sexta-feira, julho 31, 2020

A minha dúvida existencialista a propósito das arrumações





Depois da melancia, não sei o que posso escrever mais pois tenho ideia que é preciso ter cuidado com o que se ingere a seguir, parece que a dita pode encortiçar. Na volta é mais um daqueles mitos urbanos. Mas, por via das dúvidas, tenho que ter cuidado com o que vou dizer a seguir. 

E o que tenho a dizer -- passando ao lado das grandes causas da humanidade e dos casos algo complicados com que tive que me deparar ao longo do dia -- é que, ao fim do dia, voltei às minhas arrumações. Deixei quase para o fim um móvel que tenho na sala de jantar. Há o louceiro e há o aparador. O que mais temia era este aparador: uma verdadeira arca do tesouro. Cheio como um ovo com tesourinhos deprimentes. Tremo de lá mexer. Ao longo de anos fui para lá enfiando tudo e mais alguma coisa. Coisas do enxoval, coisas herdadas, presentes que diferentes ofertadores e que atravessam épocas, estilos díspares, utilidade por vezes duvidosa. Numa ginástica que desobedece às leis da física, encaixo, sobreponho, enfio. E lá fica tudo, esquecido.


Em dias de festa ou de maior número de comensais, tenho que me afoitar e, quase a tacto, enfiar a mão e, devagar, qual jogo do micado, tirar a travessa, a terrina, o balde gelo ou a taça de vidro em forma de morango para servir os morangos, de maneira a que tudo não se desmorone e não aconteça uma desgraça. Depois, no fim do dia, depois da louça lavada, é o castigo final: conseguir que o espaço volte a acomodar a peça que, à primeira, à segunda e à última vista, parece não caber. 

Há bocado, quando o meu filho me ligou e perguntou o que temos feito, lá lhe contei que continuo (continuamos) nesta faena, que parece que não acaba, que aparecem peças em quantidade infinita. Ele passa-se: diz que nada daquilo serve para o que quer que seja, que só serve para encher, que não percebe, que nada daquilo tem qualquer valor. Pergunto-lhe se acha que deite fora serviços da vista alegre, travessas e terrinas de valor, garrafas de cristal, coisas assim. Diz: cristal é aquela coisa que é feita de chumbo. Digo que pois é mas que deve estar inertizado, que não deve ter problema, são peças atlantis, coisas de valor, não vou deitar fora. Diz que não se lembra de eu servir vinho ou água naquelas garrafas de cristal. Pois não, tem razão, mas é que acho que não se justifica, sei lá, tenho medo de partir. Digo: quando eu e o teu pai formos desta para melhor, tu e a mana fazem um leilão. Ele diz: podes fazer isso em vida. E pronto, ficamos assim. Esta conversa é recorrente. Os meus filhos não ligam muito para este género de coisas. Nem muito nem pouco. E eu, para dizer a verdade, acho que agora também não. Mas as coisas foram-se juntando. Vou fazer o quê com elas?


O meu marido, neste processo, ficou com o pelouro das estantes. Sim, que posso ser maluca mas parva acho que não sou. Não me arriscaria a pô-lo a mexer em louças e vidros. Assim como assim os livros não se partem. Mas, quando vou ao pé dele, está passado. Diz que encontra livros absurdos, que não percebe porque foram comprados. Para alguns encontro explicação. Para outros não. Coisas que vêm de mil anos antes, que se vão adquirindo porque se resolveu fazer uma colecção, sei lá. Diz-me: metade deles iam mas é para o lixo. Aborreço-me. Jamais (dito em francês, se faz favor). 

Mas a verdade, verdadinha, é que, por dentro, fico cheia de dúvidas. E das existencialistas que são as que custam mais. Dúvida existencialista é como bolha do sapato a roer o pé. Para que ando eu com tanta tralha agarrada a mim? Mas, se não quiser andar, faço o quê? Desfaço-me de peças valiosas? Não sou como a minha avó paterna que vendia por tuta e meia propriedades no Algarve porque os filhos não davam mostras de ligar àquilo, não queriam saber da apanha das alfarrobas ou das amêndoas. Quando davam por ela, já ela tinha despachado tudo. Ou a minha avó materna que tinha um móvel que eu achava o máximo e que, quando um dia disse que gostava de ficar com ele quando ela não o quisesse mais, obtive de resposta: Onde é que isso já vai... Já o vendeu a um antiquário qualquer que por lá passou a saber se ela queria desfazer-se de algumas coisas. Desfez-se do que calhou, sem ligar a nada. Família desapegada a minha. Quando os meus avós morreram, quer os paternos, quer os maternos, nenhum dos meus primos quis o que quer que fosse. Eu sim. Coisas simbólicas. A enxada do meu avô, o cadeirão onde ele via televisão, os copinhos de vidro coloridos da minha avó. Tive pena que já não houvesse a grande avenca que estava no parapeito da sala, numa janela com as portadas meio fechadas porque 'a avenca gosta mais do escuro e do fresco'. Dou valor a coisas que têm vida agarrada.


No fundo, no fundo, prefiro a simplicidade, os ambientes arejados. Mas o que faço a tudo o que a vida me foi pondo no regaço?

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Bem, isto vai longo demais, tenho que parar. Começo a escrever e distraio-me. Sorry.

As fotografias são da autoria de Terry O’Neill e achei por bem ir buscar Liszt, La leggerezza, pela mão de Martha Argerich 

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E, como agora ando numa de coisa divertida e sorridente como forma de vos dizer 'até já', aqui vos deixo com mais um destes vídeos deliciosos e ternurentos. Have a big smile.


E queiram descer caso queiram aprender a comer melancia em sociedade

E um dia feliz. Saúde e alegria.

Ora vamos lá a ver: como é que se come melancia?



Não sou de dress codes, de etiquetas protocolares, de minhoquices que atormentam o espírito a troco de pouca coisa. Melhor: para ser completamente honesta, ser até sou mas tudo numa levezinha, como quem não quer a coisa para não parecer que estou a impor regras aos outros ou a dar lições a quem não está nem aí.

Mas há coisas que a gente, por muito que saiba como se portar em público, deve evitar. Coisas traiçoeiras, cheias de complicação, propícias a deslize. O meu pai falava que uma vez, casado de fresco, foi convidado com a minha mãe para um jantar em casa de um outro casal, gente que, para o local e para a época, representava a society. Pois bem, às tantas, sem medir consequências, espetou uma azeitona com o garfo. E, pimbas, a azeitona voou. E ele, desportista completo, com ela em pleno voo e na total discrição, apanhou-a e, como quem não quer a coisa, guardou-a no bolso. E toda a vida ele contou, sorrindo, o vexame que ia sendo. 

Por isso, eu digo: azeitona, pelo sim, pelo não, se não queremos falhar, a gente segura com a ponta dos dedos e come à mão mesmo.

Mas há outras coisas em que, por muita ensinação e treinamento, mais vale não arriscar. Ou o bicho vem tratado e destratado para a mesa, sem casca, sem espinha ou osso, sem pele ou caroço, ou o melhor é passar ao largo, fazer de conta que acha que é mais bonito se for decorativo.


Melancia, por exemplo. Ou é servidinha aos cubinhos ou bolinhas, sem sementinha preta, sem nada que atrapalhe, ou mais vale dizer que é linda, encarnadinha, molhadinha.

Mas há truques. Este, do vídeo, eu não sabia. Vivendo e aprendendo. Ora façam a gentileza de pôr aqui os olhos.



