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sexta-feira, outubro 20, 2023

Aline com folhas de outono, mar revolto, barcos em terra.
Cá em casa, depois da guerra, a paz.

 



A Aline deu-lhe com alguma força mas foi sobretudo perto da hora de almoço. Chuva, chuva a jorros.

O pior foi que a grande buganvília que cresceu para cima do telheiro sob o qual deixamos o carro, quase desabou. Deve ter sido da força da água ou do vento, não sei. O que sei é que, quando demos por ela, estava a nossa meia altura. Nem o carro passava nem nós. Felizmente o tronco não se partiu, apenas tudo vergou, pendeu. Tentámos, os dois, levantá-la para que uma parte se apoiasse no muro que separa dos vizinhos. Mas não conseguimos. Aliás, o peso daquilo, ainda por cima, ensopado, é brutal, Os dois a dar o máximo e aquilo nem se mexeu. A única hipótese foi ir buscar o podão e desbastar, desbastar. No fim, ficou um monte enorme de ramos cortados. 

Como para o fim da tarde a coisa tinha abrandado, fomos buscar um quadro que estava a emoldurar. 

O quadro é em tons azul, verde esmeralda, acinzentado, com uma mancha em branco. Abstracto, como quase tudo o que temos. 

Mas a tela veio da galeria esticada e presa a um passpartout. Quando na casa das molduras perguntaram se era para tirar o passpartout, resolvi deixar ficar e pôr, por cima, um vidro-museu que é invisível. 

A moldura que escolhemos (nestas coisas conto com a opinião do meu marido que chega lá, aponta e diz: 'Esta'. Fico sempre na dúvida se tem uma fantástica visão panorâmica e, num único olhar, vê tudo o que há para ver, aliada a extrema convicção, ou se é, apenas, vontade de não estar na loja mais do que quinze segundos). Como lhe reconheço bom gosto, apesar das dúvidas, gosto de contarcom  a sua opinião. Desta vez foi uma moldura larga, simples, num tom entre o prateado e o suavíssimo dourado, mais prateado do que dourado, mas pouco uniforme e quase sem brilho. Por dentro desta moldura, encaixado nela, escolhi uma outra fininha em azul claro alfazema, acinzentado, que puxa aos tons da tela. Fica como que um filet, entre a moldura propriamente dita e o passpartout branco. Acho que este apontamento valoriza a obra em si. Coisas minhas. 

Coloquei aqui a fotografia de pormenor para que percebam o que estou a dizer (a parte de fora que se vê em cima e à esquerda é a parede)

Fomos ainda comprar o livro 'Como mentem as sondagens' do Luís Paixão Martins, que o meu marido está desejando de ler. Estive a folheá-lo e parece-me que também eu vou gostar bastante de saber o que lá se diz.

Comprei também o 'O outro nome' do Jon Fosse. Também já o folheei. E, mais uma vez, torço o nariz. Não me parece que me convença. Não sei o que se passa comigo. Já no outro dia falei nisso. Estou de má boca, nada parece ser para o meu bico. Enjoadinha. Agora, ao escrever isto, para ver se me convenço a mim própria, fui ler o princípio do livro. Perdoem-me os puristas, os nobelistas, os entendidos mas a mim pareceu-me uma seca. 

Depois fomos ver o mar. Ficámos cá em cima. Mar bravo, bravo. Barcos em terra. 

Muito bonito. Andei a fotografar. Maravilha.

E, como dois pensionistas a preceito, preguiçosos e a apreciar a boa vida, a seguir fomos buscar um sushi bem apetitoso.

O pior, claro, foi, ao chegar a casa, conseguir que pendurasse o quadro até porque pensei que deveria fazer uma movimentação entre outros, obrigando a ajustar a altura do penduramento dos que mudaram de poiso. É sempre cegada das antigas quando tem que fazer um buraco na parede. E, se é mais do que um, aí é a guerra total. E eu que ando há anos a dizer que tenho que aprender a pegar no berbequim, a escolher buchas e parafusos, continuo na ignorância e, portanto, dependente dele.

Por fim, contrariado, quase furioso, lá o fez. Quando a obra foi dada por concluída, feita boa menina, agradeci. 

Depois pus-me de longe a contemplar. Fiquei contente.

A assinalar ainda que o nosso cão mais fofo hoje voltou a deitar-se na caminha dele que está aqui num cantinho da sala. Aninhou-se, enroscou-se. Há meses que dorme pelo chão, certamente onde se sentia mais à fresca. Hoje deve achar que o tempo mais frio já aconselha a algum aconchego. Cão mais lindo, mais querido.

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E agora estive aqui a ver uns vídeos e vou partilhar um, legendado, em que o dono de uma casa, um estilista bem simpático, mostra objectos bonitos que lá tem. 

Inside This Fashion Designer's Modern Belgian Home, Filled With Wonderful Objects | Vogue

Fashion designer Pieter Mulier, Maison Alaïa's creative director, takes us through his Belgian home and shares some of his most precious possessions. As the successor to the legendary Azzedine Alaïa at Maison Alaïa, Pieter's taste and passion for art come shining through as he tours his abode. 


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Lá em cima Eva Cassidy interpreta Autumn Leaves
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Desejo-vos um belo dia 
Saúde. Tranquilidade. Paz.
Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz.

segunda-feira, outubro 09, 2023

Viajar. Ler. Estar.

 


Tenho uma amiga a passear em Itália, outro anda pela Grécia, outra está na Turquia. Outras duas, separadamente, vieram há pouco dos Açores e uma pessoa da minha família próxima chegou hoje de uns dias de férias em Paris. Outro anda em Trás-os-Montes e outra, que vive fora e cá veio de férias, sei que anda por aí, por 'este nosso belo país', mas neste momento não sei por onde. 

E eu, que tanto gostava de passear e que tanto passeei, parece que me fui desabituando disso ao longo dos anos em que, por o meu pai estar mal e sempre naquele limbo em que qualquer coisa de pior poderia acontecer a cada momento, ganhei receio a afastar-me não fosse dar-se o caso de não estar por perto em caso de emergência.

Além disso, agora não há o permanente estado de quase alarme em que vivia na altura do progressivo declínio do meu pai, mas há a minha mãe que, com os seus noventa anos e a sua tendência para a ansiedade quando algum sintoma se anuncia (mesmo que ao de leve), faz com que também não me sinta confiante em afastar-me.

