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quarta-feira, julho 02, 2014

A mensagem de Judite Sousa no facebook: agradecimento pelo apoio recebido e uma tocante confissão de uma profunda dor, de um desamparo imenso. E o que eu lhe diria, se pudesse dizer-lhe alguma coisa: palavras pequenas perante a dor infinita de perder o seu filho único, o seu André.





Tinha decidido não falar mais nisto. Não é meu costume deixar-me abater assim nem a notícia me diz directamente respeito. Percorro os blogues que acompanho, percorro grande parte dos jornais e quase ninguém fala nisto - e eu percebo. Não faz sentido uma pessoa ficar tão comovida perante a morte de alguém que não conhece. Não faz sentido uma pessoa deixar-se afundar perante um drama isolado. Há tanta dor no mundo, porquê incidir a angústia num único caso?

A verdade é que não sei explicar. Talvez porque acompanho Judite Sousa há tantos anos e há tantos anos falo dela - tantas vezes com ironia por causa das suas toilettes que me parecem excessivas ou pelas suas mudanças de visual, parecendo não acertar com o estilo que mais a favorece - que quase a vejo como alguém que me é familiar. Mas não é só isso. É que a acho humilde, de uma humildade que me agrada porque a vejo sempre receptiva a aprender ou aberta a colher novas ideias para o seu trabalho. Acho que deve ser boa pessoa. E acho-a frágil. E dizia-se sempre tão dedicada ao filho, parecia apoiar-se tanto no filho. A morte de um filho é daqueles horrores que nenhuma mãe consegue imaginar, nem quer em tal pensar. E eu não estou a ver como é que a frágil Judite, vulnerável e ainda mal recuperada de todos os problemas pelos quais passou recentemente, vai arranjar forças para superar tamanha dor.

Há uns anos eu tinha uma colega de quem era grande amiga. De facto, éramos a melhor amiga uma da outra. Ela tinha um marido por quem era apaixonada e de quem falava amiúde. Ela era sensível, ele era calmo, bem disposto. Ela tendia a preocupar-se facilmente, ele era à prova de stress. Ela pertencia a uma família de gente ligada às artes, ele era do mundo dos negócios. Complementavam-se, admiravam-se mutuamente, eram invulgarmente felizes. Iam frequentemente ao cinema, à praia, passear, e andavam sempre juntos. Todos os dias ele deixava-a de manhã na empresa e, à tarde, ia buscá-la e ficava no carro, lá em baixo, à espera dela. Ela via-o da janela e ficava sempre enlevada com o seu amor lá em baixo, infalivelmente à sua espera. Todos nós admirávamos a sua paciência, a sua compreensão e carinho.

Por vezes, se ela estava mais atrasada, ele subia. Já lá tinha trabalhado, conhecia toda a gente, aproveitava para cumprimentar velhos amigos. Era um simpático. Lembro-me que, por altura do Nove semanas e meia ele dizer que me achava parecida com a Kim Basinger. Eu ria, dizia à minha amiga que o marido era um sedutor, que mentia para fazer charme, e ela ria.

Um sexta feira, por volta das 5 da tarde, ela foi ao meu gabinete, apreensiva, que ia sair mais cedo, que estava preocupada, que o marido não tinha ido trabalhar, dizia que não se sentia bem, sem saber bem dizer o que tinha, e ela achava que ele estava com um princípio de depressão porque estava em rota de colisão com o administrador e receava até que ponto podia ir essa aversão, e que, havia pouco, ele lhe tinha ligado a dizer que ia ao médico, que não estava melhor. E que ele não era de doenças, de ir ao médico, que estava preocupada, que ia ter com ele. Fui despedir-me dela ao elevador, tranquilizando-a, que se calhar ele precisava de um ansiolítico, que não havia de ser nada, que ele não desse tanta importância ao dito administrador. Ela foi, inquieta. A porta do elevador a fechar-se, ela preocupada e eu a dizer-lhe adeus, até segunda, vá fazer-lhe um mimo, sim, se ele está preocupado com o emprego, vá dizer-lhe que há mais na vida para além do trabalho.

No sábado, estava eu a passar o dia em casa dos meus pais e tínhamos ido passear para o campo, ligou-me um outro colega meu, também ex-colega do marido dela, a dizer-me que me ia dar uma notícia terrível, que eu me preparasse, que são coisas que acontecem: o marido da minha grande amiga tinha morrido na sexta à tarde, pouco depois dela chegar a casa tinha caído nos braços do filho, então adolescente, e que, na ambulância, ia de mão dada com a nossa colega, ela achava que ele tinha morrido ali, a olhar para ela, mas que no hospital ainda tentaram reanimá-lo. Fiquei em choque. Como era tal possível? Ainda na quinta feira o tinha visto e estava bem. Como era tal possível? Mas, sobretudo, não imaginava como seria possível a minha amiga sobreviver sem o grande amor da sua vida. É certo que tinha um filho mas um amor como o dela pelo marido não era comum e, do ponto de vista emocional, ela dependia completamente dele.