Mais: atenção ao sítio onde se escafundem os talheres. Que não se corra o risco de correr tudo bem e, no fim, quando foi tudo aprovado até à quinta derivada, passar-se pela vergonha de caírem os talheres ao chão. Quem vos avisa vossa amiga é.

quinta-feira, julho 30, 2020

Ele há coisas






Um dia mais tarde talvez eu fale aqui destes dias loucos em que, em simultâneo, tudo muda, tudo acontece, tudo se atropela na minha vida. Umas coisas acontecem porque a vida é assim mesmo, outras porque eu fiz acontecer e outras são as consequências directas e os efeitos colaterais de tudo o resto. Não me queixo. Ou é assim porque é a vida ou é assim porque, de vez em quando, um vento de mudança toma conta da minha vida e eu preciso de mudar de pele, de vida, de tudo.

Mas manter os pés na terra, dar conta de todo o recado, trabalhar, assegurar a logística do dia a dia, manter a disponibilidade intacta para quem não tem nada a ver com os trabalhos em que me meto, não é fácil e, muito sinceramente, de vez em quando olho para o reboliço todo em cujo centro me encontro e só me apetece ter super-poderes para poder fazer dez vezes mais do que faço para mais rapidamente cumprir as fases de maior assoberbamento em que agora me encontro.

Hoje, ao fim do dia, fui fazer uma pequena caminhada mas ia cansada e só me ocorria como será bom, daqui por algum tempo, a vida já reequilibrada, tudo serenado. E a visão desses dias de quietude e tranquilidade parece-me o el dorado pelo qual, neste momento, anseio.

A tarde, em especial, foi repleta de cenas. O cúmulo da graça foi uma reunião remota com pessoas do meu lado e pessoas de um outro lado. Às tantas percebi que, dos outros, um deles, o mais calado e a quem menos os outros davam a palavra, parecia ser, ali, a peça chave. Era homem já de alguma idade. Aos poucos arranjei maneira de lhe ir dando a palavra. Até que, se calhar até meio a despropósito, lhe perguntei onde é que ele tinha trabalhado antes de estar naquela empresa. Ele chegou-se à frente e foi como se estivesse à espera de dizer aquilo. Começou referindo a primeira empresa onde tinha trabalhado e o ano em que tinha entrado. Anos depois, outra empresa. Aí tocaram muitos sinos. Disse-lhe: 'Se calhar ainda nos encontrámos por lá...'. Julguei que ia surpreendê-lo. Mas foi ao contrário. Diz ele, referindo-se a mim, com ar contido, como se tivesse ensaiado: 'Não, nessa altura já não estava lá, já estava nos escritórios da Avenida tal'. Fiquei banzada. Perguntei: 'Em que ano?'. Ele repetiu. De facto, nesse ano eu estava onde ele disse. Afinal conhecia-me. Fiquei espantada e só não completamente espantada porque não é a primeira vez que isto acontece. Eu a pensar que estava a ter uma reunião com um grupo de desconhecidos e, afinal, um deles conhecia-me de longa data. Admito que, num mundo profissional em que a larga maioria são homens, qualquer mulher se tornava notada. Ainda por cima há uns belos anos atrás, uma mulher naquelas funções era uma raridade.

Agora, ao estar a escrever isto, lembrei-me de uma reunião, no local onde ele trabalhava, onde uma equipa da Sede foi apresentar o plano de reestruturação que os ia afectar a sério. Juntaram-se centenas num pavilhão para ouvir. Estava cheio, o ambiente estava carregado de electricidade e ansiedade. Creio que apenas homens. Alguém achou que a pessoa da equipa que deveria apresentar esse plano deveria ser eu. Não me tinha preparado para isso mas, naquele ambiente quente, compreendi que talvez fizesse sentido ser eu, talvez o facto de ser uma jovem mulher contivesse a agressividade que estava latente. Durou horas essa sessão. Correu bem. Foi duro mas acho que houve franqueza e partilha de receios e de riscos. Lembro-me de estar vestida de branco, era verão. Eu estava de pé e, no fim, eu tinha perguntado se havia questões e... houve questões sem fim. Por volta da hora do almoço, comecei a sentir vontade de ir fazer chichi mas era impossível sair dali a meio e ir à casa de banho. Às tantas já me doía a bexiga, já quase não tinha posição. Tinha ido à casa de banho antes de sair de casa, certamente antes da oito da manhã. E tinha sede, aquilo estava muito quente, e sentia que a tensão me estava a baixar. Mas pensava que, se bebia água, ainda mais aflita ficava. Intimamente já só implorava que se calassem, que acalmassem, que aquilo acabasse. Temia não conseguir chegar à casa de banho e ainda fazer chichi pelas pernas abaixo, um vexame. Mas esta aflição ninguém deve ter percebido, só devem ter percebido que estava ali uma mulher, no meio de muitos homens, a tentar ser clara, falar verdade, não escamoteando o período complicado que se iria atravessar. E, se calhar, um desses homens era este que esta tarde tive ali à minha frente.

A vida tem destas coisas. A vida tem tantas coisas.


No outro dia, um outro, do nada, começou a dizer-me que agora estava melhor. Fiquei em suspenso. Já sei perceber quando há, do lado de lá, vontade de falar. Depois acrescentou: 'Mas não foi fácil, passei um mau bocado'. Tive que perguntar: 'Mas o que foi?'. E, então, para minha surpresa, com uma franqueza desarmante, talvez até com inesperada candura, ele desatou a contar-me aquilo pelo que tinha passado. Daquelas coisas que uma pessoa tem que engolir em seco para não denunciar alguma reacção que faça o outro inibir-se. Falou e eu ouvi-o. É um homem a quem os outros que trabalham com ele, e são centenas, acham seco, duro. É uma pessoa pouco estimada, pouco empática. E, no entanto, sem que eu consiga explicar porquê, ali estava, falando-me de assuntos íntimos, de problemas que estava a superar mas que ainda o afligiam.

Não sei explicar isto.  Mas também nem tudo precisa de ser explicado. Não é?

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E também não sei porque estou a falar disto. Comecei o post com a ideia de falar de uma colcha de renda muito bonita que uso na minha cama e que não me lembro se foi a minha avó ou uma tia do meu marido que ma ofereceu. Ao falar disto com a minha mãe, tirei uma fotografia para ver se ela se lembrava. Respondeu-me que aquilo não é uma colcha, é uma toalha de mesa. Fiquei perplexa. Pensei que estivesse enganada. Que não, certeza absoluta, Alguma vez aquilo é uma colcha? Mas a verdade é que tem sido e, em minha opinião, uma bela colcha. Também, ao tirar uma outra de um gavetão, me surpreendi com as toneladas que aquilo pesa. E nunca a uso porque imagino que seja um calvário para lavar, para secar, para passar a ferro. E custa-me pois uma pessoa, cheia de amor, trabalhou naquela colcha durante muito tempo, certamente anos, gastou muito dinheiro em fio, aquilo é um peso bruto. Como poderemos retribuir gestos de amor junto de quem já não está entre nós?

Mas, enfim, não sei porquê, o post tomou outro rumo. E agora não vou apagar tudo e, a esta hora, recomeçar. Fico-me por aqui.

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As pinturas são de August Macke e vêm ao som de Bach pelas mãos de Stephanie Jones.


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E, antes de escrever, gosto sempre de circular pelos blogs aqui do lado, pelas notícias, pelos vídeos que o YouTube me propõe. Sabendo que me pelo por me rir e por sorrir, agora anda a propor-me o abençoado, querido e divertido Charlie Chaplin. E aqui está ele, para que, possam também sorrir.


