message, one planet, one human race. We are here together and we need to live together with tolerance and respect. We must become global citizens. We are all time travellers journeying together into the future. But lets work together to make that future a place we want to visit. Be brave. Be determined. Overcome the odds. It can be done. Seize the moment. Act now.


..................................................................

sexta-feira, janeiro 26, 2018

Se um dia me sair o euromilhões, vou a uma coisa destas e, no fim, digo:
para mim é tudo.




Nem que depois estivesse um mês em jejum (coisa que, parece, faz bem a tudo e até nos põe mais novos) para conseguir enfiar-me dentro das vestimentas ou que tivesse que render-me às evidências e ir a correr procurar um cirurgião estético para me esticar, repuxar, alevantar, preencher e lá o que é que eles fazem - mas havia de chegar ao fim de um desfile Chanel e, tête-a-tête com o Karl, haveria de dizer: Arremato tudo. Pode meter tudo em sacos que já mando um boy para levantar. Coisa assim. Eu feita milionária deslumbrada.


A cena é que acho que a roupa Chanel é completamente deslumbrativa e, com a carteira a rebentar de milhões, não deixava lá nada. Veuzinho com florzinha no alto -- delicioso. Vestidinho com brilhantes sedutivos -- delicioso. Casaquinho de cor virginal -- delicioso. Luva alta esgueirando-se braço acima - deliciosa. Seja. Siga para bingo. Tudo. Tout.
[Ah. Pardon. Permitam um petit recuozinho. Agora estava aqui a pensar que volta e meia, numa certa grande superfície, me cruzo com mulheres que parece que estão com a beiçola inchada, todas preenchidas até ao último poro. Olho e parece-me que vejo ali uma certa inestética deformação. Pensava, intrigada: 'Mas, mal põem o botox, vêm logo para aqui mostrar o lábio grosso? Acharão que estão mais bonitas? Que estranho...''. Estranhava mesmo. Mas, lá está, não aprofundo estas estranhezas porque acho que a vida tem mais graça se caminharmos sobre estranhações. Pois um dia destes acho que desvendei o mistério e, se assim for, deixo de achar graça pois fico é a pensar que devia haver um túnel de lá até ao carro. Ou seja, descobri que há um sítio lá onde fazem esses preenchimentos, enchimentos, aplicações de botox, etc. Ou seja, parece que já não é preciso ir a uma clínica xpto, toda cara, para levar injecções de paralisante muscular ou whatever: num centro comercial desta vida, toma lá, dá cá, e já se vem de lá sem código de barras no lábio superior, com lábios insuflados, bochechas do rosto espevitadas. Não sei se também põem suspensórios interiores em maminhas desconsoladas ou se enchem com não sei quê nádegas já pouco viçosas. Mas que põem a beiçola gorda, lá isso parece que põem mesmo]
Adiante.

Pronto.

Não ando in the mood for política ou para desconsolos da vida. Ando, sim, numa de frescuras e ligeirezas. Até tenho aqui ao meu lado um livro que se chama 'uma ideia de felicidade'. Claro que esta minha dissertação sobre os modelitos Chanel pode parecer contraditória com a receita de felicidade do Einstein: Uma vida calma e humilde trará mais felicidade do que a busca do sucesso ligada a constante agitação. Mas só é contraditória na aparência já que, vendo bem, os vestidinhos Chanel são do mais calmos e fofinhos que há e tivesse eu o jackpot do euromilhões na mão a ver se a minha vida não seria do mais tranquilinha que há, longe do trânsito, com um chauffeur ao dispôr, rapaz jeitoso com a faceta de diseur para poder dizer-me poesia nas horas vagas.


Bem. Estive a rever a colecção primavera/verão e concluí que estava com olho gordo e, na verdade, mais olhos que barriga. Não trazia tudo. Só as coisinhas mais bonitas. Deixava ainda lá muita coisa para as pendonas que por lá andariam armadas em gostosas.

