domingo, abril 30, 2017

Estar a levar uma massagem tão, mas tão boa... e adormecer.





Há alturas em que me ponho a marcar passo, quase vencida pelo politicamente correcto. Ainda não escrevi a primeira letra e já as ouço a remorderem que a vida não é só isto, coisas boas e sorrisos, ou que sou uma exibicionista ou que rebéubéu, pardais ao ninho. Embora, em geral, me esteja nas tintas para comentários verdes de raiva -- pois acho que, quem não gosta tem bom remédio, basta não ler o que escrevo -- a verdade é que, volta e meia, parece que me sinto reprimida avant la lettre.

Na verdade não sei se hoje estou assim pelo tema sobre o qual me apetece escrever ou se o ter lido uma notícia triste me deixou desconsolada. Vão desaparecendo as pessoas que, de uma maneira ou de outra, atravessaram a nossa vida. Este sábado foi um cronista que me acompanhou durante anos e me proporcionou belíssimos momentos de leitura, reflexão e gáudio. A minha mãe dizia-me que o meu tio, quando lá vai a casa, está o tempo todo a falar de pessoas conhecidas e de episódios passados e que, de vez em quando se esquece dos nomes e pergunta à minha mãe se se lembra. E que, por vezes, conclui que cada vez há menos vivos nesse grupo de quem fala. E a minha mãe disse-me: 'E é. Vão morrendo'. Fiquei sem saber o que responder porque isto é mesmo assim, a vida parece uma bateria que, apesar de várias recargas, um dia, inexoravelmente, chega ao fim e já não há recarga que lhe valha. Contudo, por muito que racionalmente se pense assim, a verdade é que deve dar muito medo quando se vê que os anos já estão a entrar naquela zona de risco em que, face à esperança média de vida, o que vier a mais já é ganho e em que se começa a sentir uma nostalgia antecipada por se saber que, muito provavelmente, já não se acompanhará a vida toda daqueles que amamos.

Mas, enfim, é o que é.

De resto, falar sobre isto, não é propriamente registo que me agrade.

Portanto, para trás das costas as angústias que, de quando em vez, tentam abeirar-se de mim -- e vou mas é contar aquilo que tinha em mente. Uma coisa boa.


Massagem.

A lista de opções é longa. Massagem só aos pés, outra só às costas, outra qualquer coisa linfática, outra muscular para desportistas (esta que ainda se divide em massagem de preparação ou para depois, para relaxar os músculos mais retesados depois da prova desportiva), outra de reiki, outra de aromaterapia, e várias outras. Perante tanta coisa que me parece boa e outras que desconheço e, por isso, me atraem, fico com dificuldade em escolher. Arrisquei: uma geral, se puder ser um misto de tudo isso, melhor, uma que me deixe descansada.

E lá fui à hora combinada. Já estava à minha espera. Talvez uns trinta e tal anos, quarente e poucos. Olhos verdes, sorriso doce. Toda de branco, descalça.

Despi-me, deitei-me de barriga para baixo, a cara no buraco que há na marquesa. Como habitualmente fui tapada com uma toalha que ia sendo puxada para deixar à vista a zona do corpo que estava a ser trabalhada.

Uma música conhecida que eu, estupidamente, não identifiquei.  Agora, ao escolher uma que se assemelhasse, foi em Lizst que pensei. Talvez. E, ao contrário do que é habitual, desta vez as cortinas para o exterior não estavam corridas. Contudo, dado o ângulo, nada se veria da rua, em especial dos barcos. Mas eu via o mar, os veleiros. Um sensação boa.

E, então, começou a espalhar-me óleo quente e perfumado. Fez, de facto, um pouco de tudo. Começou pelos pés e, logo ali, comecei a flutuar.

Depois foi subindo e vértebra a vértebra, músculo a músculo, foi descontraindo, amaciando. O ar perfumado, a música, a vista -- tudo perfeito. Mas tinha um plus: ela dançava enquanto fazia a massagem. Não tanto com os pés mas com os braços, com as mãos. Ao som da música, ela passava os braços e as mãos pelo meu corpo, ora energicamente, ora com suavidade. Dançava e o meu corpo era, ao mesmo tempo, o plateau e o seu instrumento musical.

Depois de barriga para cima. Uma toalha dobrada a fazer de almofada para a cabeça ficar mais alta. A mesma coisa. Mas aí, embora geralmente eu estivesse de olhos fechados, ia abrindo ao de leve para a ver. Ela nem me via a olhá-la, de tal forma estava concentrada na dança, na música, uma coisa extraordinária, os olhos praticamente fechados, as mãos quase como se tocando piano ou harpa.

Por fim, puxou de um banco com rodas, baixou a marquesa e colocou-se, sentada, atrás de mim. Nessa altura já eu estava toda coberta pela toalha. Puxou-a um pouco para baixo para deixar o colo à vista. E começou então uma massagem que abrangia os braços, os ombros, o pescoço, o colo, a nuca.

E, como será fácil imaginar, aconteceu aquilo que adivinham. Sou de sono fácil. Não durmo muitas horas mas o meu sono, quando caio na cama, é imediato e profundo. Idem, no carro, quando não sou eu que conduzo. Ou no sofá, se estou sem nada que fazer. Imagine-se ali, naquele ambiente, naquela situação de relax total.

Comecei, pois, a sentir que estava a passar para o lado de lá, já meio a dormir. Mas tentei evitar. Sobretudo, parecia-me um desperdício estar a levar uma massagem tão boa e deixar-me de dormir.

Mas ela avançou, massagem na cara, na testa, dos lados, nas maçãs do rosto, no queixo, depois na cabeça, devagar, devagar, com as duas mãos. E aí não teve jeito: caí mesmo num sono profundo. Apaguei.

Acordei momentos depois, não sei quanto tempo decorrido. Falando-me como quase em segredo e tocando-me na mão, pareceu-me ter recebido um subtil sinal de que devereia despertar. Devo ter aberto os olhos, estremunhada. Ela sorriu lá na língua dela que me pareceu ser de leste travestida de espanhol: 'Muito sono...?'

E eu, furiosa comigo mesma, que não era que o sono fosse muito... mas que a massagem era tão relaxante...

Ela sorriu, perguntou se eu tinha gostado.
Sessenta minutos de reiki, aromaterapia, massagem localizada e geral, dança ao som de piano... como não gostar? Pena mesmo é que durante os últimos minutos não tivesse dado por nada.