E um dia feliz para todos.
Saúde, sorte e dinheiro para os gastos. E alegria. E força.

quarta-feira, julho 29, 2020

Tempos atípicos.
[E, de caminho, um pequeno vídeo com um galo e vários touros à laia de metáfora]




Os dias vão correndo de forma atípica. Passam-se coisas que eu, por mil anos que viva, não consigo perceber. Se uma empresa está a passar por dificuldades e desencadeia uma série de acções supostamente para encontrar soluções para os seus trabalhadores, porque é que tudo o que faz é nebuloso, evasivo, retardador, inexplicável? Porque é que suscitam reuniões, enviam documentação, pedem celeridade e, em actos, embrulham, atrasam, enevoam? Estarão aqueles postos de trabalho deveras em jogo? Ou, se estão, saberão essas pessoas que quem diz querer encontrar uma solução está na prática a dificultá-la? 


E porque acontecem coisas assim? Porque há coisas assim?

Dizem-me outras pessoas, avisando-me que estão a falar off the record, que aquilo ali é de família, que é gente conhecida nos mentideros por ser gente de esquemas, que eu tenha algum cuidado. Impaciento-me. Não quero saber de mentideros nem de bastidores nem gosto de perder tempo com coisas que não percebo e que não dão em nada.

Ainda há bocado, estava a jantar, recebi uma mensagem. Lembravam-me a urgência do tema e que tentasse que a próxima reunião seja conclusiva. Ainda mais incomodada fiquei. Sinto-me rodeada de gente que diz que quer fazer uma coisa e, com os melhores modos, com as palavras mais acertadas, diz coisas que não significam nada nem correspondem aos actos. Por dentro, digo: tirem-me deste filme. É como se uns bombeiros me dissessem: há aqui um fogo, há gente em risco, não conseguimos salvá-los, venham ajudar-nos. E uma pessoa chega lá, vê os bombeiros com ar de quem precisa de ajuda, em roda, como se a proteger os indefesos no meio, os bombeiros dizendo-se muito colaborantes no sentido de arranjar uma solução para os pobres coitados que estão no interior do círculo mas, estranhamente, com as mangueiras apontadas para fora. As bocas e as caras dizem uma coisa, as mãos fazem o oposto. Queremos aproximar-nos para resgatar os que supostamente estão em risco mas somos impedidos, afastados, pelo jacto das mangueiras dos supostos bombeiros. Mas sempre afáveis, educados. Gente poderosa que, mesmo quando supostamente apeada, usa o seu poder para manipular e para tornar mais vulneráveis os mais frágeis.

Ou será tudo uma estranha farsa?


Quando acabei de jantar, peguei no prato onde tinha juntado os ossos sobrantes e fui lá fora, lá abaixo, longe, debaixo de um arbusto, despejar esses restos para os animais. De caminho, parei na figueira grande e comi a sobremesa. Os figos começam a adoçar, a amolecer de ternura, carnudos e gulosos. Adocei-me por dentro. 

Chegada a casa, estava a pôr o prato no lava-louça, senti uma coisa a fazer-me uma cócega pelo ombro abaixo. Olhei e, num relance, vi um bicho escuro e grande. Dei um valente safanão e, no acto, dei um grito e parti o prato em vários bocados. O meu marido acorreu, surpreendido. Pareceu-lhe que me tinha dado uma fúria e, num rompante, tinha dado um grito e atirado com o prato. Expliquei e mostrei-lhe a causa do sucedido. Não sei que bicho seria. Talvez uma cigarra. Não era preto, tinha manchinhas. E lá se foi mais um prato. Há umas semanas foi a minha filha que, sem as lentes, calculou mal a distância ao pegar num prato para o lavar ou lá o que foi, parece que roçou noutro e, de uma vez, partiu dois. Os pratos lisos e grandes que prefiro vão levando sumiço. Já não gosto de usar pratos como eram os de dantes, mais pequenos. Claro que isto não tem nada de especial e muito menos tem a ver com o tema de cima mas aconteceu no mesmo dia e a minha vida é uma sucessão de coisas que nada têm a ver umas com as outras, de importâncias díspares e globalmente irrelevantes.


Também me aborrece o facto de, logo agora que os figos estão a ficar maduros, é que eu não vou estar por lá para dar conta deles. Bolas. Contrariedade e das grandes. Tento encontrar maneira de a ultrapassar e não vejo como. Pelo menos, de momento.

E há outras coisas que agora também não me dão muito jeito: excesso de trabalho, profissional e sobretudo pessoal (sendo certo que o pessoal é, em grande medida, procurado por mim), excesso de calor, excesso de falta de férias, excesso de falta de paciência para quem me faz perder tempo. E até falta de paciência para a NOS que me obriga a perder tempo em infindáveis telefonemas em que me deixam pendurada a ouvir música, em que me fazem repetir dúzias de vezes o número de contribuinte, o nome, o motivo, e em que nunca, nunca, sabem de nada do que eu disse aos antecedentes nem resolvem porcaria nenhuma.


E não se salva nada? Ora essa, claro que salva. Por exemplo, um telefonema. Conversa longa. A certa altura, aquele homem gigante (e, por sinal, talvez o mais lindo da actualidade) desaba em lágrimas ao saber aquilo que eu tinha escondido e ao recordar as minhas palavras e o meu apoio quando lhe aconteceu a ele o mesmo. Depois, porque também me emocionei, o silêncio. E outras coisas. Pequenas coisas, coisas valiosas. Cores límpidas, cores quentes, cores que desenham pontes, vislumbres que enunciam o que, sendo invisível, brilha como uma luz que traça o caminho para a perfeição, palavras depuradas, sorrisos que se adivinham, proximidades indestrutíveis, alegrias que surgem de dentro de nós, a vertigem das memórias, sonhos, a paz do entardecer, a respiração dos lobos que trazem a noite presa aos seus olhos transparentes. Coisas assim.

Tempos atípicos estes. Tempos atípicos.


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E, de repente, agora que estava a dar o expediente por encerrado, levantou-se, de dentro de mim, uma vontade de dizer aos que se julgam com o rei na barriga e mais espertos que os outros que, calminha aí, nem sempre o vento sopra a seu favor. Portanto, cuidadinho com os pequenos e insignificantes.


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Pinturas obviamente de David Hockney ao som de Origins de Max Richter
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E um dia feliz a todos!

terça-feira, julho 28, 2020

O que diz Bernarda


Ele contou-me que, quando o outro falou em Tordesilhas para lhe dizer que de um lado estava ela e, do outro, todas as outras pessoas, ela lhe respondeu: obrigadinha por me deixares aqui sozinha, longe de todo o mundo, obrigadinha.

E depois, como o outro não percebesse, que ela foi ainda mais directa: não queres pular a cerca e passar para o lado de cá...?

Mas que o outro, que é mais dado a subtilezas, sorriu e disse que ela não sabia era nada de história.


[A partir dos escritos de Mister X que, andando numa de veraneio em regime de bar aberto, logo ali que abordou o tema das Tordesilhas, o deixou trancado. 😎]

segunda-feira, julho 27, 2020

Com o que se parece um optimista?





Penso que sou optimista. Em regra, perante qualquer situação, não me dá para antever o pior. Conheço pessoas que, haja o que houver, mesmo sem nuvens negras no horizonte, começam logo a preocupar-se com o que pode vir a acontecer.  Eu não. E, se há problemas, eu, em geral, em vez de me entregar ao afundanço, ao fatalismo, começo é logo a ver como é que a coisa se há-de resolver. Mas é mais do que isso: mesmo em situações que, para outras pessoas, podem ser contratempos, para mim é coisa de nada, na maior parte das vezes nem dou por isso. Sinceramente, acho que isto é uma coisa boa que tenho em mim. Passo pela vida mais descontraída, sem querer saber do que pensam ou dizem de mim, sem me pré-ocupar com o que pode vir a acontecer. Pelo contrário, aproveito bem o lado bom da vida, deixo que as pequenas coisas me encantem. Provavelmente sou é distraída. Na volta é isso: distraída + míope = optimista.