Mas, vá, já chega de tretélé e confiram mas é se não é de comer e chorar por mais.


.......................

E queiram continuar na descidura que aí mais para baixo há mais uns dois posts no mesmo comprimento de vague.

...................................

domingo, janeiro 07, 2018

Zuckerberg diz que o seu objectivo para 2018 é corrigir o Facebook.
Mas eu, meus Caros, o conselho que vos dou é que não se fiem e tenham mas é cuidado.




Não é novidade para quem por aqui me acompanha: nunca senti vontade de me arregimentar ou sequer curiosidade por essa coisa do Facebook. Praticamente todas as pessoas que conheço estão lá e as razões que invocam a mim parecem-me razões para não estar lá: não quero saber o que andam os outros a fazer, estou-me nas tintas para ver os pratos que comem, os sapatos que calçam, os vestidos novos, selfies com a paisagem em fundo ou fotografias de família. Se me referem, com nostalgia, a possibilidade de verem o que fazem e por onde andam amigos de infância ou colegas de liceu ou universidade, fico na mesma: estão bem onde estão, no passado, sorridentes, brincalhões, sem calvície ou barrigas, sem rugas ou papos.


Mais: vamos supor que me dava alguma coisinha má e punha uma fotografia minha (ainda que desfocada) ou que escrevia uma bacorada qualquer. Alguma vez me imagino a espiar, ansiosa, quem é que lá punha ou não punha like? É que nem pouco mais ou menos. 

Ainda há dias ouvi uma colega -- que tinha por pessoa desempoeirada -- a dizer que uma outra tinha publicado uma fotografia em que mostrava o novo corte de cabelo e que fulana, beltrana e sicrana já lá tinham ido pôr um like. Ouvi e não disse nada mas, por dentro, fiquei perplexa: então ela anda a acompanhar as fotografias que a outra põe e a ver quem é que lá vai pôr likes...? Qual o propósito ou a lógica disso? 

Ou, ainda esta semana, na copa, ouvi umas quantas a conversarem sobre a nova namorada de um outro e com quem é que essa namorada se dá ou com quem é que antes era casada -- e tudo a partir do que viram no Facebook.. 

Ou, e ate já aqui o contei, uma extraordinária discussão a que, há tempos, assisti na casa de banho do escritório onde trabalho, porque uma se tinha desamigado de uma outra e isto depois de um qualquer comentário menos agradável da outra que, por sua vez, dizia que a outra é que tinha interpretado mal. Uma verdadeira conversa de outrazinhas.


Ou seja, um clube de exibicionismo, voyeurismo, coscuvilhice e intriga a nível galático.

Talvez nem toda a gente o use por motivos mesquinhos ou inconfessáveis e esteja ali apenas porque sim, para conviver com a família que está longe, para recomendarem livros uns aos outros ou coisa do género.

Pode ser. Mas é o princípio da coisa: aquilo é um painel de publicidade. É isso que sustenta o Facebook. A imensa informação fornecida por cada pessoa (o tipo de imagens de que gosta, os assuntos pelos quais mostra interesse) é usada para definir o seu perfil. Chama-se 'profiling'. O Facebook, a partir do profiling permanentemente actualizado pelas próprias pessoas, determina os produtos pelos quais as pessoas revelam alguma apetência e vai, aberta ou subliminarmente, induzindo o interesse por parte dos incautos utilizadores da tentacular rede social. Os algortitmos que movimentam a imensa máquina do Facebook estão permanentemente a ser actualizados e, sem o saberem, os seus utilizadores são os cordeiros silenciosos que facilmente são (ou podem ser) manipulados na direcção que mais convém aos interesses do Facebook.


Obviamente isto acontece com o Facebook como com o Google. Mas o modelo de utilização do Facebook parece-me o mais perigoso e perverso motor de alienação e submissão.
Claro que haverá comunidades bem informadas, que sabem defender-se e usar a rede de forma inteligente. Mas serão minorias.
E depois há ainda os mecanismos de habituação e recompensa que o Facebook usa de forma deliberada para incentivar a utilização permanente.