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E agora que já assistiram à minha sessão de massagem, caso estejam a sentir um certo apelo místico, queiram descer e assistir à refrega polemista que se avizinha. César das Neves desafia duas doutas vozes e afirma, contra todas as celeumas, que ele sabe, porque sabe, que Nossa Senhora apareceu mesmo, em pessoa, aos três pastorinhos

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A seguir à polémica entre Daniel Oliveira e João Miguel Tavares,
eis que agora é o 'Bastonário da Ordem dos Marianos Encartados', João César das Neves, a polemizar com o Pde. Anselmo Borges e com D. Carlos Azevedo.
E eu pergunto:
Mas, afinal, a Senhora veio ou não veio?





Apesar de afastada das tricas luso-domésticas, vou acompanhando ao de leve o que vai acontecendo. No news, good news
Uma vez, estava eu na Normandia, todas as televisões passavam imagens de Portugal a arder. A acrescer, na zona do Alentejo onde na altura a minha filha estava, os incêndios eram sucessivos e, no próprio lugar, houve um fogo, os sobreiros a arderem, os bombeiros sem mãos a medir, e ela e outros membros da família  a andarem de tractor a tentar conter o que parecia ser arrasador. E eu, lá longe, o coração nas mãos, assustada com tudo o que ia sabendo, pedindo-lhe que não se aproximasse do fogo e pedindo a todos os santinhos que acabassem as notícias sobre Portugal.
Portanto, quando estou afastada de casa, mesmo que relativamente perto, o que mais desejo é que não aconteça nada de especial, nem na família nem no País. E digo especial, logicamente referindo-me a coisas más. Coisas boas que venham, que chovam, que não parem.

Bem. Mas dizia eu que, tirando os tiros nos pés do láparo a que se seguem uns estalos bem dados pelo infatigável e ubíquo Marcelo -- o que já não é notícia -- quase nada digno de referência. 

A única coisa que me chamou a atenção foi a crónica deste sábado do Inteligente César das Neves, que o mostra armado em pastorinho e a confirmar que a Senhora veio mesmo, ao contrário do que alguns padres e bispos por aí andam a espalhar.


Concede, o Das Neves, e passo a citar:
"Em Fátima, ninguém tocou a Senhora, nem Ela comeu nada. Aliás, se tivesse corpo, toda a gente que ali estava a teria visto, e não apenas as três criancinhas. Tratou-se portanto de uma "visão", algo que se manifesta de forma não física e apenas a algumas pessoas. Esta distinção, usando a "linguagem exacta" e teológica, é muito interessante, mas, dita de forma apressada e sem explicação adequada, gera naturalmente dúvidas e confusões."
Mas, passando este pormenor, o 'Grão-Mestre da Grande Irmandade dos Marianos Convictos' atira-se aos teóricos apressados e imprudentes que por aí andam a dar cabo da tradição e do negócio e afirma a pés juntos que, 
"Que Nossa Senhora esteve realmente em Fátima sabemo-lo com segurança desde 1930, quando a autoridade competente, o senhor bispo de Leiria, decidiu "declarar como dignas de crédito as visões das crianças na Cova da Iria, freguesia de Fátima, desta diocese, nos dias 13 de maio a outubro de 1917" (carta pastoral de D. José Correia da Silva de 13 de Outubro de 1930)"
E, arreliado com os 'pormenores técnicos' que os dois ilustres membros da Igreja Católica, professor Anselmo Borges, da Universidade de Coimbra e padre da Sociedade Missionária Portuguesa. e Carlos Azevedo, bispo-delegado do Conselho Pontifício da Cultura no Vaticano e um dos mais respeitados historiadores portugueses da religião, andam a referir em entrevistas e crónicas, João César das Neves, afirma alto e bom som:
"Nestas entrevistas, e certamente mais vezes nos próximos dias, acontece aquilo que tem sido comum no fenómeno de Fátima desde o princípio: os especialistas tropeçam repetidamente nos obstáculos que eles mesmos criam, enquanto o povo simples e humilde vai directamente ao essencial, sem ligar às teorias. O essencial é que Nossa Senhora esteve e falou em Fátima. Tudo o resto nem precisa de ser dito, porque o povo, mesmo sem conhecer detalhes, sabe bem aquilo que Ela é e quer."
Nem mais. Pronto. Arrumou. 

Espero agora a réplica dos Padres e Bispos. Isto ainda vai aquecer.

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Para quem não acompanha a polémica, aconselho a leitura da crónica do Pde. Anselmo Borges 


O que eu penso sobre Fátima (1)

onde, às tantas, refere:
Assim, tratou-se de uma experiência religiosa à maneira de crianças e segundo esquemas e uma imagética hermenêutico-interpretativa situada no seu contexto. Não se pode esquecer que a experiência religiosa se dá sempre dentro de uma interpretação, de tal modo que há experiências religiosas melhores e piores ou menos boas. A daquelas crianças não foi das melhores, pois pode-se, por exemplo, perguntar: que mãe mostraria o inferno a crianças de 10, 9 e 7 anos? Os pastorinhos ficaram marcados negativamente e, de algum modo, com a vida tolhida. Ao mesmo tempo, e isso é admirável, tiveram uma imensa generosidade face à situação que viviam.(...)
Acrescente-se que aquele núcleo de experiência foi sendo submetido a arranjos e rearranjos ao longo do tempo, segundo novos esquemas interpretativos, no contexto de novas situações históricas e novos desenvolvimentos.(...)
E o Pde Anselmo Borges, que está numa de não deixar pedra sobre pedra, vai ainda mais longe e afirma:
Tudo o que é espiritual é da ordem espiritual. Por exemplo, na Anunciação, não apareceu empírico-objectivamente nenhum anjo a falar com Maria. O que ela teve foi uma experiência místico-religiosa interior. Isso é uma visão, no sentido técnico da palavra: uma percepção interior.(...)
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Recomendo também a leitura do artigo do Expresso:


Nossa Senhora não aprendeu português para falar com Lúcia”,


entrevista a Carlos Azevedo, bispo-delegado do Conselho Pontifício para a Cultura



da qual transcrevo uma pergunta/resposta:


Desde o principio que a Igreja é acusada de se aproveitar economicamente de Fátima.
Houve muitas apropriações. A política apropriou-se de Fátima quando descobriu que ali estava uma fonte de coesão nacional. O Estado Novo percebeu que importava estar do lado da nação. E, se o povo é crente... Acho que isso é uma apropriação. Depois, podemos dizer que há uma apropriação pastoral porque a Igreja valoriza Fátima como polo de dinamização pastoral e litúrgica, de todo o país. São apropriações. Apropriar-se de uma coisa que tem valor é natural. Não podemos criticar os políticos por serem inteligentes e perceberem que há ali uma realidade importante. Depois, podemos discutir se são coerentes com as medidas que praticam... Mas o mal são as manipulações, como os negócios e todo o jogo de interesses.

