sábado, fevereiro 29, 2020

Coronavírus:1 milhão de infectados em Portugal?
É provável. Mas a vida não pára. Por isso, bola para a frente e rendamos homenagem a Ofélia.





Vem na 1ª página do Expresso mas desde há alguns dias que eu, vendo as curvas de propagação e olhando os factores multiplicativos, vinha dizendo que não via como conter o COVID-19. Se vivêssemos em aldeias, em casinhas isoladas, se não respirássemos todos o mesmo ar em grandes espaços fechados (como grandes escritórios, centros comerciais, cinemas, etc.), se não houvesse a globalização, as feiras internacionais, os Erasmus, as abertura de fronteiras, as viagens baratas e o turismo permanente e global, toda a gente a voar de um lado para outro (a voar ou a andar aos milhares, fechados em paquetes), aí talvez se pudesse conter a progressão do vírus. 

Assim é impossível.

Se, ainda por cima, pode haver recidivas (parecendo que a pessoa que contrai a virose não fica imunizada) ou se o período de contágio se inicia antes da fase sintomática, então, adeus minhas encomendas.

Em cima disso, agora percebeu-se que os cães também ficam apanhados. Era o que faltava. Ou seja, é para esquecer. Não dá para conter.

Quando houver uma vacina -- para gente e, provavelmente, para animais -- e, se calhar, quando já parte significativa da população tiver sido tocada e, portanto, quando já existirem algumas resistências, aí talvez o bicho enfraqueça e deixe de ser tema.


Mas isto digo eu que não sou expert em nada disto. Digo porque, se pensar em termos de modelagem daquilo que se observa, facilmente antevejo que o resultado será justamente qualquer coisa como o que Graça Freitas refere, ao que percebo baseada em modelos matemáticos. Um décimo dos portugueses infectados nos próximos tempos (não li o artigo mas admito que o horizonte temporal em causa se refira aos próximos anos) parece-me um número provável. 

Não se veja isto como alarmismo mas como aquilo que é. E isso não é forçosamente uma catástrofe. Quantos portugueses já tiveram gripe de outros tipos? Certamente também milhões e daí não veio grande mal ao mundo (excepto, claro, para os vários milhares que morreram e para as famílias que os choraram).

Claro que o Expresso, ao puxar para parangona de 1a. página o número de 1 milhão, está a procurar o efeito sensacionalista mas disso a Graça Freitas, mulher inteligente e serena, não tem culpa.


Além do mais, até ver, com o coronavírus, a maior parte dos casos é benigna, coisinha de pequeno incómodo, febrinha ligeira, cansaçozinho bobo. Pior mesmo, e, por favor, não se negligencie isto, são os idosos ou os previamente doentes e debilitados. É muito por eles que temos que tentar aguentar-nos 'limpos', para que o contágio não lhes chegue. Vamos esperar que o cumprimento das medidas que estão a ser recomendadas, acrescidas do distanciamento social (controlado e sensato), e dos planos de contingência das empresas e da sociedade em geral bem como os conselhos de higiene que têm estado a ser publicados, ajudem a ganhar tempo até que a vacina ou o tratamento estejam no terreno. Para mim é isso que está verdadeiramente em causa e não tanto o pretendermos travar o mar com as mãos.

Quando houver vacinas e/ou tratamentos eficazes o OVID-19 deixará de ser um bicho papão. É o que dizem e eu acredito. Mas até lá, sem dramas ou histerismos mas com disciplina, informemo-nos e sigamos as indicações da DGS e da Organização Mundial de Saúde.
Teorias da conspiração, textos que correm nas redes sociais a desvalorizar as recomendações ou a comparar com outras epidemias ou a reescrever conselhos à luz de pretensas teorias de cão de caça é que não. Confiemos nos cientistas, nos técnicos de saúde e no bom senso e na franqueza dos responsáveis. Podem não ser infalíveis mas, até ver, são a nossa melhor fonte de informação.

Para além da saúde pessoal há depois a saúde da economia. A economia é uma dama assustadiça. Mais hipocondríaca do que a minha tia -- e se ela é hipocondríaca -- só de pensar que pode ficar doente, já a economia cai de cama. Com as bolsas prestes a irem ao tapete e com as campainhas a começarem a anunciar o desastre, a verdade é que desde rupturas de stocks a défices de tesouraria com danos sérios para muitas empresas, o que aí vem pode não ser boa coisa.

Mas, sempre que há ameaças, há oportunidades pelo que aguentemos firme que a coisa há-de voltar a entrar nos eixos. O tempo é de resiliência. 

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Tirando isso, a vida continua. E eu, depois de um dia que na vida de algumas pessoas com quem lido de perto se pode considerar de charneira, com emoções mais ou menos fortes à mistura, preciso de um pouco de sossego e de beleza. Permitam, pois, que, pela mão de Odilon Redon, traga aqui Ophelia entre as flores. Imagens belíssimas. Não que venha a propósito mas, justamente, porque não vem.


E agora vou escolher livros para ler no fim de semana que é um momento que sempre me enche de emoção boa e irracional, levando-me a pegar em vários pois, nestes momentos, na minha cabeça, acho que pode acontecer que, a meio de algum, deixe de estar in the mood para ele, ou que, estando toda prosa, às tantas, sinta que está a chegar a horinha da poesia, ou, ainda, que estando a meio de uma pura ficção me sinta puxada para a epístola ou para a diarística. Ou que, estando numa de filosofia, sinta que a minha beleza está a ficar cansada e sinta o apelo dos louvores da terra. Portanto, sendo certo que todo este processo é um déjà-vu, a verdade é que só o facto de passar a mão pelas resmas de livros, já me faz sentir o frisson que as coisinhas boas da vida costumam produzir em mim.

E, antes de me ir, com vossa licença, agora a beleza das palavras.

Mel Gibson como Hamlet. Helena Bonham Carter como Ophelia.