Como entretanto mudei de casa e adoro aqui estar, nesta minha tranquila casa que tem um jardim tão romântico e sereno, já para não falar naquele lugar tão especial a que aqui chamo heaven, e porque, por ter deixado de trabalhar, tenho agora tempo para os desfrutar, parece que deixei de sentir o apelo por me pôr a caminho.

Com tudo o que já visitei, com todas as viagens cá e lá fora que já fiz, com as fotografias que toda a gente envia de todo o lado, com os sites, com os documentários, os vídeos e tudo o mais que por aí há, parece que tenho a sensação de que já não me surpreenderei muito com o que tenho por ver, se lá estiver, ou seja, in loco

Sobretudo, sabe-me muito bem estar. Permanecer. Desfrutar. Não ter que fazer malas, estar a ir e vir. E o meu marido está na mesma. Adora o sossego. Adora poder ler ou ver televisão ou passear com o cão ou o que lhe apetecer, sem a preocupação de ter que se despachar para ir fazer outra coisa qualquer.

Talvez daqui por algum tempo, me dê uma daquelas travadinhas que me leva a querer mudar de vida e não descanse enquanto não me puser a caminho. Mas, por enquanto, sinto uma grande felicidade em estar sossegada, poder acordar tarde, caminhar por aqui perto ou ir até à praia, jardinar, regar, lavar, varrer, cozinhar, etc., ler, escrever até às tantas, ter a família reunida ao fim de semana (ou nos dias feriados), comunicar-me com amigos, por vezes estar com eles. 

Sobre livros, a minha filha queixa-se que parece que não encontra agora livros que a encantem. Frequentemente deixa-os a meio, sem paciência para esforços que sabe de antemão que não vão compensar. Eu, desde há algum tempo, também estou assim. Mesmo muitos daqueles livros altamente propagandeados ou ditos clássicos agora me parecem básicos, sem substância ou arte. Disse-me ela que, do que tinha lido ultimamente, só um lhe tinha parecido digno de realce, 'As primas' de Aurora Venturini. Por isso, comecei hoje a lê-lo. E é verdade, ela tem razão: só não foi de penalti porque se meteram outras coisas. Mas amanhã com certeza que vai. Depois digo porquê.

Ela estava a ler e acabou-o cá, hoje à tarde, 'O quarto do bebé'. Eu já o espreitei e também me pareceu demasiado plain mas ela diz que se lê bem, que não é nenhuma obra literária, que, por ser de quem é, também estava à espera de outra coisa, que é um diário e que se percebe que é autobiográfico e que, por isso, à parte os bocados em que Anabela Mota Ribeiro descreve sonhos e outras partes mais nhec-nhec, se deixa ler sem sacrifício.

Não sei se é como nas viagens. A gente já leu tanto de tudo que, às tantas, já tudo parece simplório ou dispensável.

Por acaso o meu filho no outro dia disse que estava a ler um livro e que era talvez dos melhores livros que já tinha lido. Sabendo-o também exigente, fiquei curiosa. Mas era um nome algo estranho, não fixei. Não posso esquecer-me de lhe perguntar. Só que receio que seja um daqueles livros gigantes que ele lê com facilidade mas que a mim já me custam. Parece que agora também já tendo a sentir um certo sentimento de rejeição em relação a livros muito grandes, com mais de trezentas ou quatrocentas páginas.

Enfim, cenas.

Tirando isso, é pena que o mundo não se amanse, que as pessoas não ganhem tino. O próprio planeta devia arranjar maneira de espalhar pelos ares uns pozinhos de perlimpimpim que deixassem as pessoas todas numa de peace and love.

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A fotografia é da autoria de Matt Coughlin e Eva Cassidy interpreta Autumn Leaves

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Desejo-vos uma boa semana a começar já nesta segunda-feira

Saúde. Amor. Paz.

domingo, outubro 09, 2022

Este meu sábado de outono

 


De manhã fomos à segunda aula de comportamento canino. Tranquilo, cordato (refiro-me à fera; mas o professor também é assim). O urso felpudo já interiorizou que o professor não vai atacar-nos e, portanto, já o cooptou. O prof. goza connosco, diz que o seu aluno vai ficar a gostar mais dele do que de nós. Eu já não digo nada. De tpc, mais técnicas, mais tácticas e estratégias para praticarmos, por nós, nos próximos quinze dias.

Depois da aula, passeámos no parque, visitámos outro jardim -- um lindo jardim de um palácio --, e regressámos. No caminho, pensámos que, em vez de comermos a comida que lá tínhamos em casa, melhor faríamos se fossemos buscar uma daquelas maravilhosas pizzas de forno de lenha. Bem o dissemos, melhor o fizemos.

De tarde, deitei-me no sofá do terraço e estou convencida que adormeci instantaneamente. Agora há moscas por todo o lado, incomodativas como melgas. Pois o sono foi tão profundo que nem dei por elas. Um calorzinho bom, absurdo para esta época do ano. De chuva nem sinais. Em pleno outubro, vestida à verão, dormi uma bela sesta ao ar livre.

Quando acordei, retomei  'O acontecimento'. 

Lá está: se calhar isto é literatura. Não há palavras caras, não há jogos de palavras ou de estilo, não há enredos do caraças. Nada. tudo simples. Há apenas uma escrita pessoal, sincera, tão pessoal e tão sincera que chega a ser íntima e que, de forma discreta, como se nada fosse, nos vai mantendo presos. 

Aos meus pés, dormia o meu amigo cabeludo. De vez em quando, levantava-se e ia pegar-se com o do lado que também se pica com este. Estão separados por um muro mas, totós como fingem ser, portam-se como se um pudesse invadir o território do outro.

Passado um bocado chegou o meu marido que provavelmente tinha estado a dormir na sala, quiçá enquanto via algum jogo de futebol.

Fomos, então, para a parte da frente do jardim para os trabalhos que tínhamos em carteira. A casa tem ali, naquela zona, pouca luz. Quando chegamos à noite, se não tivermos deixado a luz acesa, não é fácil. Muitas vezes tenho que ligar a lanterna do telemóvel. O meu marido recusa-se a fazer buracos nas paredes da casa para pendurar novos candeeiros ou a fazer puxadas de electricidade ou seja o que for que lhe dê mais trabalho. Ele diz que não é isso, até se ofende com a minha insinuação, que não quer é desfear a casa. Se calhar, é mesmo e, verdade, verdadinha, não lhe tiro a razão. Por isso, não quer instalar daqueles projectores com sensores de movimento nem quer substituir os candeeiros que lá estão a menos que tenham furação compatível, o que ainda não encontrámos. Mas tudo bem: se não tens cão, caça com gato ou se, te dão limões, faz limonada. Ou coisa do género. Pensámos, pois, que, nesse caso, partiríamos para o capítulo seguinte: luz solar. 