Por exemplo, perante a situação que estou a viver, tenho aqui em casa quem, ainda a coisa não tinha começado, já antevia trabalhos acrescidos, cansaços insuportáveis, quem protestasse por antecedência, quem me avisasse de que depois não viesse eu dizer que não estava avisada. E eu na boa, mãos à obra, sem dramas, para a frente é que é caminho. Claro que, depois de trabalhos esforçados, chego ao fim do dia cansada, mesmo cansada, até na pele das pernas sinto formigueiro. Hoje o dia foi outra vez daqueles. Tudo passado a pente fino, armários todos ao léu, tudo prontinho para ser limpinho por dentro, tratado, as madeiras hidratadas. Uma trabalheira das valentes. Mas e daí? Claro que parte do trabalho pesado não me cabe a mim, cabe-lhe a ele. Tirar tantos livros para fora é obra. Horas. Ter os armários vazios não é coisa para todos os dias mas quando os vejo limpinhos, um cheirinho bom a óleo reparador ou de cedro, rescendendo a casa lavada, eles todos novos, acho que todos os esforços são justificados. Claro que depois será preciso voltar a pôr tudo dentro deles e, aí, aproveitar para repensar algumas coisas, reorganizar tudo. Têm saído livros, copos, serviços de jantar. Claro que aqui chegada deveria abrir um capítulo para falar do que para aqui tenho e que nunca uso. O meu filho, nestas circunstâncias, aconselha a ver-me livre de tudo o que não preciso. A minha filha, há pouco, também me disse que era uma boa ocasião para pensar se não daria para me desfazer da tralha de que não preciso.


Mas há patamares a que ainda não cheguei. A sala de jantar basicamente está cheia de coisas que não uso mas das quais não consigo separar-me. O serviço da Vista Alegre, que os meus pais me ofereceram antes de me casar e que já está descontinuado, lindo, que não quero arriscar-me a que fique incompleto, o serviço de copos absurdamente elegante e frágil que uma das tias do meu marido nos ofereceu (e que quase não uso com medo de partir obra de arte tão sensível), garrafas de cristal que, ao longo do tempo, fomos recebendo de presente, peças também de arte, pesadas e lindas -- coisas assim. A minha mãe disse-me que também é assim, também tem coisas dessas que mal usa com medo que alguma coisa se parta. Por exemplo, tem dois serviços da Vista Alegre, um que é um modelo clássico, e outro, especial (e de que, por acaso, nem me lembro, tão encafuado deve estar sempre) que nunca 'põe a uso'. Recordou a minha tia, aquela de quem eu tanto gostava. Diz a minha mãe, referindo-se a ela, que nunca conheceu 'coisa' mais desapegada. Diz que dava ou deitava fora tudo aquilo de que achava que não precisava, Lembra-se do meu tio, um dia, lhe perguntar onde estavam umas calças mais velhas que costumava usar quando fazia alguns trabalhos em casa e de ela ter dito, na maior descontração, 'deitei-as fora, já não estavam capazes'. Diz a minha mãe que o meu tio se ia passando, que ela deitasse fora as coisas dela, era com ela, mas que estava farto de lhe dizer que não mexesse nas coisas dele. E que ela encolheu os ombros, nem aí, para a próxima faria o mesmo. A minha cunhada é igual. Não me esqueço da surpresa do meu cunhado quando, depois de desesperar à procura dos seus calções de banho preferido, foi dar com o jardineiro da quinta com eles vestidos. E a minha cunhado, com a maior naturalidade, 'Que é que queres? devo ter achado que estava na altura de teres uns novos, dei-os ao Leontino. Qual o problema?' 

Eu não. Custa-me desfazer de coisas que acho que ainda estão boas, ou de coisas valiosas ou com valor estimativo.


Mas isto vem a propósito de quê, caraças...?

Ah, já sei. Meto-me nestas empreitadas de peito feito, sem me preocupar por antecipação, sem fatalismos, sem encarar com pessimismo o que parece missão impossível, sem sofrer por sentir que me meti numa never ending story. Penso é que o que for soará, que para a frente é que é caminho e bola para a frente. Chego, de facto, ao fim do dia, mais do que exausta e percebendo que nem tão cedo vou ter descanso pois o trabalho que ainda tenho pela frente é ciclópico. Mas não faz mal. Agora custa um bocado mas todos os males fossem estes e, no fim, vai ser tão bom, vou sentir-me tão bem, tudo terá valido a pena. 

E isto, acho eu, é a conversa típica duma optimista. Claro que as más línguas dirão que optimista coisa nenhuma, que isto é coisa é de gente maluca. Pois que seja. Desde que a maluqueira seja inofensiva, há lá coisa melhor que uma pessoa ser maluca...?


Para fim de conversa, recapitulando: míope + distraída + maluca = optimista. 

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Qualquer coisa nesta base:

Charlie Chaplin - Chilkoot Pass / The Lone Prospector - The Gold Rush



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As maravilhosas fotografias do fundo do mar são de Chris Leidy
e espero que gostem de mergulhar nelas ouvindo o The Sound of Silence na interpretação de Stephanie Jones

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Até já

domingo, julho 26, 2020

Em dia de grandes arrumações, eis que aparecem mulheres sem cabeça, peças que, com o tempo, se desintegraram, fotos que mostram gente que já não existe, moedas, pilhas e canetas tresmalhadas como se não houvesse amanhã, testes de orientação vocacional e sei lá que mais







Dia de arrumações, de limpezas. Desde manhã até ao fim do dia. Estou, naturalmente, cansada. E ainda a procissão vai no adro. Aqui há algum tempo, uma arrumação destas aconteceu com os roupeiros. Sobre as sacadas de roupa que dei, tenho ideia de que aqui deixei registo. E agora ainda hei-de lá voltar de novo. Mas, por enquanto, tenho estado com gavetas com papelada, prateleiras de estantes fechadas onde reside muito bibelot, caixas e caixinhas, algumas das quais com coisas insólitas lá guardadas. Moedas soltas aparecem no fundo das gavetas, dentro de caixas e tacinhas, por todo o lado. Pilhas não têm conta. Não percebo. Presumo que sejam como os coelhos, que se multipliquem desenfreadamente. Canetas que já não escrevem são mais do que as mães. E, no meio disto, algumas descobertas surpreendentes.

Muito papel foi jogado fora, facturas, receitas, coisas assim. Flores secas também, pot-pourries, espigas cor de laranja, coisas de que vou gostanto e mantendo. Mas estou numa de me desfazer de tudo o que não me cause dor e, portanto, os sacos foram-se enchendo. Objectos não identificados ficaram expostos na sua estranheza indo alguns também porta fora. Aparecem peças que não sei a que pertencem ou se existem por si, assim. E um diploma em meu nome como sendo a mulher que melhor se veste na empresa. Foi numa festa de natal. Houve votação para várias categorias, todas assim nesta base. Já não me lembrava de tal e, muito menos, que aquilo tinha dado direito a um diploma.