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E a si que está aí desse lado desejo um sábado bom.
Saúde e boa disposição.

sexta-feira, fevereiro 28, 2020

Alguns bem-pensantes que eu conheço
(desabafos em noite de inquietações)





A dúvida que tenho é: um dia que possa falar, falarei, ou, pelo contrário, não quererei perder mais um minuto da minha vida com as fracas figuras com que me tenho cruzado?
Os cobardes. Tantos. Os tacticistas, os interesseiros. Tantos. Os inertes. Aos montes. Os oportunistas. Tantos. Os zeros que só sabem dizer mal e nada acrescentam. Tantos. Os irresponsáveis. Demais. Os inconscientes. Demais. Os bajuladores. Montes. 
Quanto da história das nossas empresas, da nossa economia e do nosso país se explica por tão grande número de imprestáveis?

Em geral, traço uma linha, que me é ditada pela minha consciência, e por aí vou seguindo o meu caminho. Desalinhada, têm-me dito. pergunto sempre: Desalinhada em relação a quê? A uma linha torta? Outras vezes, cobardemente, justificam-se como se a culpa fosse minha por estar desfasada no tempo: Ter razão antes de tempo é igual a não ter razão. Se sabem que tenho razão, porque a ignoram? 

Em certas situações, só me apetece dizer palavrão, dar joelhada nos seus miseráveis tomates, imprimir numa folha A4 'Se acontecer alguma coisa, atirem-me ovos podres à cara porque sou um cobarde e um irresponsável' e pregá-la nas costas dos seus impecáveis casacos.

Coração ao largo, menina, abstrai-te, pensa em coisas boas, marimba-te neles -- penso. Mas não é fácil. Há dias em que não é fácil.

E ocorre-me: e se um dia fizer de conta que me passei e desatar a dizer aqui para que todos saibam? Os nomes por extenso, os actos enunciados: 
Fulano de tal, perante isto, fez aquilo. Sicrano, perante a necessidade de fazer isto, fez aquilo. Beltrano, perante o risco disto, fez aquilo. 
Ou seja, e se eu deixar de ser solidária (ie, cúmplice) e desatar a dizer tudo?

Mas não: Roma não paga a traidores.

E, de resto, será que o que é importante para mim, é importante para mais alguém? Com tanta nódoa por todo o lado, que interessa a denúncia de mais umas quantas? Provavelmente, quem lesse encolheria os ombros com indiferença e diria: Incompetentes. E daí? Isso é o que mais por aí há a pontapé. Qual a novidade? Dahhhh.

Por isso me ocorre: se agora não o farei, será que um dia que esteja livre, sem amo, recordarei e revelarei estas minhas revoltas? 

Ou esquecerei?

Ou farei algo mais inteligente: vídeos de 'Lições aprendidas', descrevendo aquilo a que assisti como o que não deveria ter acontecido?

Ou farei guiões para séries cómicas, parodiando o que são os comportamentos típicos de grande parte da classe bem pensante do país?

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Pinturas de Yolanda Dorda ao som Heaven Is Closed na interpretação de de Willie Nelson

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E, para (des)anuviar, queiram descer para ver um vídeo que tem que se lhe diga: Be a Lady.

E uma boa sexta-feira!

Be a Lady



Gostava de escrever umas palavras sobre este tema sem me colocar no centro do texto. Gostava de falar na qualidade de narradora e falar delas como se eu não fosse uma delas. Mas não tenho engenho e arte nem, sequer, distanciamento. Sou mulher, gosto de ser mulher. E já aqui o referi que uma das coisas que disseram de mim e que mais me agradou foi dito por um médico, por sinal indiano e lindo, a uma amiga comum: que eu era a mulher mais mulher que ele tinha conhecido. Quando ela, um bocado estupefacta, me contou isto eu fiquei tão agradada que ainda hoje, anos decorridos, penso nisso.

E conhecendo a vida difícil de muitas mulheres -- tal como conheço a vida difícil de muitos homens - e sabendo o peso cultural que sobre elas se abate, ainda mais sinto a necessidade de me solidarizar e sentir empatia em relação a todas as observações a que são sujeitas e tudo aquilo a que se sentem obrigadas.

O vídeo que abaixo partilho é um vídeo poderoso. Contudo, acho que pode ficar a ideia de que as mulheres são exclusivamente umas vítimas, umas pobres coitadas, fracas e indefesas. E não são isso. Ou, pelo menos, não apenas isso.


Mas as mulheres são também corajosas, lutadoras, alicerces, esteios, pináculos, e são resilientes, bravas, umas leoas, umas lobas. 

Gosto de ser mulher e tenho muito orgulho em ser mulher. Por isso, partilho o vídeo porque é muito verdadeiro mas aqui deixo registado que acho que o que ali se vê é apenas parte da história.

Cynthia Nixon: Sê uma Senhora, dizem 



As duas fotografias são obra de © Letizia Battaglia

quinta-feira, fevereiro 27, 2020

Love is blind?
Ná. Não me parece. Sou mais pelo amor em Paris. Paris, Texas, obviamente.





Há um lado de mim que tenta manter-se à margem. Acontece com alguma frequência não conseguir participar na conversa por não conhecer o mundo que descrevem. E já nem falo nos Faces ou nos Instas, coisas que haverão de passar à história antes que eu sinta necessidade de me arregimentar. Idem o Twitter. Dizem-me: razões profissionais. Mas eu nunca senti necessidade ou, sequer, curiosidade de perceber a vantagem de saber o que uns quantos pensam, exprimindo-se em meia dúzia de palavras. Presumo que seja coisa que também passe de moda. Só vejo vantagem nisso para quem está em contexto de guerra ou de isolamento e não tenha como se comunicar com o mundo senão por esta via. 

Mas, mais recentemente, pior mesmo é a cena do Netflix ou HBO ou sei lá o quê. Todos falam das séries, todos se confessam devotos, viciados, experts... e eu zero. Os mais cépticos já se renderam, já não há quem não. Excepto eu. Já olham para mim com incompreensão.

Mas resisto e creio que, enquanto puder, continuarei a resistir. 