E a questão não é apenas essa: é também o imenso manancial de informação pessoal que reside nos sistemas informáticos do Facebook e que podem vir a ser usadas, no futuro, de forma que os próprios não desejem. As pessoas pensam: ah a minha página é privada, só os meus amigos vêem o que lá ponho. Ok. Mas é informação que reside algures, na nuvem, que pode vir a ser pirateada, usada sabe-se lá quando, por quem. Parecerão hipóteses remotas e improváveis a quem nunca pensa nisto mas é bom que saibam que tecnicamente são hipóteses absolutamente possíveis e que, num mundo desregulado como o nosso, até que algum travão consiga seja activado, muito estrago pode acontecer.

E mesmo que a informação de cada um não seja usada de forma maliciosa a título individual, há a utilização da informação anonimizada por parte de empresas que adquirem toda esse monstruoso volume de Big Data para fins potencialmente perigosos, como é o caso da Cambridge Analytics sobre a qual já aqui falei -- que é das mais interessantes e sinistras empresas da actualidade e que deveria motivar atenção redobrada às democracias. Cada Parlamento deveria ter um grupo de estudo destas novas realidades para saber como legislar de forma preventiva para que as democracias não sejam subvertidas através de mecanismos como os que são o objecto de empresas como a CA.

Leio que Zuckerberg anuncia que o seu maior objectivo para 2018 é 'corrigir' os erros do Facebook

CEO reveals this year’s ‘personal challenge’ as site faces relentless criticism over spreading of misinformation and damage to users’ mental health
Amid unceasing criticism of Facebook’s immense power and pernicious impact on society, its CEO, Mark Zuckerberg, announced Thursday that his “personal challenge” for 2018 will be “to focus on fixing these important issues”. (...)
Não acredito que seja possível pois o monstro está fora da caixa e, portanto, fora de controlo. A menos que Zuckerberg acabe com o Facebook. Como isso não é possível pois estamos a falar de uma empresa gigantesca, com milhares de postos de trabalho, movimentando uma parcela importante da economia, nada há a fazer (para além de pequenos remendos para fazer de conta).


Seja como for, nada como ouvir a opinião de quem já trabalhou para o Facebook. Os riscos de que falam, os malefícios que referem devem merecer toda a nossa atenção. Ou um vídeo que aconselha o abandono do vício do Facebook.






...........................

segunda-feira, junho 05, 2017

Geometria pouco descritiva




A linha recta, honrada, previsível. O desenho a régua, o traço a esquadro. A sombra que desce a direito. O ângulo, o segmento, o polígno. A função que adivinha a queda, que antecipa o declive, o ponto exacto em que a recta fere o plano.

A simetria, beleza suprema. O equilíbrio isósceles, o afecto manso da bissectriz, os braços que abraçam a base, que anseia pelo escadeamento, pelo desafio que a penumbra poderia tornar forma docemente escalena. 

Ou uma trignometria suave, o sol que se encosta à parede, o namoro convergente, a derivada que intui a subida, o infinito que aguarda tudo o que não conseguem acabar. 

As paralelas que se querem aproximar, mas não, mas não. Tangenciam-se as linhas mas tocar não, tocar não.
Tocar não, ouviste? 
Querem-se curvas, elipses, tombam, tombam, anseiam ser hipérboles mas isso não, isso não, isso não que ser hipérbole não é para qualquer linha.

A fresta, a fenda, a nesga, o rasgo de luz, o caos de tantas cores que emerge por entre duas superfícies sem limites. A origem do mundo. 