Descobri também uma peça de louça que parecia inteira e que, afinal, tinha duas partes cuidadosamente encostadas, parecendo que estava inteira. Pergunto-me quem terá feito tal estrago e, pela calada, fez de conta que nada tinha acontecido? O meu marido desvaloriza, disse qualquer coisa tão bizarra que nem sei transcrever, qualquer coisa como ser natural dado ser peça antiga, como se as peças de cerâmica se desintegrassem ao fim de alguns anos. Claro que desconfiei logo que tivesse sido ele. Achou que eu não estava boa da cabeça, a que propósito iria ele mexer naquelas mariquices? Não deve ter dito mariquices, costuma usar um sinónimo menos meigo. Mas não me lembro exactamente do que mais disse pois, vendo que dali não levava nada, desliguei, tanto que fazer que não vale a pena perder tempo com coisa assim. Mas não foi a única coisa partida. Numa outra estante, tenho duas peças de cerâmica, duas bonecas artesanais muito bonitas. Eu, pelo menos, acho-as muito bonitas. Uma delas estava sem cabeça. Fico perplexa com isto. Penso que pode ter sido outra pessoa. O meu marido zanga-se com a minha desconfiança, que obviamente não, se tivesse sido, ela teria informado, e insiste que as coisas se partem sem intervenção humana. Também admito que não deve ter sido essa pessoa: uma vez que houve um acidente assim, ligou-me, em lágrimas, até me assustei, pensei que tinha acontecido alguma desgraça. Mas, com isto, estava ainda mais intrigada pois não descobria a cabeça. Afinal, lá estava, atrás da outra mulher. Mistérios.


Às tantas, o meu marido chamou-me: tinha descoberto umas fotografias que, de ponta a ponta, eram surpreendentes. Para começar, eu era outra. Tinha havido uma festa grande cá em casa, a casa estava cheia. Havia gente por todo o lado. Eu estava com um vestido de noite, justo, de alças fininhas. O meu marido, vendo-me nas fotografias, estava espantado, diz que não se lembrava de eu ter sido tão magra. Não estava magra, estava, simplesmente, como fui até a menopausa me ter deixado mais a gosto de Rubens. Quem estava assim, nessa altura, era a minha mãe. Hoje, ao telefone, falei-lhe nisso. Disse ela, podes crer, a seguir à menopausa, alarguei de costas, aumentei de peito, acabei por dar os blasers todos, nenhum me servia, nada abotoava no peito. Agora não, agora voltou ao que era antes, esguia, elegante. Tenho esperança de, daqui por uns anos, também eu volte a adelgaçar. Numa outra festa, creio que seria uma festa de anos, a casa também cheia, eu estava de calças brancas e tshirt justinha, e o meu corpo estava metade do que hoje parece. O meu marido pergunta: estarias doente? não tenho ideia nenhuma de seres tão magra. Volto a dizer-lhe que não estava nada magra, nunca fui magra, nem doente, qual doente, simplesmente mantinha um corpo de adolescente. Ele olhava espantado, não reparando que, com ele, foi o contrário: hoje está metade do que era naquela altura. Mas o principal ponto de interesse daquelas fotografias está longe de ser a outra que era eu. Éramos todos outros. Os meus filhos eram adolescentes, em início de adolescência. Tão bonitos, tão queridos, ainda a despontarem. Contudo, numa das festas já estava o namorado da altura da minha filha, o primeiro, um rapazito. Os meus sobrinhos eram, ainda, umas crianças. Mas impressionante, impressionante, é a quantidade de pessoas que já não estão por cá. Até a minha avó materna ali estava com ar desempoeirado, bonita. Era, na altura, mais nova do que a minha mãe é agora. Teve a minha mãe aos dezassete e a minha mãe teve-me aos vinte e três. Por isso, naquela altura, ali estava a minha mãe toda giraça e a minha avó toda inteiraça. Mas estavam também os meus sogros, a mãe de uma prima por afinidade, o primo do primo, jovem desportista e dos mais divertidos do grupo e que, há um par de anos, do nada, se foi para desgosto de todos nós que não queríamos acreditar em tal maldade. E estava, claro, o meu pai. Sempre com aquele ar jovem e arejado, embora geralmente com ar mais circunspecto. O meu marido geralmente também não aparece a rir nem liga patavina a fotografias. Fica sempre bem mas com ar de quem não está nem aí. Julgo que nunca se deve ter rido para uma fotografia. Presumo que o meu pai também não. 


Olha-se para aquelas fotografias, grande parte dos que ali aparecem já desaparecidos, os outros todos mais velhos, a caminho de um dia serem também uma memória e, necessariamente, uma pessoa sente-se melancólica. Mas depois logo se percebe que nada disso, que ideia, tristezas não pagam dívidas, para quê ver as coisas só pela metade? Então e os que, nessa altura, ainda nem em projecto estavam? Tantas pessoas que naquela altura não existiam e que hoje já estão por aí, traçando o seu percurso, construindo o seu futuro, trazendo o calorzinho bom do seu afecto às nossas vidas.

De vez em quando, o meu marido que esteve também envolvido nesta empreitada, perguntava-me: onde é que ponho isto? Fui dizendo: fotografias com fotografias, recordações com recordações. É que, por exemplo, encontrei um postal ilustrado que lhe enviei quando namorávamos. Quanta inocência a daquela minha paixão. Não me lembrava nem um bocadinho de lhe ter escrito aquilo. Curiosamente guardou-o e não sei que voltas já terá dado aquele postal para ali estar. Parece que não liga a nada a estas 'mariquices' mas, na volta, se calhar até liga. (Mas, se ligar, é só um bocadinho. Um bocadinho pequenino. E eu acho graça a ele ser assim. Não sou muito de ligar a homens lamechas).

Numa terrina do serviço da Vista Alegre que pouco uso e que está dentro do louceiro, fui dar não apenas com um documento contendo a linhagem da nossa cãzinha, com o seu registo e com outros seus documentos, como com os testes de orientação profissional que o meu filho que, quando andava no 9º ano, por sua iniciativa e sem dizer nada em casa, foi fazer com a psicóloga da escola. Impressionante como, desde miúdo, desde sempre, foi aquilo que ainda é hoje: decidido, pragmático, focado. Gostava de saber onde pára os que a minha filha fez também no 9º e que a mostraram com um nível de inteligência excepcional, com capacidade para muita coisa mas com mais forte pendor para as áreas que, de facto, profissionalmente tem vindo a seguir. Pode ser que, nas coisas que ainda estão por passar a pente fino, isso também apareça. Devia guardar os dois no mesmo sítio.


Em dias assim, fico sempre com vontade de chegar àquela fase da vida em que terei tempo para fazer reorganizações a sério, tudo bem sistematizado, classificado, nada a pairar por partes incertas. É que agora, como é tudo na base dos shots, tudo em doses maciças e condensadas, muito trabalho em períodos muito curtos, parece que fica sempre tudo a modos que pela metade.

Ao fim da tarde, fomos até à praia. Mas a maré estava cheia e o areal igualmente cheio. Por isso, fizemos a nossa caminhada à beira de água, que bem boa estava, e, no fim, desamparámos sem que nos tivéssemos sequer sentado. E, dali, viemos comer um big gelado. Viemos, não. Vim eu. Um belo gelado de três bolas, bom que só visto. De comer e chorar por mais. (E depois, com esta cara de pau que tão bem me caracteriza, digo que é a menopausa... É, é; está bem, abelha. )


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As mulheres que aqui hoje vieram espreitar a prosa nasceram, como é bom de ver, das mãos de Rubens e, como deu para ver, fizeram-se acompanhar de uma das belas composições de John Barry

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Quando fui à procura da música de que estava afim, aquela ali em cima, o YouTube propôs-me o vídeo abaixo. Sou pouco amiga de enlatados, confesso. Mas, na volta também efeitos da querida menopausa, ando mais dada a coisas em jeito de assim. Portanto, sem delongas, aqui fica o dito vídeo onde se podem ouvir e ler coisas que não são mal pensadas, não senhor.


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E a si que, pacientemente aí está desse lado, desejo um belo dia de domingo

sábado, julho 25, 2020

Isto não são "ciprestes" alaranjados nem poplars, muito menos abortices.
Isto, gente de gosto refinado, isto é William Tell em estado puro. Puríssimo.