E, então, andámos a ver onde pendurar os projectores e as demais iluminações que comprámos no outro dia em sítios que apanhem sol e em que os pudéssemos prender com arame (na vedação, na armação metálica em volta de uma janela por onde cresce uma trepadeira, no tubo que está na esquina da casa e que desce do algeroz, etc). Não foi fácil. Nem sempre concordamos com a abordagem, com o processo ou com a perfeição da obra. Além do mais, nestas coisas o meu marido prende-se a minudências que não lembram ao careca (no pun intended) como não querer que eu corte o arame verde pois acha que não puxo com o cuidado devido, posso enleá-lo, ou refila porque, segundo ele, corto bocados demasiado grandes e não apenas no tamanho necessário. Depois eu quero mais acima mas, para lá chegar, só com a escada grande e pesada que está na garagem e ele não quer, diz que não é preciso ser tão acima, e eu acho que tem que ser. Visto de fora não sei se não parecemos os marretas. 

Estivemos ainda a pôr uns arames a partir de uma rede para ver se a glicínia se orienta por ali, criando um túnel florido no corredor lateral, e estivemos a puxar umas guias gigantes que já vão pelos ares no jardim da vizinha para ver se seguem estas novas orientações.

A seguir, já ao fim da tarde, fomos fazer uma caminhada alargada. Gosto de caminhadas longas, sem pressa, gosto de ver as casas ao fim do dia, as luzes já acesas, gosto de ver os jardins já com ar de outono, alguns muros cobertos por vinha virgem, linda, rubra. Há plantas que exalam um perfume agradável, doce, bem aventurado. Não sei quais são mas creio que ainda haverei de descobrir.

Regressámos já de noite. 

E, milagre, as luzinhas já estavam acesas! Não estávamos à espera pois mal apanharam sol. Fiquei surpreendida e contente. O jardim iluminado, os sensores de movimento em acção, tudo funcional e bonito. O meu marido também gostou, notei isso. Por mim punha mais umas luzinhas mas ele é conservador, diz que não é natal para enfeitar o jardim com luzes. Seja. (Também já não falta muito para o natal).

Aliás, ontem, quando estava no shopping, ao passar pelo Gato Preto nem queria acreditar: árvores de natal, pais natal, presépios. Pensei: já estamos no natal. Entrei para me certificar de que não estava a ter visões (e, confesso, para ver se havia algum presepiozinho pequenino, fora da caixa, daqueles que não têm nada a ver, de que gosto). Saí sem figurinhas mas com a sensação de que o tempo anda acelerado e que a vida mal consegue acompanhá-lo.

Tirando isso, o que sei é que já é domingo. 


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E agora vou partilhar um vídeo que acho o máximo, uma daquelas coisas que me enche as medidas. Vejam bem e, se vos apetecer, aproveitem também para dançar. É do caraças. E tem um final feliz.

Haute saison com Gordon Tracks & Giorgio Poi, dirigido por Natalie Portman e produzido por Rob & Jack Lahana


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Desejo-vos um feliz dia de domingo
Saúde. Sorte. Afecto. Boa sorte. Paz.

quinta-feira, janeiro 14, 2021

Como transformar os dias de confinamento em fields of gold?

 


Trabalho em casa e trabalho em contínuo e penso muitas vezes como é possível que, não gastando o tempo que antes gastava em percursos de carro, tantas vezes em filas lentas, que gastava em almoços em restaurantes, não consiga que agora esse tempo reverta para mim. O trabalho invade a minha vida e eu não tenho conseguido inverter esta absurda tendência. E isso intriga-me e incomoda-me.

Hoje, à hora de almoço, fomos comprar pellets. Foi um tempo extra que gastámos. Por isso, almoçámos um pouco mais tarde. E esse pequeno atraso foi o suficiente para que tenha tido que trabalhar até às oito. 

Por volta das sete e picos, interrompi por breves minutos para ir fazer uma emulsão para colocar os lombos de atum fresco a marinar.

Fiz assim: num copo alto coloquei azeite, uma quantidade razoável de salsa e coentros, um pequeno dente de alho, raspa de lima, um pouco de sumo de limão, um pouco de mel. Bati. Formou-se um creme verde. Despejei sobre os lombos de atum que tinha colocado num prato fundo que ficaram submersos. 

Voltei ao trabalho. Tempo de definir objectivos, área a área. Por volta das oito interrompi. Fui ligar à minha filha. Depois pus batatas a cozer. Fui ligar à minha mãe. Quando dei por ela já eram quase nove. Fui ver a duração de cada telefonema a tentar perceber como tinha passado tanto tempo. Vinte e quatro minutos exactos com a minha filha, vinte e quatro minutos e doze segundos com a minha mãe. Fui, então, acabar o jantar.

Deitei fora um pouco da água das batatas cujo lume tinha desligado quando vi que estavam cozidas. No entanto, deixei parte da água. Juntei um pouco de azeite, um pouco de manteiga e orégãos. Esmaguei grosseiramente com um garfo. Esmagada de batata.

Numa frigideira, coloquei um pouco da emulsão e aqueci-a. Quando estava quente despejei o conteúdo do prato: os lombos e a emulsão da marinada. Um minuto de cada lado. Pronto.

Acompanhámos com salada de canónigos. 

Durante o jantar ligou o meu filho mas não atendi. Liguei a seguir. Curiosamente foi ele que desta vez bateu o record. Vinte e oito minutos e trinta e nove segundos. 

Alimento-me destas conversas com aqueles que gostaria de ter por perto.

Esforço-me por não pensar que pode passar um mês sem que possa estar com os meus filhos, com os meus netos. No meu íntimo, optimista em qualquer circunstância, acredito que sim, que talvez possamos. Não sei como mas pode ser que sim, logo se vê. E, se não puder, também acredito que passará num instante. 