Aliás, se eu soubesse o que sei hoje acho que nem ao mail eu teria aderido. Ainda agora, neste momento, recebi um mail com questões e, logo a seguir, plim, plim, um atrás do outro, um com uma apresentação para eu validar antes de ser enviada. Uma permanente intrusão. 

Cartas escritas com tempo, revistas, isso sim. Ou, vá lá, faxes. 
No outro dia, uma jovem disse-me que no banco estavam com um problema qualquer e que tinham dito para se mandar um fax. Fiquei perplexa: 'Fax? Mas ainda há disso? Nós cá acho que já não temos'. Mas uma secretária que ouviu a conversa sossegou-nos: 'Então não há? Claro que há!'. E lá se enviou um fax. Pareceu-me coisa próxima de ter mandado um dos motoristas montado num cavalo com um rolinho de papel na mão.
Mas pessoas que considero legítimas (seja o que for que isso quiser dizer) falam-me de séries que me fazem pensar que talvez eu gostasse de ver. Só que não quero arranjar mais coisas a que possa ficar agarrada. Eu quero é rodear-me de verde. Ou de azul. Ou de branco. Eu quero é rodear-me de silêncio. Eu quero é descobrir por mim. Não quero que me sirvam aquilo a que eu, rendida, fique presa. Também me seria mais fácil comprar comida feita. 
Tenho amigos que, para mais de seis pessoas, falam para empresas de catering e recebem em casa a comida que servem. E acima de dez, junto com a comida, contratam empregados. E, para mais de quinze ou vinte, contratam comida, empregados e mobília. Eu sou animal antigo. Faço comida, lavo a louça, vou buscar bancos à varanda, cadeiras onde as houver. 
Por isso, para encher o meu tempo livre, que é absurdamente escasso, eu prefiro pegar num livro, procurar vídeo, escolher música, pôr-me a escrever, deitar-me a divagar, espreitar a televisão. Não quero ser invadida por posts ou fotos ou stories dos outros nem ficar agarrada às séries dos canais de streaming.


Mas isto porque, eu que gosto de saber o que por aí há, que filmes estão para ser dados à luz, agora passo a vida a dar com o nariz na parede: lançamentos Netflix. Portanto, vai chegar o dia em que vivo do lado de cá de uma parede e o que vai aparecendo de novo está do outro lado. Por exemplo, andava a passar ao lado de um falatório sobre uma qualquer que parece que acha que voz sexy é voz de bebé e, às tantas, fui tentar perceber de que é que estavam a falar. Pois bem: Love is Blind. Na Netflix, claro.


Fui espreitar ao YouTube. Ao princípio lembrei-me do Paris, Texas, filme tão infinitamente precioso.  A perspectiva de dois estranhos se comunicarem através de palavras, neste caso através da voz, parece-me apelativo. Mas afinal, do que dá para perceber, aqui a coisa rapidamente descamba e parece virar um banal reality show. Não se percebe, parece que há uma atracção pela banalidade. Teria sido impossível fazer aquilo mas com os participantes a manterem-se intangíveis, invisíveis? Creio que não. Mas não, foram pelo caminho mais fácil: desfazem o mistério e banalizam o contacto e, claro, desfaz-se o encanto, sacrifica-se a magia. Do que se vê, há zaragata, macacada, zero romance.

Ou seja: não vai ser por isto que vou deixar-me tentar pela Netflix. Melhor assim.



Já agora:

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Desta vez apeteceu-me ir buscar obras de John William Waterhouse que retratava mulheres com tempo para serem mulheres. E, para meu agrado, Passenger & Gregory Alan Isakov interpretam Kathy's Song. 

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E queiram descer um pouco mais para poderem ouvir Thanks for the Dance. Cohen, eterno.

E uma feliz quinta-feira

Thanks for the Dance


Thanks for the dance
I'm sorry you're tired
The evening has hardly begun
Thanks for the dance
Try to look inspired

One, two, three, one, two, three, one

Amavam-se sem saberem como se amar. Amavam-se evitando-se. Amavam-se temendo todas as impossibilidades e, ainda mais, todas as possibilidades. Amavam-se vendo o tempo passar sem que os seus caminhos convergissem. Amavam-se sem saberem se era amor aquilo que sentiam. Amavam-se sem saberem se eram retribuídos. 

And there's nothing to do
But to wonder if you
Are as hopeless as me
And as decent

Amavam-se e eram incapazes de tentar obter uma resposta. Amavam-se farejando-se de longe, temendo o perigo da proximidade. Amavam-se, sem saber se era amor o que sentiam. Amavam-se incapazes de o dizer. Amavam-se alimentando-se de todas as dúvidas. Amavam-se como se não pudessem viver um sem o outro, sabendo que sempre viveriam um sem o outro. Amavam-se ignorando-se. Amavam-se desconhecendo-se.

We're joined in the spirit
Joined at the hip
Joined in the panic
Wondering
If we've come to some sort of agreement

Amavam-se por vezes cansados do amor-desamor que os habitava. Amavam-se e não havia metáforas que o pudessem disfarçar. Amavam-se sem esperança, na maior solidão. Amavam-se fingindo que não era amor o que sentiam. Amavam-se acreditando que não era amor o que sentiam. Amavam-se sentindo-se agradecidos por se amarem. 

Thanks for the dance
It was hell, it was swell
It was fun
Thanks for all the dances
One, two, three, one, two, three, one

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Thanks for the Dance
There's a rose in my hair, my shoulders are bare
I've been wearing this costume forever
Turn up the music, pour out the wine
Stop at the surface, the surface is fine
We don't need to go any deeper

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[As raposas solitárias que atravessam a noite em silêncio foram pintadas por Franz Marc]
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quarta-feira, fevereiro 26, 2020

As estantes deles. E alguns dos livros que arranjaram guarida in heaven. E o que os livros que escolhemos dizem de nós.
E outras coisas.





Há sempres partes dos meus dias de que aqui não falo. Mesmo quando parece que falo de muito, em geral aquilo de que falo não é senão o que se passa in between. Geralmente também não falo do que me preocupa enquanto me preocupa. Quanto muito, falo quando já não estou preocupada. 