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As imagens são brincadeiras do designer gráfico japonês Shusaku Takaoka e estão aqui por alguma razão que Freud explicaria. Mas acho que não é preciso psicanálise para coisa tão óbvia. Qualquer um é capaz de perceber qual a liaison. Se é que a há.

Whoopi Goldberg empresta a sua graça ao momento, num trecho de Sister Act, justamente o "Oh Maria".

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E até já.
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sábado, abril 29, 2017

Lá vem o barquinho


A praia em dias assim, sem ninguém, fica mais bonita. É só natureza e toda para o nosso olhar. Nada nos distrai daquilo que queremos ver. As nuvens, o sol querendo romper por entre elas -- e claro que o sol não tem desses quereres, que o vento é que joga ao gato e ao rato com as nuvens. De vez em quanto um ribombar surdo. Trovões ao longe. 

E o cheiro da maresia.

E a descoberta do homem, pequeno e insignificante, quase igual às pedras junto às quais se move. E, ainda assim, mais relevante que eu porque se fez ver enquanto eu passo invisível, como se não existisse, sem que alguém saiba que ali vou (tirando o meu marido, tão invisível e insignificante quanto eu).




Depois as ervas douradas, ondulando freneticamente ao vento. E os desenhos dos veios da madeira dos troncos que protegem as arribas, e a maré vaza. E eu vou descobrindo ângulos novos para fotografar o mar, tornando a sua vastidão apenas numa estreita nesga azul, menos relevante que os desenhos da madeira macia do tronco.


Até que percebo que, ao fundo, na linha de horizonte, há um pequeno risquinho que se move. Vejo agora nas fotografias que o risquinho já lá estava, e eu, uma vez mais, sem o ver. É um navio grande, transporta certamente mercadorias, tem lá dentro várias pessoas, vale certamente muito dinheiro, é, não tenho dúvidas, muito importante para muita gente. E, no entanto, diluído na paisagem, é nada, um insignificante ponto que se move sobre as águas. 

Começo, então, a esperá-lo. Vem vindo, belo, azul junto à linha de água, branco em cima. Elegantes estes navios de grande porte. 

Já entrei algumas vezes em navios de grande dimensão. Penso que já falei nisso aqui mas há muito tempo. Isto passou-se numa minha outra vida.

Uma das vezes, sabia que ia estar à descarga um produto que se temia ser poluente e que a autarquia estava alerta. Era um cargueiro que traria umas seis ou sete mil toneladas desse material, já nem me lembro bem, talvez até mais. 

Pedi para assistir à descarga e pedi que me deixassem ir a bordo. Não foi fácil. Teve que haver permissões de vários intervenientes. Informaram-me que talvez fosse melhor usar máscara. Avisaram-me, sobretudo, que não era sítio para uma mulher. E não era, de facto. Nem para uma mulher, nem para um homem. 

Lamento não ter fotografado; mas talvez não fosse autorizada a isso.

Andei por escadas e pontes periclitantes. Mas vi. Homens minúsculos, lá em baixo: pareciam formigas no meio do pó. Uma imagem terrível de que jamais me esquecerei. 

Acho que, quando se assiste a uma coisa assim, fica-se inevitavelmente mais próxima dos outros. Estando eu distante do que se passava lá em baixo, protegida, mera observadora, senti-me próxima e devedora daquelas pessoas que trabalhavam num trabalho tão duro, tão atentatório da dignidade humana.


Numa outra vez, sabia que estava a chegar um navio que trazia um produto que, pelas suas características, era transportado em condições tais que o navio era uma autêntica fábrica. Tratava-se de um navio tanque que, se não estou em erro, trazia cerca de dez mil toneladas. Tinha ouvido várias vezes falar deste tipo de navios e tinha curiosidade em conhecer.

Uma vez mais, autorizações a serem tratadas com antecedência. Mas concedidas e, uma vez mais, surpresa por uma mulher querer ir a bordo conhecer aquele tipo de navio. Se há mundo verdadeiramente masculino, este é um deles. Desde os estivadores, aos tripulantes, a toda essa gente que se move neste mundo, este é um lugar onde as mulheres não entram. Pelo menos, na altura, era assim. Agora não sei mas presumo que pouco se tenha alterado.

O pior para mim, que tenho vertigens, são sempre as escadas. Um esforço de superação que tento ultrapassar sem dar parte de fraca, tanto mais que ninguém me obrigava, eu é que queria meter-me nestas aventuras. Várias pessoas me acompanhavam na visita. Pensei que pediriam a algum marinheiro-engenheiro que satisfizesse a curiosidade à madame de gostos excêntricos e que a coisa ficasse por aí. Não. Para meu espanto, disseram-me que o comandante estava à minha espera e me acompanharia na visita.

Nunca imaginei: uma coisa deveras impressionante, aquele navio. Uma complexidade enorme, tanto mais que tem que haver auto-suficiência, especialmente quando em mar alto. Engenharia pura e dura e de diversas especialidades. Mostrou-me o navio de ponta a ponta e, por onde eu passava, parecia haver alguém escalado para me dar todas as explicações.

O comandante era um cavalheiro russo, simpátivo e muito bem parecido. No fim, disse que gostava de me convidar a tomar um chá e que gostava de me apresentar a uma pessoa que estava muito curiosa em conhecer-me. Fiquei muito admirada. Disse-me, então, que era a sua mulher e explicou-me que ela por vezes o acompanhava nas viagens e que, para ela, era uma vida solitária. E, ao saber que uma outra mulher tinha querido visitar o navio, tinha ficado numa excitação. Respondi-lhe que gostaria muito de conhecê-la. Ele foi lá dentro e, passado um bocado, voltou com uma das mulheres mais surpreendentes que eu alguma vez vi ao vivo. 

Alta, louríssima, olhos azuis brilhantes de boneca, vestida como num filme dos anos cinquenta. Tinha o cabelo apanhado em cima, numa espécie de rolo artístico, vendo-se uma fitinha cor de rosa. Poderia ser uma aparição em kitsch. Mas era mais do que isso. Toda ela se tinha produzido com esmero mas parecia que se tinha enganado na era em que se situava. E, ao mesmo tempo, parecia de uma inocência inesperada numa mulher daquela idade. Não sei explicar bem. Tinha um vestido de tecido florido, tenho ideia que bordado, justo em cima, de cintura fina e totalmente rodado até ao joelho. De pele branca, aqueles olhos azuis, penteado surreal e cabelo muito louro, os lábios pintados de cor de rosa, as rosetas da cara ou com pó de arroz cor de rosa ou ela própria muito corada, uns brincos de princesa -- todo o conjunto era surreal, parecia uma boneca antiga, de porcelana, muito perfeita. E toda ela sorria. E o comandante, homem distinto, de repente parecia um menino grande todo orgulhoso por ter ali escondido um tesouro tão precioso.