Nessa tarde fui à igreja mas fui a medo. Estava muito abalada e não imaginava o estado da minha amiga, receava muito por ela e sabia-me num estado que não se recomendava. Quando lá cheguei não os encontrei. O meu colega tinha-me dito que a igreja era a S. João de Deus, que é na Praça de Londres e, afinal, estava na S. João de Brito que é em Alvalade. Como estava com o meu marido e os miúdos queriam ir para casa, isso foi o pretexto para não fazer mais diligências para esclarecer o equívoco. Arrependida por ser tão pouco corajosa mas sem ser capaz de ser forte, fui para casa.

Mas, claro, no outro dia, a medo, muito a medo, lá fui. Quando a minha amiga chegou à igreja já eu estava cá fora. Parecia que tinha envelhecido cem anos e mal andava. Ia amparada pelos sobrinhos mais velhos e pelo filho. Ela não me viu e eu não fui capaz de ir ter com ela. Fiquei cá fora, impotente, cobarde.

Quando saíram da igreja, ela de novo amparada, o rosto quase desfigurado de tanto chorar, fiquei arrasada com o estado dela, estava irreconhecível, quase sem conseguir andar. Mas então ela viu-me. Veio na minha direcção e abraçou-se a mim, e chorava, chorava, e eu não consegui mais conter-me, desatei também num choro que não parava. Ela tratava-me, e trata-me ainda, pelo meu diminutivo e perguntava-me, como vou eu conseguir viver sem ele? e eu só era capaz de dizer vai, vai. Estivemos assim não sei quanto tempo, e ela dizia-me 'não vou conseguir viver sem ele' e chorava e eu, também a chorar, dizia 'vai, claro que vai'. Tenho ideia que, durante todo o tempo em que esteve abraçada a mim, eu a ampará-la, o que dissemos não passou disto.

Depois lá pegaram nela e lá a levaram. No cemitério, junto à cova, perdeu as forças e foi um sobrinho que a pegou ao colo. Foi assim, ao colo do sobrinho, leve como uma folha sem vida, que saíu de lá. Quando veio a ela, procurou-me com os olhos e fez-me um adeus ao de leve, cheio de tristeza.

Apenas uns quinze dias depois conseguiu voltar ao trabalho mas não parecia a mesma, envelheceu, encurvou-se, deixou de se maquilhar, o cabelo perdeu força. Eu tentava animá-la, íamos almoçar juntas, eu contava-lhe maluquices, fofoquices, tentava entusiasmá-la com roupas, que ela devia vestir uma roupa mais alegre, que devia pôr uma sombrazinha nos olhos, um baton, e queria que ela me contasse tudo sobre o filho, sobre o curso que tinha começado a tirar, e - sobre a equitação, sobre o amor crescente do miúdo por cavalos, e ela ia respondendo - mas sempre sem alegria. A vida começou a parecer-lhe uma casa desabitada.

Valeu-lhe sobretudo a irmã, ligada a museus, amiga de pintores e escultores, gente geralmente animada, e valeu-lhe também a catrefada de sobrinhos que ora tinham emprego, ora o perdiam, ora saltavam de um para outro e que mudavam de namoradas e namorados e que, depois, começaram a casar-se e descasar-se e, depois, a ter filhos e agora já devem ser quase uns vinte sobrinhos-netos senão mais e depois o filho dela, rapaz precocemente adulto, triste, que também arranjou namorada e, toda essa gente em sua volta impedia-a de se sentir tão desoladamente sozinha.

Mas nunca mais foi a mesma. Perdeu a alegria de viver. Numa qualquer reestruturação das muitas que sempre estão a acontecer, resolveu ir-se embora com indemnização. Tentei demovê-la, achava que ela em casa, sozinha, sem a rotina do trabalho, deveria sentir ainda mais a solidão mas ela disse que já não suportava a rotina de ir e vir todos os dias. Provavelmente não suportava não ver o marido no carro lá em baixo, aquela janela vazia devia recordar-lhe a toda a hora a ausência tremenda que sentia.

Foi-se embora e, mais tarde, reformou-se antecipadamente. Não há aniversário meu ou natal de que ela se esqueça. Toma conta dos sobrinhos-netos, ajuda a irmã a gerir aquela grande casa que é uma plataforma de apoio familiar e que também está sozinha já que se separou do marido, alguém bem conhecido dos meios culturais nacionais, um galã por quem também era apaixonada e que a trocou por uma jovem assistente, bela e ambiciosa.


A minha amiga conseguiu sobreviver mas ficou para sempre um ser incompleto. Muitas vezes recriminava-se por não ter percebido a gravidade da situação e o ter deixado em casa sozinho naquela fatídica sexta feira e esse sentimento ainda agudizava mais a sua dor. Mas sobreviveu. Sobrevive-se sempre especialmente se se quiser mesmo voltar a sentir o gosto por viver.

Claro que nem todas as pessoas são iguais nem as circunstâncias as mesmas. Conheço muitas pessoas, a maioria, que, depois de um período de luto, prossegue a sua vida, vai em frente, reencontra o equilíbrio emocional, volta a parecer ser capaz de encarar a vida com normalidade.