De vez em quando sou surpreendida com comentários que nem chego a publicar ou mails nos quais as pessoas querem mostrar-me que conseguiram traçar as linhas que juntam os pontos que me definem e só falta desenharem o que pensam ser o meu retrato robot. Pasmo. Mas, se calhar, pasmo porque sei que o que omito é mais do que o que revelo. Mas aos ousados que me escrevem a evidenciar a prova da sua inteligência não passa pela cabeça que jamais se pode traçar um perfil e, muito menos, enchê-lo com carne e espírito, quando, na realidade, pouco se sabe de uma pessoa.

Mesmo que eu aqui expusesse os meus dados biográficos, o meu curriculum vitae detalhado, a minha ficha clínica e as actas das reuniões em que participo não se poderia concluir muito. A vida de uma pessoa é sempre tão mais do que aquilo que parece ser.

Mais: mesmo de pessoas cuja vida se pode consultar na wikipedia, que têm presença regular na comunicação social e na vida pública e mesmo quando praticam um estilo quase confessional, dificilmente se pode concluir que as conhecemos. Por exemplo, quem nos garante que, em privado, não se desdobram em disfarces ou que cultivam segredos ou que alimentam vícios inconfessáveis ou que escondem amores intangíveis? Ninguém garante.

Portanto, ninguém conhece ninguém, excepto, quanto muito, quando se trata de pessoas bidimensionais, desinteressantes até à quinta derivada, pessoas que se comprazem numa vida de inutilidade absoluta. Conheço pessoas assim. Olha-se e dir-se-ia que são pessoas que vivem vidas absurdas de tão desprovidas e nulas que são e, no entanto, são felizes nas suas rotinas e gestos inúteis. Dou por mim a pensar que, justamente, talvez sejam essas as pessoas que me melhor interpretam o absurdo ofício que é viver. 

Estou com isto pois hoje, de tarde, estando no campo, dei por mim a olhar alguns dos livros que por lá param. Geralmente são livros que levo para ler e que acho que é melhor lá ficarem para os completar no fim de semana seguinte ou para quando tiver tempo. Ou livros que acho que é melhor que estejam à mão quando quiser ir ler à sombra. Ou livros que quero ler com mais tempo, talvez nas férias. E pensei: será que, por estes livros desirmanados, alguém poderia decifrar o meu ADN?

Fui buscar a máquina e fotografei alguns dos montinhos. Ao ver agora as fotografias descobri alguns, poucos, uns dois ou três se tanto, que não sei bem o que são. Provavelmente esses ficaram justamente por não saber isso mesmo: o que são e onde melhor se encaixarão. 

Já agora, a propósito, um apontamento confessional: andei a ver aquilo de que a casa está precisada. E é tanto. Falta-me tempo para deitar mão a isso mas não poderemos adiar por muito mais. A parte mais antiga precisa de pintura por fora e por dentro, as madeiras do chão e do tecto precisam de óleo protector. Se calhar no chão, cera. Gosto muito do cheiro da cera. Dá mais trabalho mas o cheirinho é um consolo.

Também estive a abrir os roupeiros dos quartos que eram dos meus filhos e constatei que estão cheios de roupas que eram deles. Penso que jamais as voltarão a usar mas, com alguma esperança, iludo-me que, talvez um dia aos miúdos, os seus filhos, lhes dê jeito usar alguma daquela roupa, ou porque se sujaram  ou porque se molharam. Mas tenho que rever o que ali está pois o mais provável é que tenha os armários cheios de coisas inúteis.

Entretanto, a minha filha pediu que tentasse encontrar os seus livros de pautas de quando estudou piano. Por isso, fui ver a grande estante que está na despensa e que, quando comprámos a casa, estava em lugar de destaque na sala da lareira, e descobri não apenas imensos livros e brinquedos de ambos, de vários escalões etários, bem como cadernos e livros da escola -- e também pensei que não sei se faz sentido ter aquilo tudo ali, entocado e inútil. E, como sempre acontece quando procuramos alguma coisa, tudo menos pautas. Fui, então, à casinha lá fora onde estão as máquinas de cortar mato, a serra eléctrica, tintas, uma mesa de ping-pong, uma mesa de plástico desmontada e uma grande arca antiga, de sândalo, trabalhada, e para a qual nunca descobri um lugar digno e visível. Pensei que talvez as pautas ali estivessem. Mas não. Estava um grande saco com cobertores e um outro com lençóis bordados e com rendas. E isso encheu-me de pena. Eram de tias do meu marido, talvez até dos avós. Na altura, tive pena de deitar fora coisas que eram tão estimadas e que estavam numa casa tão bonita, tão bem cuidada. O meu marido queria deitar fora, dizia que nunca iríamos utilizar. Não fui capaz. Mas agora, ao ver que tinha posto ali as coisas e que nunca mais delas me tinha lembrado, pensei também que tenho que repensar algumas decisões. Guardo coisas que penso que têm memórias associadas a elas, coisas que, daqui por algum tempo, alguém possa gostar de conhecer. Mas quem? Quando? 

Mesmo os livros. Receio o que um dia lhes venha a acontecer. As pessoas têm as suas casas e elas não são elásticas, podem não conseguir acomodar o que lhes possa ser destinado. Vi quando foi dos meus avós, de qualquer deles. Nenhum dos meus primos quis ficar com alguma coisa. Disseram que não tinham onde pôr. Pude ficar com tudo o que quis mas, verdade seja dita, pude porque tenho uma casa no campo, com espaço.

Ao ir agora escolher uma música para ouvir enquanto escrevo, o YouTube tinha para me mostrar estantes em casa de pessoas conhecidas. Claro que vi todos os vídeos, e com que interesse os vi. Uma estante é um mundo e o amor que se tem a cada um dos livros que ali está transporta um pouco de nós para aquele lugar que, para quem ama livros, é do domínio do sagrado.
Mas fico a pensar, tal como penso em relação a mim: o que acontecerá quando a pessoa for desta para melhor e alguém se vir a braços com tudo isto, tendo que dar destino a todos estes volumes? 
Há coisas que fazemos que só fariam sentido se vivêssemos eternamente. Assim é tudo meio louco. E o melhor é nem pensar nisso.