Lembro-me que fiquei cerca de uma hora à conversa com eles, em especial com a senhora que era uma doçura, uma graça, um personagem de filme da Disney, uma princesa de um país inventado -- como se se tivessem encontrado pessoas de mundos distintos, ela e eu, de eras desfasadas no tempo.

E eu agora, quase sempre que vejo um destes grandes navios, que vem de longe, pequenino, um barquinho, e que depois, vindo, vindo, se mostra grande e imponente, lembro-me disto e penso que talvez lá dentro venha um comandante com a sua princesa encantada.


E depois, agora que o navio, grande, passou rumo ao porto, deixei-me ficar, de novo, a olhar as pedras da baixa-mar. Um pequeno ponto branco chamou a minha atenção. Se repararem na primeira fotografia, lá em cima, não apenas lá está, na linha de horizonte, o pequeno barquinho como, nas pedras, à esquerda, mais ou menos a meio, um minúsculo ponto branco. Com muita dificuldade consegui apanhá-lo com o zoom. Mas consegui. A imagem está desfocada. A ventania, a distância e a pequenez do alvo dificultaram, e muito, a operação. Mas aqui está, belo e alvo, o pequeo ponto de luz: uma ave de uma elegância impressionante. Não sei como se chama. Garça dos mares?


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Cherchez l'homme



Não faz mal o frio, o vento ou a chuva. É tudo tão bom quanto o aconchego do quarto ou a polifonia da esplanada coberta. Quando se está na predesposição de estar bem, não há meteorologia que meta a colher. Portanto, dia tranquilo, passeio, sossego, leituras.

À beira de água, ora sob uma ventania gelada, ora sob uma chuva miudinha, andámos observando os barcos, o movimento na baía, o pouco movimento dos veleiros ou iates. Um enorme que chegou despertou a minha atenção. Será barco de recreio, para transportar grupos? Vimos lá dentro uns três tripulantes, vestidos de igual, elegantes, aparentemente escolhidos a dedo. Pareciam modelos Dolce & Gabanna. O meu marido diz que não, acha que é barco individual. Maior que uma moradia grande. 

Como sempre, entretive-me a fotografar. Não é fácil com o tempo assim pois a lente fica molhada, o vento faz deslocar o foco, se me abrigo debaixo do chapéu de chuva, o vento fá-lo tapar-me a visão. Mas também não faz mal. Faz parte dos ossos do ofício.

A maré estava vazia e eu fotografava as pequenas pedras cobertas de limos, a cor da água que ia variando consoante vinha o sol ou desatava a chover.

Até que o meu marido me chamou a atenção para um minúsculo vulto que se mexia, lá em baixo, por entre as pedras.

Apertei o zoom, esperei que o vento deixasse, foquei. E lá estava. Um homem. De repente, o centro da minha atenção e, até momentos antes, invisível, irrelevante. Se repararem na primeira fotografia, já lá está ele. Assim somos todos, invisíveis, irrelevantes para quem não nos presta atenção. E assim vamos nós passando pela vida, não vendo praticamente nada do que há para ver.

Não é crítica nem lamento, apenas uma constatação.


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E um sábado muito bom para todos.

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sexta-feira, abril 28, 2017

Uma ventania que tira os marinheiros do mar



Hoje acordámos mais cedo. Dentro do quarto não se imagina a música sinfónica que vem da marina. Indo-se à varanda, e que frio e que vendaval!, ouve-se o chocalhar de amarras, dos mastros, das bandeiras dos barcos, o vento nas árvores, mil sons. O mar está mais verde, encolhido de frio.

Só hoje reparámos que da marina há acesso directo ao restaurante do hotel. Estavam lá homens com grandes corta-ventos, casacos fortes para os proteger dos ventos no mar. Tisnados, um deles de grande barba branca, alguns de boné. Tinham vindo tomar o pequeno almoço a terra.

Já fizemos a nossa caminhada, hoje também fui. Quatro ou cinco quilómetros debaixo de um vento frio, por vezes molhado. O meu marido aborrece-se comigo, diz que venho sempre carregada de blusas e blusinhas, echarpes e outras mariquices (e, claro está, que não é 'mariquices' que ele diz) mas que roupa quente ou para a chuva está quieto. Não percebe que o meu termostato não é igual ao dele. Cheguei com um calor dos diabos.

E claro que foi andando mais à frente que eu ia-me ficando para fotografar. Do outro lado da baía, Cádis onde ontem passámos o dia.


Reparem nas árvores para verem o vento.

E agora me vou que o meu dia está a começar. Até mais logo.


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De dia, sol e calor.
Uma varanda imensa sobre o mar, paquetes que parecem bairos, pátios andaluzes, esculturas.
[Agora, vento e chuva. Mau tempo para sair para o mar]




Os paquetes que aqui aportam são de uma dimensão inacreditável. Mostro, acima, um deles e mostro-o segundo aquela perspectiva, que não será a mais explícita, apenas para que se perceba qual a escala. E continua, pois, como dá para ver, a fotografia não o apanhou inteiro, falta a parte da frente. Parece um mega prédio a ocupar um big quarteirão.

Presumo que parte dos viajantes estivesse em terra pois, em várias varandas, estavam homens a limpá-las. Tirei uma fotografia que, ao vê-la agora (e nem a partilho aqui), me impressiona bastante. Um homem, jovem, talvez indiano, talvez paquistanês, não sei, segura uma mangueira para lavar a varanda que é toda de vidro (ou acrílico, com certeza). Cá de longe, no passeio, eu fiz zoom a uma das varandas, para ver melhor o que eles andavam a fazer, e, agora, parece que ele, lá de cima, também me está a olhar. Tem um ar muito sério e parece fixar-me. 

Trabalhar num barco não deve ser coisa fácil. Provavelmente quase não conseguem vir a terra pois, ao contrário do que eu pensaria -- que, quando os navios aportam, é descanso quase generalizado --, se calhar aproveitam para fazer trabalhos que, com os hóspedes a bordo, não podem ser feitos.