De vez em quando recebo comentários desnorteados, ajustes de contas, ofensas, baboseiras, dislates, infantilidades, bacoquices. Geralmente é gente que, aparecendo como Anónima ou com nomes mutantes, deixa um rasto atrás de si que é como se aparecesse de saia levantada e rabo de fora, coisa que é igual a aparecer com o nome escrito na testa. Geralmente vão direitinhos para o lixo (refiro-me aos comentários, não aos anónimos) pois não ia deixar material mal cheiroso à vista nem ia aqui pespegá-lo para ter que me dirigir ao Anónimo pelo nome, expondo os seus maus íntimos, deficiente carácter ou sintomas de cagança mal acarinhada.

Mas por vezes aparece um ou outro comentário que tem graça. E ainda com mais graça quando também deixam rasto, trazendo presos a si a etiqueta que os identificam. Alguém que gosta de pintura realista e clássica e que, vá lá saber-se porquê (embora eu saiba, saiba muito bem...), volta e meia resolve mostrar os seus maus fígados. Embora tenha descoberto que a pintura se chama 'Poplars', não conseguiu estabelecer a liaison entre poplar e choupo e, em estado que as más línguas apodariam de perturbação, resolve ver ali ciprestes. E não gostou. E, em vez de ficar na sua, resolve aparecer aqui a chatear. Melhor: a ver se chateia. Mas não, não chateia coisa nenhuma. Tem graça. 
Esse quadro do M.Allan (Poplars?) é simplesmente horrendo. Uns "ciprestes" alaranjados. Onde está a beleza de semelhante coisa? Há gostos para tudo, até para abortices.
Claro que antevejo que se eu aqui puser os sunflowers do Van Gogh o terei à perna, dizendo-me que as rosas que escolhi são horrendas, uma autêntica abortice, ou, se puser as demoiselles d'avignon, me aparecerá a dizer que tenho um mau gosto de dar desgosto, que aquelas meninas-bailarinas cor de rosa estão muito mal pintadas, autênticos abortos. Na volta também me vai dizer que a pintura lá de cima (The dream) é um pesadelo, uma coisa mal parida, um aborto sem tirar nem pôr, que até lhe parece que aquela espécie de mulher tem um pirilau empoleirado na testa, cruzes canhoto, onde é que já se viu tal coisa?

Ora bem. Fazer o quê perante isto? Difícil...

Reflecti, reflecti e achei que, para me redimir, nada como virar-me para a história, para as lendas, para os clássicos. Enfim, para o que realmente importa.

The William Tell Act



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E de nada, ora essa. Por quem sois. 

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E um belo sábado!

Vocês aí que são tão inteligentezinhos e tão convencidinhos de que são os maiores da cantareira vejam lá se conseguem esta proeza aqui...
Conseguem, conseguem...


Já antes aqui falei daquela entrevista e daquele teste que começou por ser para medir o QI para acabar sendo descoberto que de inteligência é nada, que é é teste para detectar demência. Aos poucos vai-se sabendo que perguntas difíceis foram aquelas, aquelas tais que ninguém é capaz de acertar, nem entrevistador, nem rival, nem ninguém. Acertar perguntas ardilosas daquelas é coisa só para gente muito boa, muito inteligente, com muito fantástica cabeça, coisa de laranja genial, de boquinha de botão de rosa do cairo. 

Ora peguem vocês aí cinco palavras e vejam se conseguem repetir. Conseguem é uma ova. Experimentem.
Pessoa, mulher, homem, câmara, TV.
Vá. Fechem os olhos e repitam.  

Ahahaha. Não conseguiram, não é? Ah pois não. Ahahahaha. 

person, woman, man, camera, TV



sexta-feira, julho 24, 2020

Não temos o tempo todo do mundo





Há pequenos momentos. Por orgulho, eu tinha virado costas a um grande amor. Logo depois tive vontade que as coisas voltassem ao que tinham sido mas, em vez de dar um passo nesse sentido, dei no sentido errado. Acto contínuo, por razões diversas que agora não vêm ao caso, deixei que o amor de uma outra pessoa por mim me proporcionasse aquele agrado que, em querendo uma pessoa iludir-se, pode confundir-se com amor correspondido, nomeadamente correspondido por mim. Eu recebia diárias manifestações de amor e, agradada, deixava que elas me fossem prendendo. No entanto, no mais fundo de mim, eu sabia que não era bem aquilo que eu queria para a minha vida. Mas, na altura, eu não sabia se o que eu intuia que queria para mim alguma vez se materializaria e, portanto, por comodismo ou sei lá porquê, ia-me mantendo naquele romance.


Contudo, havia qualquer coisa nos beijos. Ele adorava os meus beijos, não se cansava de o dizer, escrever e cantar. Mas, sem que eu soubesse traduzir o que sentia em pensamento, muito menos em palavras, qualquer coisa no meu íntimo me impedia de verdadeiramente me entregar, nem sequer enquanto beijava. Eu sentia que uma parte de mim permanecia inexpugnável. Ele não sentia isso nem, na altura, eu sabia que o sentia. Hoje sei que sentia. Com o tempo a gente vai descodificando algumas partes menos compreensíveis da nossa existência.

Até que um dia aconteceu uma coisa.

Estávamos no S. Jorge e sei que era um grande filme. Sempre gostei de belos filmes vistos em boas salas de cinema. Gostava do S. Jorge. Estava concentrada, emocionada. Contudo, a certa altura, ele chegou-se a mim e disse-me que ia lá fora. Não estranhei. Se calhar ia à casa de banho. Contudo, estranhei quando reparei que não voltava. Mas o filme prendia-me. Sair para ir lá fora ver o que se passava parecia-me um desperdício. Mas depois, como tardasse demais, tive mesmo que ir. Estava sentado, num sofá do corredor. Perguntei o que se passava. Disse-me que tinha ficado mal disposto com uma determinada cena. Não percebi. Disse-me que tinha sentido que, se ficasse a ver, poderia desmaiar. Não percebi mesmo nada. Tinha sido uma cena no meio de muitas outras, já não me lembro bem mas tenho ideia que alguém agredia alguém, que havia sangue. Eu estava estupefacta. Um filme tão bom e ele cá fora, sem o querer ver, por causa duma cena violenta. Não quis voltar e eu, aborrecida, fui ver o resto do filme sozinha. Nesse dia, ganhou forma a ideia que se vinha formando dentro de mim. Ele não era para mim. Foi como se tivesse havido a revelação de que eu estava à espera.

A partir daí, de vez em quando lembrava-me disto e uma mancha de desagrado alastrava e anulava todo o amor, ternura e agrados com que me me cobria. Lembro-me que era frequente que, enquanto ele me beijava com paixão, eu sentia que nunca eu entregaria a minha alma e o meu corpo a alguém que não tinha suportado ver uma cena de nada, só porque tinha sangue, e me tinha deixado sozinha a ver um filme tão bom. Jamais seria meu companheiro para a vida.

De facto, foi uma questão de tempo e de circunstâncias. Nunca falei sobre isto com ele nem nunca fui capaz de lhe dizer que, certamente não por sua culpa, ele estava muito aquém do que a minha alma e o meu corpo reconheciam como essencial.

Curiosamente não consigo lembrar-me do filme. Recordo 'A amante do tenente francês' mas não deve ter sido esse, esse não tenho ideia que tivesse cenas mais violentas, só me lembro do amor entre a Meryl Streep e o Jeremy Irons, da voz deles, uma voz tão bonita, do olhar apaixonado entre eles. Não acredito que fosse esse.