Vamos entrar em confinamento e obviamente era inevitável. O sistema de saúde está a rebentar pelas costuras, em gestão de catástrofe, a ter que se escolher entre quem tem probabilidades de se safar e quem talvez não se conseguisse safar. O drama nisto é que não afecta apenas os covides. Afecta os que, por qualquer outro motivo, tenham a pouca sorte de ir parar ao hospital. Não há camas, não há pessoal, não há equipamento. A única solução é fechar as pessoas em casa e esperar que se conservem saudáveis até que a onda abaixe a crista. Não foi à toa que comecei a ficar preocupada em Setembro e Outubro. Com o frio a aproximar-se, a malta mais em espaços fechados, sem que o teletrabalho tenha sido de imediato decretado como obrigatório (sempre que possível de se realizar remotamente), com a curva a empinar como vi que estava, tinha tudo para se chegar onde se chegou. Não há mistérios: branco é, galinha o pôs. Muita gente vai ainda morrer e muita gente vai padecer, e muito, e muita gente ficará com sequelas. 

O corona não brinca em serviço. Transmuta-se. Já há a variante do Reino Unido, muito contagiosa, já em cinquenta países entre os quais Portugal onde já se encontram setenta e tal pessoas infectadas com esta estirpe, já há a variante da África do Sul, já em vinte países, agora foi identificada uma terceira, no Japão, em doentes que vieram do Brasil. Um corona com vários clones. Um pesadelo. Pode ser que a vacina. Mas a vacina vai vir devagarinho, devagarinho. Enquanto o tempo estiver assim, a única maneira de quebrar as pernas às inúmeras cadeias de transmissão é hibernar. Quando vier o calor, a gente vai poder conviver ao ar livre, a curva terá regredido, já haverá mais gente vacinada, as coisas vão melhorar. Até lá é aguentar firme. E fazermos figas para que os que têm que dar o corpo ao manifesto, a malta das profissões indispensáveis que têm que se realizar presencialmente, se aguentem de boa saúde. Nunca agradeceremos suficientemente a essas pessoas: os dos supermercados e farmácias, os agentes da ordem, os bombeiros, os do lixo, os da manutenção, os da saúde, os carteiros, etc, etc, etc. 

Continuo a dizer que deveria haver campanhas frequentes a explicar que usar máscara não é sinónimo de usar o nariz de fora, nem usar dias a fio a mesma máscara, nem lavar a máscara de papel. As televisões deveriam dar o exemplo do que é o comportamento admissível pois, segundo me diz a minha mãe, fazem o oposto: diz ela que é frequente em alguns programas da manhã e não sei se da tarde, estarem todos bem próximos uns dos outros, tudo sem máscara, tudo a falar e a rir, partilhando os coronas que estejam disponíveis para a suruba. 

No outro dia, quando fui a um sítio, algumas pessoas estavam a ter reunião numa sala fechada, sem janelas. Quando mostrei a minha admiração, responderam que estavam de máscara. Não sabem que se alguém estiver infectado, numa sala fechada, mesmo que com máscara, o mais provável é que fiquem todos infectados? Mesmo em contexto familiar, numa divisão com as janelas fechadas (e com esta temperatura quem é que pode estar de janela aberta?), se uma das pessoas veio contagiada de outro lado, o mais certo é que toda a família também fique contagiada. Na maior parte dos casos a coisa é tranquila. Mas nisto da roleta russa nunca se sabe. Ainda há pouco, um médico dizia que não é verdade que quase todos os casos graves apresentassem outras comorbilidades. 

O mais estranho nisto é que, ao fim de um ano, ainda não se saiba o que há em algumas pessoas que as faça vítimas indefesas às mãos do corona. Tanta ciência, tanta investigação e estamos na mesma: sem saber o que faz com que uns caiam que nem tordos e outros não estejam nem aí.

Mas, enfim, não me parece que quem até aqui vem, venha à espera de ler tretas destas. O facto de ter uma convivência limitada e de encher o meu tempo com trabalho e mais trabalho faz com que chegue a esta hora meio esvaída e destituída de assunto. 

Talvez possa apenas dizer que, hoje, ao tentar descobrir o que vestir para uma reunião, preferencialmente em tons cinza claro e, sobretudo, quente, fui dar com um colete de pele não sei de que animal, só sei que é macio e platinado, um colete muito bonito e elegante, sem mangas, justinho, com gola levemente subida, que aperta à frente com uns colchetes. Deu-mo a minha filha pelo natal, talvez há uns mil anos. Em escritórios aquecidos, mal tinha oportunidade de o usar. Como hoje tinha uma blusa em cinza claro, ficou mesmo bem. Com uns brincos de pérola e um colar de pérolas junto ao pescoço, ficou elegante. Eu, pelo menos, gostei. Aproveitei para pôr nos lábios um lipstick que ela me deu pelo natal, um rouge muito rouge. Fiquei completamente outra. 

E é isto, nada mais que isto. Uma limitação. Ainda hei-de aprender a transformar a aridez destes meus dias em dias de sonho, dias bons, dias dourados, dias em que tenha coisas boas para dizer.

Limito-me a partilhar um vídeo que penso que já aqui partilhei mas que acho lindo. O que é bom é para se ver, dizia-se dantes. Não sei se ainda se diz. 

Biomimicry

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Pinturas de Franjo Vujcec ao som de Eva Cassidy a interpretar Fields of Gold

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E tenham, por favor, dias felizes

domingo, abril 21, 2019

Quem sabe este não é mesmo um lugar poderoso aqui in heaven?
E que o seu poder não chega até vós...?





Dia tranquilíssimo. Uma aragem suave, um sol ameno. Limpei a casa, pasmei com o que a casa se suja mesmo com pouco movimento. A casa tem cinco portas que dão para a rua. Destas usamos regularmente três. E como andamos sempre dentro e fora, deve entrar pó ou somos nós que o trazemos connosco. Pó, não. Terra. Folhinhas, coisinhas do campo. 

E passeei, sentindo-me de férias. Três dias de férias.

E fiz uma descoberta que me deixou maravilhada e de que falarei mais logo.

E vi, espantada, que as roseiras bravas floriram. Costumo chamar-lhes rosinhas de Maio (e se calhar é mesmo o nome delas -- não sei) e, vendo-as agora, em Abril, perfumadas e efémeras, enterneci-me.

E o gatinho cor de mel veio pôr-se no banco de pedra junto à casa, como se fosse um barão. Ou uma baronesa -- não faço ideia.

E outro, o preto e branco, andou a passear-se sobre um muro e eu, que estava noutra, só o apanhei em desfocagem.

Depois, mais à frente, apareceram dois branquinhos a correr, assustados.

E, portanto, andei pelos campos a flanar e a fotografar e, de novo, fiz vídeos.