Tem que haver quem exerça todas as profissões e, se for de gosto e bem remunerado, este trabalho, em especial se permitir conhecer os países onde os navios atracam, deve ter bastantes atractivos. Mas pode também ser uma quase tortura, uma prisão (e isto apesar das câmaras de descompressão onde se possa ouvir Bach e Albinoni e zelar pela manutenção da boa forma).

Enfim. Não sei.


Andámos junto à baía. Já aqui tínhamos estado e tínhamos guardado a memória de um longo varandim junto a umas muralhas, rente ao mar.

Há lugares onde sempre apetece voltar -- e este é um deles. Estar junto a uma destas árvores gigantes, sentir o tempo a mover-se muito lentamente, ouvir a conversa solta de quem passa, deixar que a nossa serenidade acompanhe o voo deslizante das gaivotas, sentir o perfume das árvores a cruzar-se com o da maresia, é muito, muito bom.


Fizemos o percurso de ponta a ponta, vindos do porto. Agora à noite o meu marido disse que tenho a cara e o peito bronzeados. Ou é ilusão de óptica ou foi do solinho bom que apanhei enquanto passeava por aqui, fazendo fotografias, olhando o mar, açambarcando azul para os dias em que vivo fechada, de manhã à noite, numa torre transparente, toda de vidro mas onde as janelas não abrem, nem chegam sons ou perfumes de árvores.

De vez em quando, o sol descobria e vinha com força. Tinha levado uma blusinha de manga curta e, para o caso de esfriar, o poncho de renda aberta, em linha de cor crua, que a minha mãe me fez e que sendo aparentemente inútil, na verdade transmite um conforto (e isto para não dizer agasalho -- que o meu marido, quando me pergunta se não levo nada para o caso de arrefecer e lhe digo que levo o poncho, até se passa, acha aquilo uma anedota). Mas até tive que o tirar pois, até princípio da tarde, o calor era muito.

[Agora, enquanto escrevo, ouço a chuva a cair com força e ouço o vento a fazê-la bater ainda mais ruidosamente na varanda. Lá em baixo os barcos devem estar agitados. Se não fosse tão tarde e não tivesse receio de acordar o meu marido, enchia-me de coragem e ia ali espreitar o mar. Mas é melhor não, senão é que ele se passa comigo].
De resto, não é por ser tarde, é também que não quero maçar-vos mais, que me fico por aqui. Mas, antes de apagar a luz, deixem ainda que vos mostre mais duas coisas. Uma é uma das imagens de marca da Andaluzia: os pátios. Por onde vou andando, vou espreitando. São uma maravilha. Escolho este porque o cromatismo dos azulejos, o portão de ferro rendilhado, a porta de madeira ao fundo, tudo me parece de uma elegância feliz. Terá, ao meio, uma laranjeira? 


E a outra coisa que vos quero mostrar é um monumento. Há muitas esculturas por aqui, desde as religiosas, às comemorativas, às que recordam cidadãos ilustres, às alusivas às tradições, passando pela fantástica estátua das Cortes com a belísssima figura feminina representando a Constituição. Mas a que escolho para aqui partilhar convosco é uma muito simples. É feita em aço e em bronze e, incluindo a base, mede sete metros e meio. É dedicada à liberdade de expressão e, pelo seu formato inesperado e pela sua aparente singeleza, não passa despercebida. 

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E, por agora, por aqui me fico. 
O vento sopra agora ainda com mais força. Mau tempo para quem anda no mar.

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E queiram descer para um petisco invulgar. Bem, não é bem o petisco que é invulgar: é mais a forma onde e como é servido.

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Não experimentei mas que tinha muita saída, lá isso tinha



Por aqui o peixe e o marisco são omnipresentes. Bons. A bom preço. Variados. Bem confeccionados.

Mas ver uma mini-mini banca com marisco no meio da rua, marisco retirado de um balde, e vê-lo entre as esplanadas -- e chegarem as pessoas com garrafas de cerveja na mão e virem buscar ostras cruas ou pequenos camarões e ali mesmo, ou nas escadarias da igreja ou junto ao fontanário, fazerem o alegre repasto, isto acho o máximo.

Como poderão observar os camarões são aviados em pequenos cones de papel e as ostras servidas em pequenos pratos de plástico com um bocado de limão.

E isto, como disse, no meio de esplanadas repletas de gente.


Como podem ver, estava sol, calor. Para o meio da tarde começaram a cair uns pingos. À noite já chovia que deus a dava. 

Mas, enquanto o tempo o permitiu, as praças estavam assim perto da hora de almoço. Aliás, quando não é hora de almoço, é hora do café ou da cerveja da tarde, depois é hora de picar e estar na amizade e depois é hora de confraternizar. Os lugares virados para os mares do sul são assim, bons para se estar.

E, por dios, se por aqui as tapitas são de comer e chorar por mais... e a cerveja loira, quase doce e bem gelada. Pena que sejam tão breves estes dias.

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La vida breve

de Manuel de Falla com Lucero Tena nas castanholas

Olé!

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Até já.

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quinta-feira, abril 27, 2017

Amanhecer a sul



Amanheceu um dia de primavera, céu com abertas, a aragem fresca, um pouco de sol. O meu marido, queixando-se amargamente do fraco ritmo das minhas caminhadas quando em lugares assim, em que não consigo deixar de parar para fotografar, foi andar sozinho. Daqui a nada chega e teremos o dia inteiro para andar à descoberta.

Já antes aqui tínhamos estado, não exactamente neste meu sítio, mas por estas bandas. Mas, de cada vez que se vem a um lugar, descobrem-se coisas novas, os lugares também mudam, e é diferente ser agora ou no verão, em que as pessoas são a parte dominante da paisagem. Agora não, agora é o mar, as casas, as ruas junto aos braços de rio, as baías, os barcos.

Estou na varanda. Espreito o mar, os veleiros aportados, as velas enroladas. Aspiro o ar fresco carregado de maresia.


Há um silêncio bom. Só, de quando em vez, ele é interrompido por um leve batucar, alguma obra ao longe. E os pássaros. Não gaivotas mas passarinhos que cantam. Esteve aqui um pousado na varanda, sem me ver, eu imóvel a vê-lo.

Estive a ler. Fui fazendo pequenas dobras, ao de leve, nas páginas em que algum trecho mais me cativou. Agora, ao estar aqui, fui rever para transcrever o que me parecesse mais a propósito. Mas não transcrevo nada. Noutra ocasião, talvez. As palavras parecem transportar muita solidão e tristeza e aqui pareceriam deslocadas.