Li há pouco no DN o que Judite de Sousa escreveu no facebook e que depressa foi partilhado publicamente por vários amigos e que aqui transcrevo:


Não tenho palavras para expressar a minha gratidão. A todos. Do fundo do meu coração.

Perdi o meu filho. O meu único filho. A luz que dava sentido à minha vida. O meu santo que tantas alegrias me deu. Bom filho, bom estudante, inteligente. Com uma carreira de sucesso. Não sei como vou ultrapassar esta dor. O que sei é que uma parte de mim morreu com o meu André. Interrogo-me sobre o sentido da minha vida. As minhas escolhas, a minha vida focada no trabalho, na escrita, tendo sempre presente que o meu filho era quem mais se orgulhava do que eu fiz e construí ao longo da minha vida. Fiz tudo para que nada faltasse ao meu André, mas não consegui salvar-lhe a vida. Um fracasso e uma tragédia. Estranha vida a minha! Realizada profissionalmente, dramática pessoalmente. O último ano foi penoso. Apenas existia o meu André que me dizia muitas vezes: " Mãe, não vais ficar sozinha". E eu acreditava. Acreditava. Eram palavras ditas pelo meu filho, um jovem ponderado e sensato.


Parte-se-me o coração ao ler estas palavras tão tristes. 

Penso que percebo muito bem a infelicidade dela. Um dia, há 29 anos, o filho saíu de dentro dela e só agora, que ele partiu, é que ela sente o seu corpo verdadeiramente vazio. O que ela sente, agora, deve ser um vazio sem remissão. Como poderia não o sentir?

Tal como tentei fazer com a minha amiga, gostava também de tentar animá-la a ela, contar-lhe palermices, desafiá-la para irmos aqui ou acolá, confortá-la de alguma forma, dizer-lhe que o André está ali, na curva da estrada, que apenas não o está a ver mas que ele está lá, e que as suas memórias acompanhá-la-ão como se ele estivesse entre nós, perto dela, dizendo-lhe que não tenha medo, que nunca a vai deixar sozinha. Enquanto ela se recordar dele, ele estará dentro do seu corpo.

Palavras assim que talvez a pudessem ajudar - se é que há alguma coisa que possa ajudar uma mãe que perde um filho.  Mas, pelo menos, palavras que a mantenham distraída, iludida, e que a ajudem a atravessar o tempo que falta até que encontre maneira de viver, em paz, com o André dentro do seu coração.

E, então, quando estiver mais forte, que volte à televisão. Estamos à sua espera. E eu, nessa altura, meter-me-ei outra vez com ela, com as suas saias que deixam a bela perna bem à vista, com os seus saltos altos que fazem o meu marido dizer uns piropos, com os seus à partes 'mas ó dr. medina...' que me fazem rir - mas saberei que ela, como tantas outras mulheres que passaram pela mesma tragédia, conseguiu sobreviver. Porque se sobrevive sempre.

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Não quero falar mais nisto. Temo que tomem estas minhas palavras como mórbidas ou como um voyeurismo descabido. Não são. Quem aqui me costuma acompanhar sabe que sou avessa a isso.

Estas minhas palavras são apenas a confissão de como isto me abalou. Uma mãe sente uma coisa destas como a confirmação de que uma desgraça assim é possível - e isso aterroriza-nos. Não queremos pensar que isto possa alguma vez acontecer e, quando vemos uma mãe a passar por isto, a gente interroga-se: que forças descobrirá ela para conseguir sobreviver?

Mas é verdade: por quantas mães eu teria que chorar se chorasse por todas as mães que perdem filhos? 

As mães grávidas que embarcam, ao monte, numa qualquer embarcação onde se morre de fome, sede, falta de oxigénio, em busca de um futuro mais do que incerto. As mães que perdem os filhos em cenários de guerra. As mães que vêem os filhos ou as filhas raptadas. As mães que vêem os filhos sem cabelo, entubados, nos hospitais onde se espera um milagre todos os dias. As mães que não têm dinheiro para dar de comer aos filhos e que temem perdê-los para uma qualquer instituição. 

É um facto: por quantas mães eu teria que chorar se chorasse por todas as mães que choram pelos filhos?

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  • Horowitz interpreta Schubert-Liszt Ständchen (Serenade)
  • As mulheres abstractas são de André Wee
  • As fotografias de casas abandonadas são do fotógrafo alemão  Sven Fennema
  • A árvore cujas raízes se iluminaram é uma fotografia manipulada de Barry Underwood.
  • A última fotografia é uma fotografia galardoada pela World Press Photo, tirada no Yemen, e é da autoria do fotógrafo espanhol Samuel Aranda para o The New York Times.

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Amanhã, tenho a certeza, já falarei de outras coisas mais animadas. Há tantos assuntos.
(E talvez amanhã não me pareçam ridículos.)

Aliás, se ainda conseguir hoje, já o farei.

Mas, pelo sim, pelo não, já aqui deixo as minhas despedidas.
Tenham, meus Caros Leitores, uma boa quarta feira.

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