O meu marido hoje apanhou alguns dos infinitos rebentos ladrões que despontam por todo o lado mas circunscreveu-se à parte de cima do terreno. Está com dor nas costas.
Esta nossa terra, pela morfologia e por tudo, nunca poderá ser um terreno agrícola mas de terreno seco e pedregoso virou esta terra fértil onde tudo nasce, tudo cresce. E cresce de forma descontrolada. Se um dia deixarmos de tentar conter toda esta exuberância tenho a impressão que os caminhos desaparecerão no meio de árvores e arbustos e que a própria casa se tornará mais uma gruta para animais ou outros seres dos bosques.
Depois queimou o que apanhou mas num bidão para não ter que levar tudo lá para baixo. Não sabemos se mesmo para queiminhas destas tem que haver autorização mas, por via das dúvidas, pedimos na mesma.

Um dos vídeos que fiz foi uma tentativa de repetir um que tinha feito ontem ao fim do dia e que não pude aproveitar.
Como sempre que ando muito tempo fora quando a tarde vai alta, o meu marido começou a chamar por mim. Não respondi, claro, pois estava a filmar mas, na ausência de resposta, ele foi andando e chamando e o meu nome acaba por se ouvir perfeitamente. 
Hoje repeti mas não ficou nada bem pois deu-me para fazer com a máquina o que faço quando lá estou mas, pelos vistos, a uma velocidade muito maior. Portanto, uma almariação. Uma das coisas que tenho que aprender é a pôr alguns bocados dos vídeos em slow motion. Assim, como poderão constatar, fica complicado de ver. Fechem, por favor, os olhos para, no fim do vídeo, não caírem para o lado ou então tomem antes comprimidos para o enjoo.

Mas, acreditem, a intenção é boa.

Círculo de pedras in heaven



Entretanto, vou procurar uma coisa.

Cá está. Mostro um bocadinho daquilo do livro de Feng Shui para não pensarem que é delírio meu.


Aliás, o livro tem boas ideias e a disposição das coisas e dos jardins transmite uma sensação de grande harmonia. Não sei se algo mais que isso mas serenidade e harmonia transmite.

Tenho também a dizer que, quando me ouço, percebo que a meio das frases parece que me distraio e me esqueço de conjugar o sujeito com o predicado ou outras coisas do género. Um exaspero. Não sei se isso daria para editar mas devia dar porque há casos em que é uma vergonha.

E uma rectificação. Quando estamos na cidade a preparar as coisas para virmos para cá, andamos numa azáfama, a guardar isto, aquilo e o outro, e eu arrumo umas coisas, ele arruma outras e eu pergunto-lhe se ele já guardou isto e ele diz que eu me despache, que está farto de estar à espera. Ora bem. Eu sou despassarada, faço as coisas em piloto automático e, volta e meia, no meio destes preparativos, nem me lembro bem de as ter feito. E tão habituada estou a cometer gaffes que hoje, quando constatei que, em vez do cabrito pascal, tinha vindo porco, logo assumi que tinha sido mais uma das minhas. Quando, arreliada comigo mesmo, contei ao meu marido que não iríamos sacrificar nenhum cabrito, ele saíu-se com esta: 'Mas não era o saco que estava em cima, no congelador?'. E aí percebi que não fui eu, foi ele. Mas pronto, o assado de porco, cozinhado como um cabrito, ficou quase a saber ao dito. E comeu-se. 

Fiz assim: 
Num tabuleiro de forno, coloquei uma grande cebola nova cortada grosseiramente, um bom ramo de salsa, uns dentes de alho, um bocado de casca de laranja. Por cima a peça de porco. Por cima, pouco sal, mais salsa, orégãos, alecrim. Reguei com um pouco tinto alentejano e de azeite. O forno que estava previamente aquecido, foi reduzido para receber o tabuleiro. Esteve lá cerca de duas horas em forno a 170º. De vez em quando, virava a carne. No fim, cozi batata doce e, quando cozidas, verti-as sobre o tabuleiro. Parte das batatas absorveu o molho. Por cima pus um pouco mais de orégãos e um fio de azeite. Voltou tudo ao forno para bronzear. 
E esta fotografia é para o Soliplass que talvez reconheça a silhueta que se vê ao fundo.
Boa Páscoa, Lenhador que se fez ao Mar

E, uma vez mais, boa Páscoa a todos

sexta-feira, novembro 30, 2018

Nesta altura do ano





Li, não sei onde, calculo que num dos blogs da galeria lateral, provavelmente enquanto estava no carro, presa no trânsito, alguém a queixar-se das folhas no chão num certo sítio da cidade. Mostrava fotografias de ruas pejadas de folhas e falava no perigo que é, que alguém poderia escorregar. E que a autarquia deveria varrer as ruas. Quis dar-lhe razão mas depois vacilei. A razão queria dizer que claro que as ruas deviam ser limpas de todo aquele folhedo mas... não me autorizei a tal pois a emoção puxava-me para o oposto.

Lembrei-me de uma queda brutal que dei há uma meia dúzia de anos. Tinha chovido e eu ia, com pressa, com coisas nas mãos. Virei para subir umas escadas e, nessa curva que dei, pisei uma folha molhada, presumo que já meia amolecida. Foi uma ínfima fracção de segundo. Levantei voo e aterrei violentamente de cabeça nos degraus de pedra da escada. Como tinha as mãos ocupadas, nem sequer tive o instinto de me agarrar ao corrimão. A cabeça sofreu um estrondo e eu pensei que a tinha partido. A custo levantei-me e, sabe-se lá como, consegui chegar a casa. Deitei-me na cama. Estava tonta e com uma dor tremenda na cabeça. Tinha sangue na cara mas era apenas superficial. Quando tentei levantar-me, mal consegui. Tinha tal dor nas costas e na zona pélvica que mal me mexia.

O meu marido teve que me levar às urgências no hospital. Já não me lembro bem mas acho que tinha uma micro fissura na zona da bacia e já não me lembro o quê na zona pélvica. Tive que ficar um ou dois dias em casa (ou mais? -- não me lembro, só me lembro que andei mais de um mês cheia de dores e, por vezes, ainda tenho um incómodo ali)

A forma desamparada como caí, sem tempo de reacção, batendo com a cabeça de uma maneira que a poderia ter estourado, fez-me passar a ter medo das quedas. E tudo porque pisei uma folha molhada.