Numa página, a autora fala das mulheres que, na sua infância, via a bordarem em bastidores, o linho esticado, a linha entrando e saindo, deixando suaves bordados. Já bordei muito em bastidor e conheço a sensação boa. Mas as palavras dela trazem a solidão das mulheres que assim ocupavam o seu tempo perdido. E eu hoje não me revejo nessas palavras, não poderia colocá-las aqui apesar da beleza com que ela as urdiu. 

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Pronto. O meu marido chegou e eu vou parar de escrever. Até mais logo.

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PS: Já dei uma volta pelos jornais e, do que vi, nada de novo a oeste. Uma ou outra notícia sem graça, uma ou outra trica entre cronistas. Nem me dei ao trabalho de ler isso das tricas porque um deles é um por quem não tenho apreço nem me parece que mereça atenção ou, mesmo, muito respeito já que ele próprio não se sabe dar ao respeito e tem uma credibilidade que, se não é nula, para lá caminha: o João Miguel Tavares. Portanto, meus Caros, vou ali e já volto.

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O fascínio dos mares do sul




E, então, o sul. Desta vez, mais a sul. Houvesse tempo e iria ainda mais, rumo aos mares do sul, mais a sul, o mais possível a sul.

O sul. O sonho do sul.

As gaivotas que voam alto e gritam, o azul. O imenso mar. As aragens do mar. O perfume das árvores que ondulam com os suaves ventos dos mares a sul. Este não é o sul dos verdadeiros mares do sul mas, até onde os olhos alcançam, há mais sul, daqui podia ir até lá, aos mares do sul. Um dia hei-de ir, devagar, debruçada no convés, aspirando a maresia, sentindo as neblinas, espreitando o mar sem fim, no fim dos mares, lá bem a sul.


Os veleiros, os grandes paquetes que se fazem ao mar. Eu daqui, olhando o brilho das águas, olhando o porte majestoso destes grandes paquetes, com vontade que alguém de lá me dissesse adeus, lenço branco acenando ao vento, como nos filmes. Eu, mão em pala rente aos olhos, tapando o sol, tentando descobrir a mão acenando, dizendo eu também adeus.

Da varanda vejo os barcos, estou que tempos a vê-los partir. Tenho comigo um livro, vou lendo com desatenção, sempre à espera que mais um navio saia em direcção ao mar. O livro é um diário e estou a gostar mas a paisagem atrai o meu olhar e eu não consigo resistir.


Andando pelas margens, vejo casais conversando rente ao mar. Imaginarão talvez o futuro. E vejo, de vez em quando algum solitário, sobre uma rocha, olhando a distância. Junto ao porto, vejo homens tisnados que discutem arranjos ou a preparação de viagens, que se sentam com a cerveja na mão a olhar o céu, tomando o pulso aos ventos.


Passeio pelas arribas de onde se alcança o pequeno e colorido povoado que parece flutuar, a cidade branca lá mais ao fundo, Caminhamos ao sol, pelos caminhos que os homens desenharam junto ao mar. Por todo o lado os cheiros, a suavidade da aragem perfumada, a brisa que é fresca à sombra, quente ao sol, o grito das gaivotas.

Mais à noitinha, vamos até ao pueblito. Não é verão, as multidões ainda estão distantes. Agora as ruas têm pouca gente. é bom andar por aqui assim, olhando as casas, os pátios, ouvindo as vozes de quem passa. Sentamo-nos, petiscamos, o pescado sabe a mar, é fresco e bom, conversamos.

Ao fundo, umas mesas com grupos animados onde conversam, riem, e onde um jovem circula entre os convivas, com uns falando em inglês. Vão petiscando e bebendo cervejas enquanto estão naquilo. Chegam mais duas mulheres, talvez da minha idade, vêm alegres, cumprimentando de longe. O empregado dá-lhes dois cálices, que elas levam para as mesas. A animação ali é ruidosa. Vendo-me intrigada, o empregado diz-me: 'Trivial'. Como devo fazer uma cara ainda mais intrigada, ele acrescenta: 'Trivial Pursuit'. Percebo. Encontram-se ali, à noitinha, para jogarem ao trivial.


Regressamos já bem de noite. Faço os meus telefonemas, sei da minha gente, vejo o correio, olho as luzes do porto. Vejo as fotografias feitam durante o dia, escolho uma música para aqui colocar e, de gosto, vou ouvindo várias. Opto por esta que talvez estejam a ouvir, Melodia de Manuel de Falla (1897), com Menchu Mendizábal no piano e Emilio Mateu na guitarra.

Amanhã o passeio levar-nos-á ainda um pouco mais a sul. A cal, o sal, o sol, a sul. O tempo vai arrefecer e talvez molhar-se mas não faz mal. Quase prefiro o tempo assim, o tempo de todos os dias, do que o tempo quente do turismo que tantas vezes desvirtua a beleza e a tranquilidade de lugares como este.


E talvez arranje coragem para ir apanhar um figo de pita. Estão desta cor, como os vêem, quase iridescentes ao sol. Não sei se são bons. Gostava que estivessem porque me apetece deliciar-me com um fruto assim, com uma casca desta cor, um fruto nativo, criado com o cheiro da maresia, crestado pelo sol e pelos ventos que vêm do sul. Depois vos conto.

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Ode ao Mar de Pablo Neruda, dito por Tomás Galindo

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Talvez até já
(se o sono não me vencer ou eu não for obrigada a apagar a luz - que lhe reduzi a intensidade... fraquinha, fraquinha, mas, ainda assim, pode incomodar).

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quarta-feira, abril 26, 2017

Desenha-me





Desenha-me. Olha para mim e vê o que se esconde debaixo da minha pele. Olha os meus olhos. Vê se há lagos dentro de mim. Se os descobrires, percorre as minhas margens, mergulha nas minhas águas. Olha o vagar com que as minhas pálpebras se movem, as pestanas. Olha-as. São, talvez, ramos que as árvores que se debruçam nas margens entregam para que as encontres, os meus braços chamando por ti. Olha para mim de outra maneira. Cobre-me de verde. Vê se há em mim montanhas imensas, mistérios silenciosos, o aconchego dos leopardos, varandins, mares, lonjuras, horizontes só teus. Espreita bem. Descobre-me.

Desenha-me. A minha boca. Olha bem para ela. Passa os teus dedos devagar nos meus lábios. Sente a pele, sente a macieza vermelha e húmida que se esconde do olhar esperando que os teus dedos ou os teus lábios ou a tua língua a procurem. Olha como os meus lábios se abrem com o riso, como se mordem com a impaciência da espera. Sente o meu sabor.