As cores chegam, chegam-se, achegam-se, sobrepõem-se, diluem-se, topologias abstractas, figuras sem contornos, intuições à solta, felicidades sem letras, a separabilidade flexível, a conexidade mágica. 
Estás a acompanhar-me?
E os sólidos, poliedros ou sem faces, uniface eles, desvarios sem nexo, hipotenusas, catetos, pirâmides gimnopédicas, gnossianas límpidas, saties em gotas, a elegância da aresta, da face, a mão que se aninha para acolher o volume. 
Queres experimentar?
A homologia, o espaço sagrado, aberto, virtual, belíssimo, tendencial, tangencial à percepção -- ah, o que eu preciso de não ter limites, o que eu preciso que aceites a ausência de fronteiras, que me acompanhes nesta demanda da diluição de conceitos, da suprema perfeição.
Acompanhas-me? Acompanhas-me, amor meu?

Por isso, cartografa-me, amor, descobre-me os segredos, descobre-me os fractais, vai com os dedos, um a um, até ao mais pequenino, até ao mindinho, até ao infinito, até ao infinitamente pequenino, pequenininho. Depois desliza pelas curvas, pelas minhas curvas, pelas das montanhas e vales que a minha natureza tem para ti. E tenta perceber onde se encontra o centro, o ponto secreto. Depois percorre os raios, um a um, calcula o perímetro, a área, o volume, a carne, a malha imensa que sobre a pele se esconde, estradas e canais que se cruzam, intersecções virtuosas. 

Não queiras saber, amor, se é euclideana a minha geometria, aventura-te pela analítica, atira-te à incógnita, adivinha as constantes, põe-me em equação, resolve, resolve os meus enigmas, encontra os pontos autossimilares, as recursividades sensíveis -- e não desistas nunca, todas as iterações te serão concedidas.

Não aceito parábolas nem que te desculpes com assíntotas. Sabes bem disso. Quanto muito aceito, e olha lá, algumas metáforas. Mas têm que ser metáforas circunflexas, concêntricas, poéticas, difusas como a luz que dissolve a cor.

Então, amor, fecha os olhos e desenha com linhas invisíveis a amorosa rede que te traz preso a mim, e eu a ti, e eu a ti, amor, o feixe de ilógicas e inomináveis razões, os laços transparentes que incondicionalmente nos unem. 
O amor é um acto diferencial e isto não é um axioma mas uma declaração infinitesimalmente algébrica. Ou apenas uma forma de dizer que. Que. 
                Tu sabes o quê.

_______

Ou talvez eu esteja apenas a falar de geometrias afectuosas, verdes, gentis e felizes.

Ou a falar de coisa nenhuma
(enquanto mostro fotografias feitas este domingo in heaven).

____________________________________________

E, para terminar, se me permitem:

A beleza das estruturas infinitas, reprodutivas, multiplicadas na sua coerente perfeição

Fractais



_______________________

Be happy.

____________

segunda-feira, maio 01, 2017

Quem é esse tal Henrique de cabelo ao vento?



Estudou em França e em Itália e, por onde foi vivendo, foi absorvendo influências e incorporando o que via nos seus trabalhos. 

Vila Viçosa 2017
Auto-retrato aos 17 anos
Apesar da vida breve, deixou obra assinalável na qual o seu espírito inovador estava bem presente -- não foi só o captar a luz e a cor, por vezes de forma bastante criativa, como o mostrar querer caminhar no sentido da abstração numa altura em que poucos ousavam transpor essa barreira.

Hoje pouco se fala dele.

Talvez apenas os seus conterrâneos o tenham presente mas talvez alguns nem saibam bem quem foi aquele jovem de cabelo ao vento que, agora transformado num busto de bronze, dá as costas à Igreja de São João Evangelista enquanto olha o Castelo lá ao fundo.

Henrique César de Araújo Pousão nasceu em Vila Viçosa em 1859 e em Vila Viçosa morreu, de tuberculose, em 1884 -- ainda Florbela Espanca não tinha nascido.



Com música de Erik Satie

______________

E, caso vos apeteça ver uma das casas onde viveu Florbela Espanca, queiram fazer o favor de descer até ao post que se segue.

___