Mas, por outro lado, que linda que é uma rua, uma praça, os jardins cobertos de folhas de outono, douradas, tão cheias de luz coalhada. Vejo e penso: ainda bem que ninguém as tira porque um chão coberto de folhas douradas é do mais lindo e romântico que pode haver. 
Interrogo-me: será que ver um chão coberto de amarelo e, em vez de se ficar encantado, ficar a pensar que o que ali está é um perigo, é sinal de que a idade começa a pesar? Forço-me a pensar que não, que não tem nada a ver, que é apenas um sinal de prudência. Mas não sei.
No outro dia, uma jovem colaboradora minha, falando de um colega mais velho, mais ou menos da minha idade, (mas, a sério!, parecendo bem mais velho que eu), relatava-me com a maior das espontaneidades uma conversa que tinha tido com ele: 'Já lhe disse no outro dia: ó pá, o que é ainda cá andas a fazer? E disse-lhe que eu, se fosse a ele, ia gozar a vida em vez de ainda andar aí a ter que se levantar cedo, a andar no trânsito, a aturar chatices'. Tive que lembrá-la que isso não é bem assim, que as pessoas não podem reformar-se antes da idade, quando querem. Ela olhava-me um bocado céptica, creio que sem se dar conta que poderia estar a falar de mim. Reparei como para ela, a partir de certa idade, já não faz sentido trabalhar, como se, atingido esse patamar, as pessoas já devessem ser poupadas, talvez porque mais frágeis, mais perto do fim. Não me dei por achada, até para não a atrapalhar, mas fiquei a pensar que, na realidade, chega-se a um ponto da vida em que se percebe que o tempo que falta é menos do que o que já se viveu e que, na realidade, é bom que a gente o aproveite bem.


Quando morreu a minha avó, o meu tio, filho dela, vendo-me triste, disse-me: 'No outono, cai a folha'. E eu, que associava o outono a uma estação suave, de cores douradas e rubras, um tempo de doçura e aconchego, fiquei a pensar que, na verdade, também pode ser visto como o fim do caminho, o tempo em que o fio de luz que ilumina a vida se extingue.

Mas, enfim, não vale a pena estar para aqui com estas conversas. Para cada coisa há sempre várias perspectivas para a ver e todas estarão certas. E não há fim, só há interrupção. E sempre um recomeço. Mesmo que numa outra forma, mesmo que invisível, mesmo que ninguém o perceba.


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That time of year thou mayst in me behold
When yellow leaves, or none, or few, do hang
Upon those boughs which shake against the cold,
Bare ruin'd choirs, where late the sweet birds sang.
In me thou see'st the twilight of such day
As after sunset fadeth in the west,
Which by and by black night doth take away,
Death's second self, that seals up all in rest.
In me thou see'st the glowing of such fire
That on the ashes of his youth doth lie,
As the death-bed whereon it must expire,
Consum'd with that which it was nourish'd by.
This thou perceiv'st, which makes thy love more strong,
To love that well which thou must leave ere long.




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domingo, abril 08, 2018

In heaven em dia de chuva, casamento, Pedro Mexia e culinária





Quando vínhamos para cá, vim a ler o tal livro que, para o fazer durar, ando a ler a conta-gotas, O Leopardo, e, no telemóvel, a entrevista de Pedo Mexia. Gosto de ler o que o Pedro Mexia escreve. Os blogs dele eram dos poucos que eu lia quando ainda pouco contacto tinha com o mundo da blogosfera. 

Quando comprava o Expresso, as crónicas dele eram também das primeiras coisas que lia. Fraco Consolo de boa memória.


No entanto, detesto vê-lo metido naquela pangalhada do Governo Sombra (ou melhor, detesto aquele culto da palermice que é o Governo Sombra) e, por causa disso, parece que acabei por me desengraçar um bocado dele.

Mas gostei de ler a entrevista no DN. É a propósito do seu novo livro e aí, do que percebo, fala de vivências em lugares. 

Imagino-o sentado num café, numa esplanada, num quarto de hotel. Parece que anda sempre carregado de canetas com medo que se lhe acabem. Imagino-o escrevendo, vendo as pessoas, observando o ambiente, anotando as suas impressões sempre condimentadas com lembranças de literatura de várias geografias e épocas.


Mal chegámos aqui, in heaven, fomo-nos ao do costume. Agora andamos a desbastar as aroeiras. Crescem muito, deitam ramos a toda a volta. Acabam por formar arbustos gigantes, enormes esferas verdes e perfumadas. O meu marido serra os ramos baixos, desbasta-as fartamente, eu fico-me pelos mais fininhos, e, enquanto ele se atarefa com os ramos grosso, eu vou levando os ramos para o so called campo de futebol, para depois fazermos uma fogueira.

O cheiro da madeira cortada, o perfume do alecrim, dos pinheiros, tudo me encanta de uma forma absoluta. Penso que talvez me sinta tão bem ali quanto os pássaros que cantam com bem sonora alegria.


Começou a chover ao de leve e continuámos. Sabe ainda melhor sentir a chuva quando se está no campo. E eu pensei que, se calhar, o Pedro Mexia -- que conhece tantos lugares e que já leu tantos livros e sabe tanta coisa -- ainda não experimentou estas sensações, estes perfumes, esta imersão nos verdes, os pés sentindo a terra macia e húmida.
Não se é melhor pessoa por podar árvores, por fazer fogueiras que deixam no ar o cheiro ancestral da queima do mato cortado de fresco e do fumo, por andar com a pele molhada como os bichos que por aqui andam. Mas é tão bom que todas as pessoas deveriam poder experimentá-lo para gravarem no corpo e na alma sensações de tempos ainda não tocados pelo progresso.

Depois começou a chover muito. Abriguei-me debaixo de uma árvore. Mas a chuva era torrencial. Corri para me abrigar no telheiro onde tinha deixado a máquina fotográfica. Fotografei. Devia ter filmado para se ouvir o som da chuva, o som do canto dos pássaros, eufóricos, a minha respiração silenciosa para não perturbar o meu encantamento.


Pouco depois, quando a chuva se foi, começámos a ouvir carros a apitar ao longe, aproximando-se, chegando à estrada lá em cima. O meu marido disse: 'Deve haver para aí um casamento'. E eu pensei: casamento molhado, casamento abençoado. O meu marido disse: 'Será o puto? O neto do vizinho? Já têm filhos mas, se calhar, agora é que resolveram casar'. Não sei. O vizinho já morreu e na casa grande vive uma das filhas e tem-nos parecido que no que era, em tempos, um grande armazém no meio da propriedade, vive agora um dos netos com a mulher e os filhos pequenos. Deve ter feito obras, adaptado o edifício. Mas não sabemos.