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E estas são algumas das estantes de alguns deles








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As fotografias foram feitas esta terça-feira in heaven e achei que uma Bachianas Brasileira de Villa-Lobos vinha mesmo aqui a calhar
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Desejo-vos uma bela quarta-feira


terça-feira, fevereiro 25, 2020

Estou numa festa de Carnaval... e não sei se estou muito segura....
[Post em tempo real]





Interrompo a festa para aqui registar o ponto em que as coisas estão. Daqui a nada, talvez já estejam diferentes, talvez tudo tenha tomado um outro rumo.

Estou num solar em Sintra que, para quem passa na rua, parece apenas um grande muro com largo e alto portão duplo de madeira. Quando se entra, há um pátio com escadas e varandins de pedra a toda a volta, excepto do lado do muro que separa a casa da rua. Aparentemente as escadas vão dar a entradas distintas da casa mas em dado ponto, no interior, tudo se comunica. Tantas vezes que aqui já estive e ainda não consegui decifrar esta misteriosa arquitectura.

De uma das salas vai dar-se a um terraço amplo, junto à serra, com o muro de pedra que sustém a terra coberto de hera. É aqui que muitas vezes, em dias de festa grande, se servem as refeições. Quando chove ou está frio, o terraço está coberto e há aquecedores altos.

Este é um lugar com séculos de história e já muito por aqui se deve ter vivido. A decoração deixa transparecer não apenas o gosto dos donos actuais mas, sobretudo, as marcas das várias gerações anteriores. Há pinturas que, de grandes que são, quase ocupam paredes, retratos de mulheres e de homens de há muitos anos, vários retratos a óleo de crianças, há enormes jarrões antigos onde caberia uma pessoa, há nobres castiçais, grandes e belas tapeçarias. Passa-se de algumas divisões para outras afastando pesados reposteiros em veludo. Na grande sala é normal a lareira estar acesa pois por aqui o clima é frio e húmido. O ambiente é sempre muito acolhedor.

Já aqui estive em inúmeras circunstâncias e já algumas vezes falei deste belo casarão.

Hoje os donos e alguns amigos resolveram festejar o Carnaval. Sendo gente avessa a manifestações efusivas e populares, não sei o que desta vez lhes passou pela cabeça. A idade às vezes produz curiosos efeitos em algumas personalidades. A ele sempre o vi reservado e a ela silenciosa, com um sorriso que parece tímido mas que alguns tomam por arrogante. No entanto, ultimamente, a ele noto-o como se a querer viver a adolescência que mal pôde experimentar em devido tempo, tantas as responsabilidades que a família lhe impôs e que ele próprio aceitou ao ser pai ainda não tinha saído da adolescência. Não há muito, surpreendi-me com eles, dançando como nunca julguei que fossem capazes de o fazer, libertos e quase irreverentes.

Pois bem. Aqui estamos. O convite dizia apenas que teríamos que estar irreconhecíveis e que, sob pretexto algum, deveríamos revelar a nossa identidade. Nem à saída. 

Isto não faz muito o meu género e do meu marido muito menos. Não queria vir. A custo lá consegui que viesse mas avisou-me que não arranjasse pretexto para madrugar.

Não posso revelar qual o meu disfarce, nem o dele pois são essas as regras do jogo. Mas acho que estou bem e ele está com muito charme.

O palacete tem garagem mas apenas para as viaturas da casa. Os convidados têm sempre que deixar o carro numa das ruas estreitas e inclinadas da zona. 

Por isso, quando íamos para lá, foi sem surpresa que vimos à nossa frente algumas pessoas mascaradas. Acenaram-nos e retribuímos. Ninguém fala para não se denunciar.

Há disfarces extraordinários. 

Há algumas mulheres que entregaram as capas aos empregados, que estão igualmente de rosto tapado, e que ficaram nuas, os corpos sumptuosamente maquilhados. Há corpos de tigre, há borboletas, há sereias. Contudo, quando fui tomar um seio de uma delas na minha mão, um seio pesado, percebi que ela não está exactamente nua. Sobre o corpo pintado tem uma lycra transparente e aderente. Por isso, não fiquei com tinta na minha mão. Descarada, pegou na minha outra mão e colocou-a no outro seio. E com as suas mãos fez que as minhas mãos a acariciassem. Reparei que o meu marido estava encostado a uma parede, certamente observando. Pensei que não deveríamos ter vindo ao mesmo tempo nem deveríamos conhecer o disfarce um do outro. Estaríamos mais à vontade. Ou talvez não. Quero lá saber.

Há pouco, estava a sentir calor, fui até a um dos varandins. Num canto, dois homens que estavam disfarçados de divindades gregas pareciam sussurrar, como se quisessem fugir ao interdito de não se denunciarem. Quando me viram, disfarçaram e afastaram-se mas, à passagem, fiquei na dúvida. Talvez não fossem dois homens.

Lá em baixo, no pátio, várias cortesãs dançavam como se o seu corpo fosse parte da música. Ondulavam livremente e a sensualidade era palpável. De vez em quando, uma encostava-se às costas de uma outra e a forma como se roçava fez-me pensar que talvez não fosse exactamente uma cortesã.

Fui buscar uma bebida. Curiosamente, as palhinhas são metálicas. A sustentabilidade está presente.

Olhei em volta e não descobri o meu marido. Pensei que seria um desastre se se tivessse ido embora. 