Já vivi muitos anos. Tem passado a correr. Sinto-me ainda a mesma jovem que se deleitava e embevecia com tudo, sempre com vontade de rir, sempre disponível para ir em busca de bons momentos. Mas, se me puser a pensar, percebo que a minha vida já pode começar a organizar-se por décadas. Um dia que eu tenha sossego ainda hei-de sentar-me a escrever as minhas recordações, especialmente aquelas de que aqui não posso falar. De forma geral, tem sido tudo bom. É com doçura que as evoco.

Tenho ideia que, salvo talvez o caso referido e algumas concessões a nível profissional que, por forças que mais alto se levantaram, sempre fui muito franca, muito directa na expressão das minhas vontades, sempre fui atrás do que queria, sempre neguei aquilo que não queria, sempre me deixei tocar pela beleza, pela emoção dos bons sentimentos.

Sempre tive muito presente a noção da minha finitude, a certeza de que sou efémera e que tudo o que de bom se relaciona comigo deve ser agarrado com agradecimento e cuidado pois pode desaparecer. Vita brevis. Tempus fugit.

Por isso vos digo: aquilo que queremos, que queremos não à superfície mas no nosso íntimo, deve ser procurado e, uma vez encontrado, preservado e acarinhado. E aquilo que não nasceu para fazer parte da nossa vida deve desaparecer para que se abra o espaço onde a felicidade verdadeira deve poder florescer. Não temos a eternidade pela frente. Temos apenas estes breves instantes em que temos a sorte de poder viver.


O vídeo abaixo, que o omnisciente algoritmo do YouTube hoje me apresentou, pelo que vejo na apresentação de Slyfer2812, resulta de uma compilação de excertos de filmes e respectiva edição de um jovem estudante de vinte anos. Não apenas gostei muito como fiquei surpreendida por um jovem de vinte anos já ter uma percepção tão nítida do que é importante na vida.


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As pinturas que hoje resolveram aqui dar as caras são de Micky Allan e gosto delas

De Nick Cave não vale nem a pena falar: gosto sempre, não sou isenta
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Um dia feliz. Uma vida feliz.

Gee, Anthony Fauci!


No meio da bagunça, da propaganda, da manipulação e distorção da informação, ainda sobrevivem vestígios da liberdade de expressão e do lado bom da democracia. Claro que podem ser vestígios inúteis mas, dos vestígios renasce, por vezes, em força, o que existia antes do desmoronamento. Com o descrédito que Trump e apaniguados representam para os seres que prezam a lógica e o que se aparente com a verdade, com a forma razante e ineficiente como (não) está a ser feito combate ao coronavírus e com o retrocesso civilizacional a que todos os dias se assiste por aquelas bandas, em especial se observarmos as declarações do Trump e ou da sua porta-voz, é uma lufada de ar fresco ver os vídeos de Randy Rainbow. Valha-nos a liberdade de movimentos que lhe faculta que a sua opinião seja tão divertida e claramente expressa.

Um santo em vida, este Dr. Fauci. 
A sua capacidade de aguentar todos os destratos e burrices do narcisista-mor, o palhaço cor de laranja, é ímpar. 


Até já

quinta-feira, julho 23, 2020

Trabalho, vida -- e o equilíbrio entre as duas coisas em tempos de coronavírus.
Que é como quem diz: o novo normal





Para quem, como eu, não praticava, por hábito, o teletrabalho, esta modalidade confunde-se, nas nossas cabeças, com outros factores que, em circunstâncias normais, não estariam associadas ao teletrabalho.
Por exemplo, ter crianças em casa ou a terem aulas e a carecerem de algum suporte e/ou controlo, ou, se mais pequenos, a precisarem de apoio a tempo inteiro é algo que obriga a um dispêndio de atenção, a um esforço de paciência, a um permanente exercício de equilíbrio.  
Depois o ter que estar sempre a confeccionar refeições... outra seca. Antes, almoçava sempre 'fora', muitas vezes à sexta à noite e ao fim de semana também. Agora népias. Meses a pensar 'o que é que se há-de comer...?'. A única excepção é a bela pizza que mandamos vir entregar a casa quando chegamos à cidade e é porque a caixa vai para o lixo e a pizza para o forno, para matar qualquer hipotético bicho. Ou, no dia dos meus anos, dia, por sinal, muito atarefado, em que chegaríamos a casa depois das três da tarde e não havia pachorra para ainda ir cozinhar. Então, fizemos o impensável: fomos ao McDonalds comprar um menu para cada um. Chegámos a casa e foi ao forno. Depois sentámo-nos e foi uma festa. Batatas fritas com ketchup, aqueles grandes hambúrgueres. Claro que a família, quando soube, ficou escandalizada. Aliás, nem queriam acreditar. Os miúdos, então, que estão instruídos naquela disciplina de que não é saudável comer aquele tipo de comida, estavam estupefactos. Paciência. Um dia não são dias. E soube-me que nem banquete.  
Mas, voltando ao teletrabalho, outra que agora também se mistura é a de vivermos com a pancada do contágio, a sair menos e, quando saímos, tendo que usar máscara, desinfectar as mãos, chegar a casa e lavar as coisas ou pô-las de quarentena. Ou seja, fruto de vivermos um período de pandemia, às tantas confundimos o teletrabalho com o stress do medo do contágio.
Eu, que de modo algum posso queixar-me -- pude ir para o campo, tenho uma casa grande e etc. -- já me vi atrapalhada sem ter como fazer uma reunião em sossego por haver miudagem à solta e a fazer barulho e haver um adulto em cada canto em videoconferências. Imagine-se, pois, como será para quem vive em casas pequenas, sem privacidade, sem meios para poder trabalhar em conforto e sossego, com miúdos por perto aos saltos e aos gritos. Ou, então, tendo como parceiro/a de casa, a ouvir as conversas, alguém que não tem nada a ver com aquela realidade e que não sabe respeitar ou que, depois goza ou desvaloriza. Um stress, imagino.

Mas, retirando esses factores que são conjunturais, pensando apenas no teletrabalho, para as funções em que tal seja possível parece-me uma coisa do melhor. Claro que tem que ser da vontade do próprio. Se a pessoa sente que não tem condições para trabalhar eficientemente e em paz, então deve ser livre de dizer que quer trabalhar presencialmente. Depois é muito importante perceber que há pessoas que precisam de ser dirigidas e controladas. Quando o não são, sentem-me abandonadas, entregues à sua sorte, desmotivam-se, quase deixam de trabalhar. Quem coordena equipas em teletrabalho tem que estar mais presente (remotamente falando, claro) do que antes e tem que deixar espaço para que os carentes se manifestem, para que sintam que há quem lhes dê colo. Claro que isto é mais exigente para quem tem que garantir que o trabalho é feito e que a malta anda contente e motivada. Por mim, fiquei a perceber os que têm mais estofo, os que são mais frágeis, os que sabem automotivar-se, os que sentimos que se afundarão se não estivermos ali para lhes dar uma mão.

Mas o teletrabalho, quando está bem enquadrado e há condições para isso, proporciona um equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional, proporciona uma vida mais saudável e, estou em crer, um país também mais equilibrado, sem a pressão urbanística das grandes cidades. 

Seja como for, é assunto a ser equacionado abertamente, sem preconceitos, pensando nas pessoas e no futuro da sociedade.


Contudo, conheço muito boa gente que é contra, mil vezes contra e muito mais contra quanto pensa que quem o defende quer é estar de férias e a receber o ordenado. Torna-se difícil falar com quem assim pensa pois parece que cada argumento nosso é uma mera desculpa esfarrapada para querer é viver no bem-bom.

Talvez por isso, gostei de ver o vídeo do The Guardian, com a simpática  Iman Amrani 

Work, life and balancing it all during coronavirus | A New Normal



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As pinturas são de Alvin Hollingsworth (e não vale a pena tentarem encontrar ligação entre as imagens e o texto) 
e estão aqui na companhia de Cai Thomas que canta Suo-Gân 
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E abaixo a solidão e viva a alegria.