Entretanto, começou a ouvir-se música. Surpreendentemente, música dita clássica. Diria que Schubert. Os carros foram parando ao longo da nossa vedação -- e, sem que suspeitassem que lá em baixo estavam dois indígenas de serrote e podão em punho a observá-los, pessoas bem vestidas iam andando na direcção da casa lá de trás, do outro lado da rua, ao fundo.

Parecia que estávamos a ver um inesperado filme. Não ouvíamos o que diziam mas víamos que sorriam, que se cumprimentavam, que iam para o que devia ser mesmo um casamento.

Depois a música silenciou-se. Pensei que deveria estar a decorrer a cerimónia.


Algum tempo depois ouviu-se o Hallelujah interpretado por Leonard Cohen. E as pessoas começaram a vir para os carros e os carros começaram a ir lá para baixo. Presumo que iriam para o copo-de-água. Que eu saiba, não há nada lá em baixo. Há um vale, há o rio, há encostas verdejantes, há casas antigas. Não sei para onde terão ido. Talvez tenham arranjado alguma daquelas casas de pedra cobertas pelos enormes salgueiros que parece mergulharem no rio. Talvez lá tivessem uma lareira à espera dos convidados e talvez tenham festejado ao som de outras músicas igualmente bonitas.


O céu foi ficando limpo, bonito, as nuvens escuras aquietadas. E nós continuámos até anoitecer.

Depois voltámos para casa.

Amanhã há mais.

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Vim fazer o jantar. Tinha trazido uma embalagem com dois lombos de salmão que, entretanto, já tinham descongelado.

Não sabia como fazer porque, na prática, pouco mais tinha. Talvez no forno. Mas depois tive uma ideia. Perguntei ao meu marido: 'O salmão com arroz? O que dizes?'. Disse que podia ser.

Tinha uma única cebola roxa. Num tacho coloquei azeite e piquei grosseiramente a cebola roxa, que era de bom tamanho. Estrugi. Descobri um resto de cabeça de alho, pelo que juntei um dentão do dito devidamente picado. Alourou. Juntei uma folha de louro. À vinda para cá tinha parado para comprar fruta e a senhora deu-me um pouco de salsa. Juntei. Coloquei lá, então, os dois lombos de salmão. Juntei também arroz basmati e o dobro da quantidade de água.

Lembrei-me, então: 'Couves'. Fui lá abaixo, a correr, à horta, já quase completamente às escuras. Estava frio. Trouxe duas couvinhas chinesas.

Estas que aqui se vêem em primeiro plano não são as chinesas, são as portugueses.
As chinesas são as mais claras que mal se vêem, atrás 

Lavei as folhinhas e cortei-as para dentro do tacho. Juntei ainda um pouco de alecrim e de sal. Ferveu. Depois de ferver, baixei o lume. Misturei bem. Quando ficou sem água, desliguei. Os lombos tinham-se desmanchado. Com um grafo misturei melhor para o arroz envolver bem os pedaços de peixe e as tirinhas de couve.

Sem falsas modéstias: ficou mesmo bom.

Lavei uns moranguinhos que trouxe da senhora, daqueles pequenos, não adubados. Comemos como sobremesa. Docinhos e saborosos, a saberem a morango.

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Aleluia.


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Voltou a chover. A madeira dos troncos cortados das minhas árvores arde na salamandra, a sala está quentinha e ouço a chuva no telhado, no chão à volta da casa. A noite vai alta e está-se bem.

A minha filha, que é noctívaga como a mãe, acabou de me enviar um filme sobre Inteligência Artificial e escreveu que eu tinha mesmo que ver. Diz que nada que não se soubesse mas, ainda assim, assustador. Mas a rede aqui é muito má, não se conseguem ver filmes. Vejo amanhã ou depois.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo

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domingo, setembro 24, 2017

Folhas de Outono


De manhã rente ao rio, a seguir ao almoço respirando o suave aroma do outono in heaven. Dia bom. As folhas douradas, o céu muito azul, o sossego tão apaziguador.




Continuámos a desbastar pinheiros e o odor que se eleva dos ramos cortados é perfume que gostava que pousasse na minha pele e aí ficasse. Mergulho o rosto, aspiro, passo as mãos, lavo a alma.

Gosto de ver as árvores limpas, arejadas, gosto de andar pelo meio do mato. 


A tarde silenciosa. Os pássaros em delicado repouso, querendo apenas sentir a doçura desta tarde em que a luz se aquieta sobre os montes, sobre as árvores, sobre as folhas que estão alouradas ou acobreadas e que, não tarda, atapetarão o chão, folhas caídas que prenunciarão as chuvas que tardam e que tanta falta fazem à terra que está tão seca. O horizonte, ao fim da tarde, em tons quentes: chamas de emoção no coração de quem ama, saudades que embalam. 


Imprevidentemente estava de saínha justa e, portanto, não apenas a faculdade de levantar a perna para me defender ao passar sobre silvas ou tojos estava limitada como a pele à vista era, de facto, um convite ao arranhão. Agora, enquanto escrevo, reclinada no sofá, o computador sobre as pernas, olho-as. Lindas (salvo seja e não desfazendo): picadas, arranhadas. Incapazes de dar as caras em reuniões feitas para corpos cosmopolitas, preparados em ginásios e não na poda em pleno mato. Como isto das luvas. Gosto de sentir e as luvas retiram-me o sentimento. Não as uso. E não me importo de olhar as minhas pequenas mãos e vê-las com as marcas do prazer que os trabalhos no campo me proporcionam.


O meu marido aborrece-se por me ver andar assim no meio do mato, a podar pinheiros, a arrastar frondosas pernadas. Diz: 'E, para cúmulo do disparate, de máquina fotográfica ao pescoço'. Mas tem que ser. Não dá muito jeito mas, a cada instante, posso ter vontade de fotografar. E tem que ser naquele instante. A luz macia por entre as ramagens, embelezado a pinha, aquela pinha em concreto naquele preciso momento, as uvas muito doces, os cachos meio comidos pelos pássaros, alguns bagos rebentados tanto o açúcar. A vinha virgem a incendiar-se rente à parede. A glicínia dourada sobrevoando o portão.