Quando estava a refrescar-me, bebendo a fria bebida e olhando os circundantes com pena de não ter trazido a máquina fotográfica, um vulto, alto, vestido de negro, um capuz negro, aproximou-se. Assustei-me. Não percebi se era suposto estar disfarçado de meliante, se de uma qualquer seita secreta. Senti-me a petrificar. Mas ele levantou a sua bebida, como que saudando-me. Levantei a minha mas quase a medo. Baixou a cabeça ao de leve, como que cumprimentando-me. Aproximou-se mais. Como um gato traiçoeiro, como um lobo inevitável, pôs-se atrás de mim. Arrepiada, paralisada, deixei-me ficar. Poderia ter fugido mas não consegui, nem me ocorreu. Senti que desviava a máscara e que se aproximava perigosamente. Senti os seus lábios beijando-me o ombro desnudo. Estremeci. Depois voltou a ajeitar a máscara, passou para a minha frente, tomou-me a mão enluvada e fez o gesto de a levar aos lábios. Estivesse eu mais calma e teria sorrido. Mas não, fiquei trémula. E quase fugi.

Quando entrei e comecei a circular, uma Marie Antoinette veio dar-me o braço, e cheia de coquetteries, ternuras e mesuras, como se estivesse divertida, levou-me até à sala da lareira.

Num dos amplos sofás, o meu marido e duas freiras, uma de cada lado e ele, de lado em relação a uma. Essa estava de joelhos em cima do sofá, e fazia-lhe uma massagem nos ombros e a outra estava a rezar o terço, com um rosário, com a cabeça encostada ao peito dele.

Quando me viu, ele sobressaltou-se ou, pelo menos, fingiu que se sobressaltava, mas eu não quis saber. Se duas freiras estavam a zelar pela saúde do seu corpo e da sua alma, melhor para ele. Segui para outra sala, de braço dado à Marie Antoinette. 

De repente, silencioso e esquivo como um lobo sombrio, vi que, ao fundo, o homem de negro deslizava até à biblioteca. A Marie Antoinette fez-me um aceno, como se se despedisse de mim e empurrou-me para lá.

A medo, assomei à porta.

Junto a uma estante, fez-me um gesto de aproximação. E então, quando, a medo, dei uns passos na sua direcção, ele mostrou-me um livro. Gelei. Não, aquele livro não. Não podia ser. Como? Não pode ser. Tive medo. Tenho medo. Por isso, saí apressadamente, o coração descompassado, e vim até aqui, até ao boudoir da dona da casa, e aqui estou a fazer tempo. Tomara que ele não me encontre, tomara que se vá embora. Tomara que eu esteja a delirar. Tomara que as duas freiras libertem o meu marido para nos irmos embora.

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Não sei se ainda cá voltarei hoje. 

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Por facilidade, usei máscaras de Veneza para ilustrar o post mas, como já referi, nem toda a gente está assim.

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segunda-feira, fevereiro 24, 2020

Louvor da Terra





Hoje de manhã vi que, em cima da mesa redonda que está junto à janela, estava 'O amor louco' do Breton. Estranhei. Depois fez-se-me luz. Pela capa julgaram que era outra coisa

Levei-o. E levei também o outro, o último, aquele a que não tive como resistir, 'Louvor da terra' de Byung-Chul Han, com tradução de Miguel Serras Pereira, coisa que também ajudou ao bom prenúncio.

Dia de descanso. In heaven. 



Lá chegada, e tão cheia de saudades eu estava, depois de abrir as portadas para que a luz pudesse iluminar a casa, saí para o campo.

Caminhei e, para estas caminhadas, eu não quero companhia, quero apenas o som dos meus passos sobre a caruma, o som da levíssima aragem nos ramos, o cantar dos pássaros, o silêncio, o silêncio que traz de longe o som de uma roçadora e o perfume da erva a ser cortada ou a longínqua presença de um cão que ladra no vale ou algures na serra. Caminho em puro estado de deleite e não penso em nada, apenas sinto o que os sentidos me trazem. A beleza das pequenas flores, os líquenes dourados e os pontinhos brancos, o rendilhado das sombras e a luz sobre todas as coisas, os verdes e a paz que deles se desprende, os odores limpos do campo, a suavidade da folhagem ou das superfícies mornas das pedras ou o enrugado dos troncos. As palavras são escusadas enquanto caminho. Por isso, nessas alturas, não gosto de ter alguém por perto. Quero apenas o silêncio. 

Depois, fui para o sol e levei os livros. Estendi-me numa espreguiçadeira, despi-me, deixei que o sol pousasse devagarinho na minha pele. Estava debaixo da grande figueira mas, como ainda tem os ramos nus, a sombra era subtil. E o perfume fresco que me traz a memória das tardes de verão ainda era apenas uma vontade dele.


Continuei O amor louco, verdadeiramente louco, que tinha começado no carro. Li a direito, fui lendo. Até que comecei a abreviar, a saltar. Dantes era incapaz de fazer isto. Dantes, mesmo que não gostasse de um livro, só o abandonava quando lia escrupulosamente todas as palavras. Agora já não é assim. Perdi a inocência. À medida que o tempo passa a gente vai percebendo que tem que escolher bem onde o usa. A Luísa Neto Jorge traduziu e há momentos belos, outros interessantes, outros muito loucos. Talvez um labirinto. Mas não tem aquele fio de Ariadne de que preciso para me guiar, página a página. Qualquer coisa ali me fez ter vontade de interromper. Se calhar não teve a ver com o livro, se calhar teve a ver com o calor brando do sol sobre a pele ou com o sobressalto das rolas a soltarem-se da ramagem perfumada dos cedros, se calhar teve a ver com a vontade de palavras a brotar da terra e não das mãos, nem mesmo do coração.

Fui, então, para o Louvor da Terra. E como gostei. Ia lendo, ia parando, ia sentindo o amor pelo jardim, pelo devir do tempo sobre as flores, o amor pela paz que se desprende das coisas da natureza, ia vivendo a simplicidade do que me rodeava e do que lia.