Um dia feliz para si, para quem estou a escrever.

quarta-feira, julho 22, 2020

Casas.
As minhas. As dos outros. As vossas.





Depois de me ter casado, já vivi em quatro casas. Uma é esta em que estou, no campo, uma casa que, depois de muito procurarmos, descobrimos no meio do nada e pela qual todos nos apaixonámos imediatamente. As outras são casas de cidade. A primeira era um pequeno ninho no alto muito alto de uma muito alta torre, um apartamento dentro do céu de onde se via Lisboa de ponta a ponta e a margem sul também de ponta a ponta. Quando nasceu a minha filha não apenas a casa se tornou pequena como eu temia que ela, ao começar a andar, algum dia se aventurasse mais do que devia e sofria vertigens e pavores só de pensar nisso. Saímos de lá para uma casa mais espaçosa, que compensava a falta de boa vista com o facto de ser bem situada e de ter uma arquitectura acolhedora. Até que os livros começaram a transbordar sem terem para onde. Já não havia onde colocar mais estantes e não houve como não procurar uma casa maior. Aquela em que agora vivemos pareceu caída do céu. Ampla, com uma vista fantástica, cheia de luz, com uma distribuição harmoniosa. Os meus filhos eram adolescentes, tínhamos coonosco a nossa querida cãzinha. Uma casa à nossa medida.

Apesar de eu ser grande admiradora de arquitectura e apesar de haver arquitectos na família, apesar de eu própria não me importar nada de ter sido arquitecta, nunca comprar um terreno e, como num projecto greenfield, conceber e construir de raiz foi opção. Também nunca nos sentimos atraídos por casas novas, acabadas de construir. 

As razões dele eu não sei, nunca falámos sobre isso, mas as minhas eu sei. Gosto de sentir nas casas a vida dos que nos precederam, dá ideia que me faz mais sentido dar continuidade à ideia que outros, antes de mim, tiveram. Gosto, em especial, de casas com um cunho muito pessoal, porventura reabilitadas, acrescentadas. Esta em que agora estou tem uma parte com centenas de anos. Gosto de pensar em toda a gente que, ao longo de séculos, por aqui passou. Paredes com quase dois metros de espessura, feitas de pedras, grandes pedras. Depois o anterior dono concebeu a sua ampliação, construíu-a quase com as suas próprias mãos. Foi tudo feito com projecto aprovado e vistoriado pela Câmara mas foi numa altura em que os projectos não tinham que ser feitos por arquitectos. Foi ele que a imaginou e, com a ajuda de um engenheiro civil, converteu as suas ideias em projecto. Contudo, a mulher nunca se habituou a viver no campo. Ele gostava de ir melhorando a casa, tinha sempre o que fazer, fez armários, forrou um tecto a madeira. E ela odiava. Sentia-se presa, queria era viver na cidade. Os vizinhos contaram-nos que ela, por vezes, saía a correr e que ele ia a correr e a chamar por ela, buscá-la. Tinha o mesmo nome que eu. Até que se separaram. E ele teve tamanho desgosto que pôs a casa à venda.

Deixou cá tudo: mobílias, louças, bibelots. Acho que só roupas é que não. Mudei o lugar de tudo, escondi algumas coisas mas creio que não deitei nada fora. Durante anos, dormíamos no quarto mobilado por eles. Disfarcei algumas coisas, mudei de candeeiros, coloquei um espelho que arranjei num antiquário. Mas era o quarto deles. Essa mobília agora está no estúdio. O candeeiro da sala de jantar e o da cozinha ainda são os deles bem como a mesa e as cadeiras da cozinha bem como a mobília da sala de jantar.

A casa da cidade em que agora vivo foi uma coisa também assim. O dono gostava muito da casa. Tinha sido ele, enquanto jovem engenheiro, que tinha colaborado na construção do prédio e o último piso foi logo preparado para si já que o pai era o construtor. Mas separou-se e a mulher seguinte não queria viver na casa onde ele tinha sido feliz com outra mulher. Então ele pensou remodelar a casa de alto a baixo a ver se a convencia. Tudo novo. Mas a mulher não queria nem escolher acabamentos nem dar ideias quanto à remodelação e ele, certamente para a pressionar, pôs a casa à venda. Foi aí que soube dessa casa, por mero acaso. Ele dizia que não queria vender a casa mas deixava-me escolher todos os acabamentos, sem qualquer restrição de valor, tudo totalmente a meu gosto mas sempre na esperança que a mulher retrocedesse e aceitasse lá ficar. Quando percebeu que a decisão da mulher era definitiva, decidiu-se a vender. No dia da escritura estava inconsolável, chorou. A mulher disse-nos que ele não se conformava e que a filha também não, gostavam os dois muito daquela casa mas que ela era incapaz de ir começar uma vida ao lado de alguém numa casa tão cheia de memórias para ele, memórias das quais ela não fazia parte. Contou que estava grávida. 

E eu gosto de estar em casas que foram tão amadas por quem lá viveu, que foram imaginadas nos mínimos detalhes. E penso agora quer na da cidade mas, também, nesta aqui no campo, in heaven. Parece-me que me sinto herdeira de alguém que deixa um testemunho, alguém que sonhou, imaginou, se sentiu emocionado a ir para lá viver, que lá teve as suas múltiplas vivências.

No decurso dos processos de escolha de uma casa, vêem-se muitas casas alheias. Uma pessoa pasma com muito do que vê. De forma geral, a ideia com que fico é que a maior parte das casas são feias ou porque são fechadas sobre si próprias, ou têm pouca luz ou, então, porque têm decoração escura, ensimesmada, triste. 

Há excepções. Há tempos vi uma casa extraordinária: muito ampla, paredes quase todas de vidro, clarabóias, vários níveis acompanhando o desnivelamento natural do terreno, um corredor do qual se viam dois níveis abaixo e de onde se subia para dois níveis acima, cada nível separado do seguinte por meia dúzia de degraus. Casa magnífica. Um mobiliário minimalista mas de boa qualidade, uma mesa e umas cadeiras de extraordinária qualidade e design. Não estava à venda. E era uma magnífica excepção. 

Há um outro aspecto a referir: as casas das pessoas conhecidas, família ou amigos. Nessas eu não gostaria de viver e, de resto, fazem-me alguma impressão pois é como se detectasse ali sinais da sua intimidade. A casa das pessoas espelha a alma de quem lá vive. Pode ser árida, triste, banal, desconsolada, uma casa à espera de ser habitada. Ou requintada, reveladora em pequenos apontamentos, acolhedora, vibrante.

E, talvez por tudo isto, gosto imenso de ver casas - dantes era através de revistas de decoração, agora é através de vídeos. Gosto muito. Não me canso. Inspiram-me.

Se eu tivesse aptidão para escrever poesia, escrevia poemas sobre a casa. A minha. A primeira de que me lembro, a dos meus pais antes de terem construído a que viria a ser a sua casa, uma casa de que me lembro estranhamente bem, depois a actual, a casa onde fui criança, depois adolescente, onde levei os meus namorados, onde me casei e onde a minha mãe agora vive sozinha. As minhas casas, mesmo minhas, onde foram feitos e cresceram os meus filhos, onde eles viveram até irem construir as suas vidas, onde agora regressam com os seus próprios filhos. A que nos envolve e traz cá para fora o que temos de melhor. A casa que, um dia, será a nossa última. E a casa dos outros. As casas de quem me lê, as vossas casas. As casas que vos acolhem. E esta minha casa, esta vossa casa.

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E deixem que partilhe dois vídeos dos vários que estive a ver






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E um dia feliz para si que aí está desse lado.