Depois, ao fim do dia, descanso. Deitada no sofá, a luz do entardecer inundando a sala. Leio Pedro Páramo. Uma escrita encantatória. Saudades metamorfoseadas em palavras. Nostalgias. Memórias, sonhos, fantasias. Gente que fala, murmúrios que se levantam das pedras, que se evolam das paredes. mortos que permanecem vivos, sombras que inquietam quem vem em busca de reencontros. Mulheres que oferecem o corpo das amigas ao homem que amam, filhos que quase poderiam ter sido filhos de outras mulheres, homens com o sangue vadio a correr nas veias que, à noite, visitam mães e cometem outros desacatos.


Encanto-me mais com as palavras do que com a história. As palavras ganham um sentido guapo, os verbos são gestos de gente. Outras vezes enchem-se de música e juntam-se para formarem belas toadas. Poesia por vezes, agressão ou susto nas restantes.

Depois, o sono começa a descer sobre mim e os nomes começam a enovelar-se. Não faz mal.

Logo retomei. A história como uma sucessão de episódios oníricos, e as lembranças e os sonhos vêm debruados com a estética dos sentidos, as frases perfeitas, as palavras e os nomes que atravessam os tempos, que furam a normalidade e trazem aventura, receios -- raramente as bem aventuranças que se queriam.


Apetece-me agora transcrever alguns excertos para mostrar a quem não conhece a obra mas é muito tarde, este já é o terceiro post desta noite e eu intuo que canso os meus Leitores com estas minhas tantas palavras que não se calam.

Fico-me, pois, por aqui mas permito-me ainda sugerir que se deixem ir deslizando pelos posts que se seguem. As vossas visitas alegrar-me-ão sempre, seja para me lerem no campo ou à beira-rio.

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domingo, outubro 09, 2016

Folhas de Outono


A folhagem aloura de dia para dia. E dança com a aragem. 

Parecem querer seduzir o rio, e o rio passa, amável, contemplando-as, árvores elegantes, bailarinas douradas.

E as cores combinam-se sob a luz suave desta tarde de outono. Lá muito em cima, as gaivotas voam em círculo e gritam como meninas brincando em roda. 



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Está fazendo um dia lindo de outono. A praia estava cheia de um vento bom, de uma liberdade. E eu estava só. E naqueles momentos não precisava de ninguém. Preciso aprender a não precisar de ninguém. É difícil, porque preciso repartir com alguém o que sinto. O mar estava calmo. Eu também. Mas à espreita, em suspeita. Como se essa calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto me fascina.

[Clarice Lispector]
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Quando, Lídia, vier o nosso outono 
Com o inverno que há nele, reservemos 
Um pensamento, não para a futura 
Primavera, que é de outrem, 
Nem para o estio, de quem somos mortos, 
Senão para o que fica do que passa 
O amarelo atual que as folhas vivem 
E as torna diferentes. 

[Ricardo Reis, in "Odes"]

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domingo, maio 22, 2016

Uma mente elástica
- ou a virtuosa ligação entre o Design e a Ciência (e, já agora, a Arte)


Acredito que a elegância está em quase tudo o que importa e que, se não é elegante (e simples), provavelmente ficará pelo caminho no infinito devir do tempo.

Tecto da Catedral da Sagrada Família (Gaudi, Barcelona)
-  ou a geometria fractal na Arquitectura

Se penso em arquitectura, música, pintura, matemática, literatura, biologia, fotografia ou seja no que for (incluindo em decoração) ocorre-me que o que verdadeiramente nos emociona e que prevalece na memória, seja na individual seja na colectiva, é o que tem uma estética própria, uma beleza intrínseca.

Talvez nisto estejam presentes conceitos como os da simplicidade, simetria, harmonia, reprodutibilidade.

Mas digo talvez. De facto, não sei.


Os Fractais dentro de nós
(ver Fractal Neurons)
Esta tarde, estive a ler Science is Culture - Conversations at the New Intersection of Science + Society, editado por Adam Bly que é o fundador da Seed.

Uma das conversas que gostei de ler foi a que ocorreu entre a italiana Paola Antonelli e Benoit Mandelbrot, o matemático de quem já aqui falei, nomeadamente quando me referi aos fractais.

Não vou aqui transcrever a conversa que é extensa mas, porque me é cara a ideia de termos as diversas áreas do saber a intersectarem-se ou a influenciarem-se ou, ainda, a potenciarem mutuamente a evolução no caminho do conhecimento, vou deixar-vos com uns vídeos que considero interessantes e inspiradores.

Mas permitam que, primeiro, transcreva um breve excerto da apresentação de Paola Antonelli.

Paola Antonelli (born 1963 in Sassari, Sardinia, Italy) is an Italian author, editor, and curator. She is of Lombard ancestry. She is currently the Senior Curator of the Department of Architecture & Design as well as the Director of R&D at The Museum of Modern Art (MoMA), New York City.
Antonelli was recognized with an AIGA Medal in 2015 for "expanding the influence of design in everyday life by sharing fresh and incisive observations and curating provocative exhibitions at MoMA" She was rated one of the one hundred most powerful people in the world of art by Art Review and Surface Magazine.

Paola Antonelli: Design and the elastic mind



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Já agora, volto a um tema frequente por estas bandas (por estas bandas e por todo o lado)

Fun with Fractals



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E, para quem queira continuar mergulhado nesta fusão intelectual e artística em que as fronteiras se esbatem, aqui deixo este outro vídeo:

Design and the Life Sciences (Daisy Ginsberg, Michael John Gorman, Paola Antonelli)


The intersection of design and synthetic biology is a powerful new direction of research and practice. Four early advocates and pioneers of what Ginsberg calls the Synthetic Kingdom – a new branch in the Tree of Life – will discuss it from the unique viewpoint of their respective fields. From early efforts to establish synthetic biology as a new area of inquiry in academia, to early experiments in the design of a connection with art and design across many universities and institutions around the world – Alexandra Daisy Ginsberg, Michael John Gorman will engage in an inspiring conversation, moderated by Paola Antonelli.

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Talvez já esteja a abusar da vossa paciência mas permitam ainda que volte a Mandelbrot e que partilhe convosco uma das suas últimas palestras (poucos meses antes de morrer)


 Fractals and the art of roughness - Benoit Mandelbrot


Benoit Mandelbrot's work led the world to a deeper understanding of fractals, a broad and powerful tool in the study of roughness, both in nature and in humanity's works.

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E é isto: este é o maravilhoso em que vivemos.


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Talvez até já.