Por exemplo, sobre um tema que me é caro (e agora nem tem a ver com as flores ou o jardim que Byung-Chul Han amorosamente cultiva):
Gostaria de me desprender de mim no sono, para me tornar ninguém, um ser anónimo. 
E a referência à Carta sobre o Humanismo onde Heidegger escreve:
'Mas, se o homem encontrar de novo a proximidade do ser, terá de aprender primeiro a existir anonimamente. Terá de se dar conta do mesmo modo tanto da sedução da esfera pública como da impotência do privado. Antes de falar, o homem terá de deixar que o ser de novo o interpele, correndo o risco de, depois dessa interpelação, pouco ou raramente alguma coisa lhe restar que diga'.
E continua: 
Hoje temos muito que dizer, muito que comunicar, porque somos alguém. Perdemos o hábito quer do silêncio, quer de nos calarmos. O meu jardim é um lugar do silêncio. No jardim, crio silêncio.
E eu acho estas palavras tão bonitas, tão sábias, tão simples, tão boas para ler devagar.

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As fotografias foram, pois, feitas este domingo in heaven. Enquanto caminhava tinha umas calças brancas e a túnica que ainda tenho vestida, branca, com flores encarnadas à frente. Ao ver as fotografias, vi-me, nesta aqui acima, espelhada na caruma e nas ervinhas e folhinhas secas do chão. No lugar que provavelmente é o do meu sexo uma florzinha amarela, uma pequena réplica do sol. 

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Lá em cima, quem interpreta as Variações Goldberg de Bach é Igor Levit, não Byung-Chul Han que, a páginas 119 do livro, diz que 'Enquanto contemplava o Vesúvio, tocava todos os dias as Variações Goldberg de Bach. Mandei instalar um piano na minha cabana junto ao mar'. E mais à frente escreve: 'A paisagem mediterrânica é íntima. Comove-me no mais fundo do meu ser. Penetra-me o adejar de um pássaro negro. Comove-me profundamente. Aqui tudo é muito próximo e muito íntimo. Íntimo é um superlativo de interior. Estou no meio da paisagem.'

E, ao ler esta passagem, fiquei a pensar que adejar era justamente a palavra que me faltava para o sobressalto dos pássaros quando batem apressadamente as asas para se libertarem da folhagem e me fazem arrepiar porque esse é um som demasiado íntimo que me faz sentir que tenho um pássaro a querer libertar-se do meu peito. Adejar. 

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Desejo-vos uma boa semana --
mas não sem antes vos convidar a descer para verem o fantasminha que descobri, abraçado ao tronco de uma aroeira.

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Há um fantasminha abraçado a uma árvore in heaven?


Por altura dos cogumelos, quando rebentam por todo o lado, a terra aparece revolta, em alguns lugares aparecem grandes pegadas e eu caminho pela terra húmida e macia sem saber se, de dentro da gruta ou de trás dos arbustos, vai aparecer um bicho que me assuste.

Agora que a caruma crepita por debaixo dos meus pés e que os perfumes da primavera se fazem anunciar, com pássaros, borboletas e outros insectos em danças e, os que podem, em cantos, apenas um cogumelo subsiste e não vejo pegadas na terra nem vestígios de monstros.

Mas hoje, ao caminhar sob as copas dos pinheiros e das aroeiras, em caminhos ladeados por alecrim em flor, dei com um fantasminha abraçado a um tronco. Não sei que curioso serzinho é este, branco e peludo. Só sei que é silencioso, que habita in heaven e que, a partir de agora, sempre que caminhar por ali, irei visitá-lo.

Aos poucos, ao longo dos anos, este lugar mágico vai sendo povoado por toda a espécie de bichos, de quimeras, de sonhos e de quietudes, e eu sinto, cada vez mais, que este é o meu verdadeiro lugar sobre a terra.


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domingo, fevereiro 23, 2020

Sábado de verão, em fevereiro, na praia.
Com reportagem fotográfica.





Na sexta ao fim do dia fomos passear no paredão ao longo da praia. Para terminar uma semana bem preenchida nada como a maresia para lavar a alma. Estava-se muito bem. Um prenúncio de névoa começava a pousar no areal mas essa frescura suave apenas trazia mais beleza e apaziguamento ao lugar. Passear junto à praia à noite é uma felicidade.

Este sábado, calorzinho primaveril, a conversa foi outra. Depois de termos ido aos meus pais, fomos a casa para eu mudar de roupa, noblesse oblige, e para preparar um lanchinho. Iogurtes, biscoitos de Safara, bananas.

Juntámo-nos na praia e não éramos só nós mas também outros amigos. Crianças pequenas eram sete. O meu filho perguntou com ar de censura: 'Mas para que é que vêm com comida? Tem algum jeito isso?'. Mas só as bananas é que não quiseram. Dos dez iogurtes sobrou um e do saco de biscoitos sobraram uns escassos restinhos, umas asas quebradas. 

Estava-se que era uma maravilha. Os rapazes -- de todas as idades -- jogaram futebol. 


Só os dois pequeninos, por sinal homónimos e da mesma idade, três anos, é que não jogaram. Brincaram com carrinhos, fizeram buracos e bolos e atiraram areia para onde não deviam. As duas meninas também não. Entretiveram-se de outra maneira, uma com a outra, também construções, conchinhas, penteados, coisas assim. As três mais crescidas conversaram. Eu, como habitualmente, observei, fiz a reportagem, tentei assimilar a beleza de tudo. O mar muito bonito, a luz perfeita, todos felizes uns com os outros.

Fizemos fotografias de grupo mas não ficámos todos ao mesmo tempo nem todos a olharem para a frente. Uma sucessão de fotografias com uns a fazerem gestos, outros a ajoelharem, futebolista style, um a beijar a camisola, pose quiçá à Ronaldo, outros a fugirem, outros a olharem para trás. Mas, verdade seja dita, fotografias preciosas, todos dourados sob a luz do pôr do sol, todos bem dispostos. Desta vez fiquei em algumas fotografias. A minha filha protestou, lembrou as fotografias do baptizado do mais novo que ficaram a cargo do pai e que as desfocou a todas. Sem óculos e sem tempo para focar a visão senão fogem de cena, dispara sem grandes preciosismos e a coisa tende a não ficar perfeita. Mas desta vez correu bem. 


Depois foi a separação do resto do grupo, o regresso, sempre aquela confusão que resulta da ruidosa geometria variável que ali se desencadeia: ela quer ir com a tia, outros querem ir com os primos, outros querem não sei o quê e por fim já ninguém percebe quem vai com quem nem se há banquinhos nos carros onde são precisos.