Desenha-me. Afasta o cabelo da minha testa, olha-me bem. Afasta o cabelo do meu pescoço. Observa a curva da nuca. Vê como o sol se refecte na minha pele. Aproxima-te. Vê a tua sombra em mim. Olha como deixo que te aproximes. Toca a minha pele. Passa a tua mão pelo meu braço, pelas minhas costas, pelos meus seios, pela curva do meu ventre. Baixa-te. Espreita-me. 

Desenha-me. Fala devagar palavras que venham de dentro de ti, inventa palavras para mim. Olha-me nos olhos, toca-me, cobre-me com a música do teu olhar, cobre-me com a doce toada das tuas palavras. Olha como fecho os meus olhos para melhor sentir a tua presença. Chega-te a mim. Cheira-me. Diz que cheiro a erva fresca, a laranjas, à aragem que faz dançar os pinheiros, ao fundo do mar. Cobre-me com o perfume das flores, com o canto dos pássaros, com o calor do teu corpo.

Desenha-me. Diz-me que sabes de mim o que eu não sei, inventa-me, pinta-me de azul ou de mar ou de cor de fogo e depois deixa que a luz da tarde tinja os meus cabelos, deixa que se saiba que arde em mim a chama da saudade, ah como me arde esta saudade, deixa que as palavras voem em volta de mim e da tua mão que me pinta, deixa à vista de todos o pássaro inventado que em mim canta e grita e, como um louco, ri sem parar, deixa à vista o meu coração que não sabe esconder-se ou parar de sonhar. Diz-me. Diz-me devagar o que sabes de mim, diz-me devagar que me queres.

Diz-me. Conta-me como me vês. Desenha-me. Com cores. Apenas com traços. Apenas com palavras.

Ou não.

Deixa. Não digas nada. Não faças nada. Não me desenhes.
(Eu já sei como me vês).

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É assim

Tilda Swinton diz 'Like This' de 'The Essential Rumi' 


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Hung in Time: John Berger desenha Tilda Swinton



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As imagens mostram trabalhos respectivamente de John William Waterhouse e Leonardo da Vinci

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E aceitem o meu convite e queiram continuar a descer

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Hugo Soares e João Almeida, a geração rançosa que não consegue tirar o sarro pafioso que se lhes colou à pele.
E a companhia que procuro para limpar o espírito: John Berger, Michael Ondaatje


John Berger, “Ways of Seeing”

No vídeo abaixo, John Berger conversa com Michael Ondaatje e o que eu gosto de ouvir falar assim. Podia passar dias a ouvir falar pessoas como eles. Quanto mais a poluição me cerca, mais eu preciso de me isolar junto de quem usa palavras limpas.

Talvez o mal esteja em mim que não sei fugir para onde não se ouçam os comentadores e os deputados descarados ou os homens e mulheres dos aparelhos partidários velhos e relhos. De vez em quando distraio-me e dou por mim, sem querer, a ver na televisão gente como um tal Hugo Soares do PSD que, qual Kardashian da política, é conhecido por ser conhecido (e tem como currículo o ser do aparelho do PSD e aparecer a dizer coisas que não significam nada ou que, desinspiradamente, tentam reescrever a história) ou o João Almeida do CDS que, por mais barba que deixe crescer, nunca perde o ar de bebé chorão que não tem um uma ideia fresca naquela cabeça.


Cansa-me tanta falta de qualidade. Cansa-me a Cristas que não tem vergonha e tenta desesperadamente falar por parangonas, cansa-me a Leal ao Coelho que é um dos poucos animais sem vida que o PSD ainda arrasta juntamente com um póstumo Passos Coelho, cansa-me toda essa gente que não percebe que não acrescenta nada, que deslustra a política.

Por isso, agora, a ver se me animo, tenho estado entretida a ouvir gente inteligente. É tão bom ouvir ou ler as palavras de gente inteligente. 

Deixem que partilhe convosco.

John Berger conversa com Michael Ondaatje


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Michael Ondaatje: a música nas palavras



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O discurso de Marcelo já foi analisado, virado do avesso, esventrado, olhado de cima, de baixo, de lado.
Esta mania dos omnicomentadores na televisão é uma autêntica lavagem ao cérebro dos espectadores.
Não há pachorra para isto.


Durante o bocado em que tivemos a televisão ligada nas estações portuguesas, não há explicação para a quantidade de gente que pelos balcões dos canais já passou a esventrar os discursos do Marcelo e a dissertar sobre as reacções deste, daquele e do outro. Não consigo perceber esta moda. Será que ganham audiências? Alguém tem interesse em saber o que é que o Ricardo Costa acha do discurso do Marcelo? Não deveria ele limitar-se às funções que desempenha? O que mais se pode esperar dos jornalistas é que saibam relatar os acontecimentos com imparcialidade. Mas não: parece que agora os jornalistas, especialmente os que ocupam ou ocuparam lugares de direcção, acham que devem fazer presenças como comentadores. Com as raivinhas e os ódios e paixões de estimação que acabamos por lhes conhecer, conseguem que passemos a ter muitas dúvidas quanto à sua capacidade de fazer alinhamentos noticiosos imparciais.

Uma lástima, isto.

Ou é futebol a torto e a direito, comentários futebolísticos e parafutebolísticos a cargo de trogloditas, gente bizarra, intelectuais frustrados ou gente que vai para ali destilar taras e frustrações, ou é isto. Jornalistas, directores de canais de TV, rádios ou jornais, deputados, ex-ministros e o que venha à rede a comentar tudo o que mexe. 

Esvaziam a cabeça dos telespectadores, cansam, enjoam, enfadam. Nunca soube que as overdoses fizessem bem a alguém mas, por algum motivo que me escapa, as televisões portuguesas apostam nisso.

Eu, pela parte que me toca, agora estou a ver o Colbert. 

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terça-feira, abril 25, 2017

25 de Abril -- ou o fim das memórias





Eu gostava de ser capaz de escrever qualquer coisa nas o sono vence-me. Há umas horas, pus-me a gravar o que os meninos diziam. Pedi ao que até dois meses e picos era o mais novo que fosse falando normalmente. Começou a dizer que estava a contar as notícias e desatou a dizer nomes de jogadores de futebol. No meio, disse que no dia 25 de Abril ia comer um bolo. Perguntei-lhe quem é que ia fazer o bolo. Respondeu-me que era o chinês. Qual chinês? Disse que na pastelaria devia haver um chinês. E prosseguia, dizendo que estava cá em casa e depois acrescentava, referindo-se a mim, que 'ela ainda está viva, nem desmaiou nem nada' e prosseguia a conversa na maior naturalidade. 

Tem esta preocupação com o fim da vida. No outro dia perguntou-me quando é que o avô velhote morre. Outra vez perguntou o que é que tinha acontecido à nossa cadela, que ele não chegou a conhecer, se a tínhamos enterrado. Um dos primos perguntou, noutra vez, se depois das pessoas morrerem, ficam instantaneamente transformadas em esqueleto. Para dizer a verdade, também é tema que me incomoda um bocado e, portanto, não aprofundo, tento que levem na naturalidade mas depois fico a pensar que tenho pena que eles tenham presente isto de a vida ser finita e de que, um dia, nos despedimos daqueles que amamos.

Quando foi o meu 25 de Abril ainda eram vivos os meus avós, com excepção do meu avô materno que morreu num acidente quando eu era pequena. Também viviam dois dos meus tios. Nessa altura eu estava ainda longe de conhecer o meu marido mas estava viva grande parte da família dele pois foram ao nosso casamento, anos mais tarde. Agora também já desapareceram quase todos. 

Perguntei aos meninos se sabiam o que era o 25 de Abril. Disseram que tinha sido uma guerra mas a menina logo acrescentou que não era, não, porque tinham usado cravos e não armas. Ele dizia que os maus se 'renderem' e foram para casa. Eu perguntei-lhes porque é que eles eram maus. Não sabiam. Disse-lhes que eram maus porque não deixavam a pessoas serem livres.

Mas, para quem nunca conheceu a falta de liberdade, não deve ser fácil perceber o que é não ser livre. Muito menos para uma criança toda e só inocência.

Quando daqui por algum tempo poucos restarem dos que viveram antes do 25 de Abril de 74, como manter viva a chama da liberdade? Quando não restarem nem os que fizeram a guerra do 'ultramar' nem os seus filhos se lembrarem do pouco que eles contaram, como explicar a estupidez de tal guerra e a estupidez dos que a impuseram?

Se eu não estivesse tão cheia de sono, talvez conseguisse escrever alguma coisa que fizesse mais sentido do que isto. Gostava de falar de como nunca consegui que colaboradores meus que fizeram a guerra (entretanto já reformados) alguma vez contassem aquilo por que passaram. Apenas um me disse que o outro tinha estado vários dias numa vala só com mortos até que o fossem resgatar. Nunca consegui. Um disse-me, para se justificar, que ninguém se orgulha do que fez na guerra e que não fizesse eu mais perguntas, que preferiam não falar nisso, esquecer. Era e é um homem bom.

Gostava de falar dos que, quando eu era pequena, sabia que chegavam estropiados ou passados. Um dos irmãos de uma das minhas tias voltou assim, não dormia, tinha pesadelos, ficava agressivo. A minha tia dizia 'voltou maluco'.

Também já o contei: um dos desgostos da minha avó materna era que o irmão que tinha vivido toda a vida entre prisões, degredos e clandestinidades não tivesse chegado vivo ao 25 de Abril. Morreu pouco tempo antes. Penso que essa minha avó votava no PCP por causa do irmão. Mas nunca lhe perguntámos. O meu tio é que dizia que achava que a mãe era comunista. Mas ela nunca se pronunciou. Que era de esquerda, isso acho que sim. Nem ela nem o filho cá estão para o dizerem. 

Também já o contei: quando morreu, no meio da papelada descobrimos coisas com piada. Uma é que era mais nova do que dizia. Andámos a vida inteira a festejar o seu aniversário na data errada e o número de anos errados. Não quis que soubéssemos que tinha tido a minha mãe quando ainda era menor. Sabíamos que tinha tido uma paixão pelo que viria a ser o meu avô. Muito bonita, olhos com laivos de verde, cabelo escuro, apaixonou-se perdidamente por aquele rapaz alto, louríssimo e de olhos muito azuis. A minha mãe, quando viu a certidão de nascimento dela, abanou a cabeça e disse: 'Olha... a magana...' e pronto, mais nada, não valia a pena dizer mais nada. A outra coisa engraçada era a correspondência da mãe dela, minha bisavó, com os primos algarvios, entre os quais se contava o primo Teixeira Gomes. A letra perfeita, o humor com que escreviam, a forma versejada com que parodiavam os acontecimentos, era surpreendente. Só descobrimos aquela correspondência quando morreu. Agora não sei se foi a minha mãe que ficou com aquilo ou se foi o meu tio. Se foi ele, como já morreu, temo que tudo se tenha perdido. Os meus primos são completamente desligados dessas coisas. 

As memórias perdem-se. É um dos lados tristes da vida.

Um dos tios do meu marido tinha uma grande biblioteca. Percorria alfarrabistas. Tinha primeiras edições, edições raras. Protegia alguns livros com capas de papel vegetal. Era muito cioso de todos aqueles seus livros. Tudo bem arrumado. Primeiro morreu a mulher dele, depois ele, depois a irmã dela que morava com eles. Havia tantas coisas maravilhosas, acumuladas ao longo da vida por três pessoas com bom gosto, amantes da cultura. Decidiram que as coisas haveriam de ficar para os sobrinhos. O processo de 'desmanchar' aquela casa enorme, repleta de coisas, foi um castigo para todos. Por fim, estavam todos saturados, já aborrecidos uns com os outros porque andavam a ritmos diferentes e tenham interesses diferentes. Os livros foram separados a eito, por sacos, colecções separadas, sacos enormes, livros e mais livros. No meio da confusão final que foi aquilo, fins de semana enfiados naquela casa museu, já ninguém queria saber de mais nada senão livrar-se daquilo tudo. O que me custou ver o triste fim daquilo tudo. O meu marido acabou por nem ficar com livros nenhuns porque já nem conseguia pensar em voltar lá e os ânimos entre eles já estavam em ponto de rebuçado. 

Uma vida inteira que acaba assim, provocando impaciência nos que cá ficam. Pelo 25 de Abril esses tios saíam à rua, eram amantes da liberdade, da liberdade de expressão, falavam dos presos de Caxias, falavam da censura. Tinham livros que, antes, tinham sido proibidos. Não faço ideia do paradeiro desses livros.

Claro que isto não é coisa que se escreva.

Mas passa das duas da manhã e eu não consigo pensar, estou um bocado cansada.

Para além do mais, qualquer dia já nem faz sentido falar disto, parece tudo tão remoto, tão improvável. Torna-se, até, motivo de chacota para alguns, como se fossem episódios datados, vintage, coisa do canal Memória, histórias que já não interessam nem ao menino jesus.

Por isso, não vou escrever mais nada. Cansada como estou, não consigo perceber qual seria o tom certo para aqui escrever aluma coisa sobre o 25 de Abri.


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Mas que viva a liberdade. Sempre. E a democracia.

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