Tudo cá para casa, embora uns não directamente. Os meninos, sim, vieram logo todos.

Atirei-me aos tachos enquanto a miudagem se atirava aos banhos. Abstraio-me da confusão e penso que deve ser o que fazem os professores para não darem em malucos com o barulho. Desta vez, o mais crescido armou-se em paparazzi e andou a filmar os outros à socapa que, furiosos, gritavam, fugiam, fechavam-lhe a porta, corriam. 


Depois vieram aqui para a sala. Quando aqui vim espreitar, andavam feitos detectives. Mal me viram, disfarçaram. Percebi o que se passava. Andavam a ver se descobriam o tal livro de fotografia que um dia deixou o menino do meio completamente desorbitado. Saindo ao pai na pancada por «maminhas», nunca mais desistiu de o voltar a ver. E já falou nisso aos primos que ficaram igualmente curiosos. E a mana alinha na demanda. Mas, claro, tudo às escondidas. Zanguei-me. Não têm nada que andar a mexer e a desarrumar os livros e que desistam porque não vão encontrá-lo.  'Ai-ai-ai, ai-ai', zango-me eu, e eles já me imitam. Voltei à cozinha.

Quando aqui regressei, estava tudo ao rubro. Tinham descoberto um dos meus Pipis, não reparei se era o Diário ou o dos Sermões. Já nem me lembro se foi a minha filha que disse que não deveríamos deixar aqueles livros ali. Mas não apenas não estavam à vista como vai lá uma pessoa lembrar-se que hoje lhes ia dar para andarem a revirar os livros mais recentes. O mais velho, onze anos, rebolava-se a rir. O primo, sete anos,  tinha estado a ler e, dizia ele, 'ele leu em voz alta e eles não percebem a maior parte das palavras mas eu percebo tudo... e é tudo muito impróprio...'. E ria a bom rir. Depois perguntava: 'Mas para que é que tens aquele livro...?'. Expliquei que era um livro de humor, muito bem escrito mas não para crianças. E peguei no livro e fui escondê-lo. A ver é se agora não lhe perco o rasto.

E voltei para a cozinha. Quando cá voltei, estavam os quatro mais crescidos atrás de uma estante. Largaram precipitadamente o que tinham na mão. Fui ver. Era outro livro de fotografia e uma grande lupa. Perguntei: 'Mas de onde apareceu esta lupa?'. Juro que não fazia ideia. Ela contou que a tinha ido buscar a outra estante. Já nem de tal me lembrava. De novo, o mais crescido a rebolar-se a rir: 'Estávamos numa pesquisa perfeitamente paralela e, sem querer, descobrimos este livro'. E dobrava-se a rir. E eu disfarço mas a verdade é que acho imensa graça à forma como se expressa e ao sentido de humor que revela em tudo o que diz.

Quando eram mais bebés, tinha que tirar tudo o que era peça que se pudesse partir do seu alcance. Estou a ver que tenho que ter cuidado agora com os livros. O apelo do interdito faz-se sentir em todas as idades e a união entre eles tem muita força, descobrirão sempre qualquer coisa que os deixará ufanos e ainda mais curiosos.


Devo esclarecer que, entretanto, o meu marido e o meu filho estavam a apanhar os vidros da porta da rua que o meu filho, ao tentar desencravar a porta, fez tanta força que o partiu, e os demais crescidos estavam ou a pôr a mesa ou ao telefone noutro sítio ou na casa de banho ou não sei bem onde. Portanto, eles andavam à aventura em liberdade. Esta sala é, para eles, uma arca do tesouro e eu, se me recordar de quando tinha a idade deles, imagino a tentação que deve ser saber que há aqui um mundo fascinante por descobrir. E eles são um verdadeiro bando dos cinco.

Depois foi o jantar, a mesa cheia, e uma vez mais aconteceu o que sempre temo. Penso que estou a fazer o dobro da comida necessária mas, afinal, pouco sobrou. As doses de tudo são crescentes. Crescem e felizmente alimentam-se na devida proporção e os adultos felizmente também não se queixam de fastio. O apetite de todos enche-me de alegria. Sentam-se à mesa e comem de gosto. Quase todos se levantaram para repetir a dose. Nessas alturas a minha alegria tende para a preocupação não vá algum querer voltar a repetir e já não haver. 

E isto apesar do meu filho ter trazido uma sopa óptima, gostosa e consistente, de couves, feijão e carne. Tinham lá tido amigos ao almoço e como agora vão uns dias para fora, trouxe a sopa que sobrou.

Depois da cozinha arrumada, brincadeira na sala, todos na maior animação. Às escondidas, lutas, cantorias, imitações.


Agora a casa está silenciosa. O meu marido já dorme há um bom bocado. Disse que estava partido, que mal se podia mexer. Pudera. Como não? Jogou à bola durante mais de uma hora e vi-o a cair várias vezes, a atirar-se para evitar que a bola entrasse na baliza imaginária. Como sempre, estava de guarda-redes. Deve ser de quando jogava andebol. Ficou-lhe isso, gosta sempre de jogar à baliza. Curiosamente, dois dos meninos, na escola de futebol onde andam, também jogam à baliza. E têm jeito. A genética tem muita força, dizem.

E eu agora, enquanto escrevo, vejo a televisão e apercebo-me como o coronavírus está não apenas a arrefecer a economia como a transformar algumas cidades em cenários daqueles filmes de terror que nunca vejo. Quem diria que uma coisa destas poderia acontecer...? O mundo ameaçado por uma porcaria de um vírus. Nem na mais desvairada ficção isto poderia ser imaginado.

Bem. Vou descansar que daqui a nada o domingo já é dia e, por muito que eu goste de habitar os mistérios e os silêncios da noite, não posso depois ficar a dormir até a manhã ir alta. Portanto, fui.


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As fotografias foram feitas este sábado na praia e às duas últimas dei-lhes um banho de cor. 

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Desejo-lhe, a si que está aí desse lado, um belo dia de domingo