Mostrar mensagens com a etiqueta Oliver Sacks. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Oliver Sacks. Mostrar todas as mensagens

domingo, maio 08, 2016

Os mistérios dentro de nós
[E as palavras, os números e a música no nosso cérebro]




Por vezes espanto-me com o que me parece ser a burrice alheia. Pergunto-me como é possível a pessoa parecer normal, falar bem, andar bem e, afinal, ser tão troca-tintas, tão desmemoriado, tão trapalhão, tão destituído, tão burro.

Outras vezes espanto-me com o que me parece ser a parvoíce alheia. Pergunto-me como é possível a pessoa parecer normal, ter imensos conhecimentos, uma memória articulada e oportuna, ter bom gosto e, depois, ser tão estúpida, tão mal educada, tão boçal, tão irremediavelmente insuportável.

Está a explicação para isto no cérebro das pessoas? Fazendo um varrimento a todos os recantos dos seus cérebros encontrar-se-ão as explicações para estas maneiras de ser? Será que, ao mapear todas as regiões do cérebro de um mentiroso compulsivo ou de um ressabiado crónico, se detecta que há diferenças consideráveis em relação ao cérebro de uma pessoa normal, bem formada?

Ou os cérebros, estaticamente falando, são idênticos e o que difere é a forma como as ligações se estabelecem?

Antes do meu pai ter o AVC extenso e profundo que o deixou como está, teve dois ligeiros e vários AIT's que apenas posteriormente relacionámos com pequenos estranhos eventos que não tínhamos valorizado. 

No primeiro dos dois ligeiros não conseguia falar, parecia que tinha a fala entaramelada, queria falar e custava-lhe mas achava que isso se devia a ter dormido mal. Foi para a rua andar a ver se refrescava, sentia-se melhor a andar. Mas quem o viu percebeu que alguma coisa não estava bem. A minha mãe queria que ele fosse ao hospital mas não queria. Então ligou para o irmão dele e foi ele que o convenceu a ir ao hospital. Quando lá chegou já estava bem mas ficou em observação. Saíu no dia seguinte, pelo seu pé, como se nada se tivesse passado, despreocupado em relação ao que se tinha passado.

Na segunda vez, naquela vez em que por sorte não tiveram um acidente, já que ficou com a perna presa, o pé sobre a embraiagem, só que estava a estacionar e o carro dali não saíu. Depois acho que foi a conduzir para o hospital e deve ter ido porque a minha mãe apanhou um tremendo susto. Saíu também bem mas com uma coisa estranha: não reconhecia números. Olhava para o relógio e não conseguia perceber que horas eram. Nem sabia dizer os números. Aquilo fez-me muita impressão. Contudo, aos poucos, foi recuperando. A minha mãe ensinava-o como se ele fosse um seu aluno. E ele foi progredindo e gostando - aliás sempre foi bom a matemática. Depois já sabia os números e começou a fazer as operações simples, adições, depois subtrações. Depois aprendeu a tabuada. Gostava. E gostava de relatar os seus progressos. Por fim, já fazia coisas complicadas sozinho. Já nem a minha mãe se lembrava e lembrava-se ele. Aliás, quase que nem eu. Punha-se a fazer, à mão, raízes quadradas complicadas. Já as fazia nas calmas.

E, portanto, recuperava, ficava normal, nem mais nos lembrávamos do que tinha acontecido. Não sei se era a zona lesionada que se regenerava se era outra zona do cérebro que assumia as funções da que tinha ficado inutilizada.

O médico queria que ele tomasse Varfin mas ele não quis, achava que aquilo tinham sido epifenómenos que não se repetiriam.  

Já o contei mas, por ser tão extraordinário, conto de novo. Uma vez, falando com um médico amigo e relatando-lhe isto de o meu pai ter perdido o conhecimento dos números, ele contou que uma tia, quando acordou de um AVC, só falava em espanhol. Nunca antes tinha falado em espanhol. Apenas em pequena tinha tido contacto com alguém espanhol, já não me lembro se seria uma empregada. Depois, com o tempo, voltou ao normal, isto é, a falar em português.


Também já o contei aqui, às tantas torno-me uma repetitiva maçadora. Mas permitam que reincida. Neste último AVC que o meu pai sofreu, em que perdeu metade do campo visual e parte da mobilidade de um dos lados do corpo, perdeu também uma coisa curiosa: a orientação espacial de proximidade. Lembra-se de como se vai para todo o lado, para o mercado, onde se pode deixar o carro, qual a farmácia mais próxima da paragem do autocarro, o estádio de futebol, o pavilhão desportivo, tudo. Mas, em casa, não sabe de que lado é a porta do quarto, qual a direcção da casa de banho ou a porta da rua. Aliás, quando ainda andava -- a custo, mas andava - uma vez arranjou um sarilho dos grandes pois, vindo da varanda, encadeado pela luz e baralhado com a direcção, entrou na sala que há à direita e, convencido que a porta da sala era a porta da rua, fechou-a e deu a volta à chave e retirou-a da porta, como costumava fazer com a chave da rua, colocou-a na estante convencido que a estava a colocar no pequeno móvel de parede onde a costumava pôr e, assim, ficou fechado à chave dentro da sala. Depois, como mal se aguentava de pé e quase não via, não conseguia achar a chave e, de resto, não percebia onde estava. Foi um drama. A minha mãe ia-lhe dando instruções do lado de fora mas ele pensava que estava junto à porta da rua e que a minha mãe é que tinha ficado do lado de fora da casa. E, por isso, dizia para ela dar a volta pelo jardim e tentar entrar pelas traseiras. 

A minha mãe já chorava e ele enervadíssimo. E eu, também aflita, à distância pois, por acaso, isto passou-se enquanto a minha mãe estava ao telefone comigo e, portanto, acompanhei tudo de forma remota, tentando ajudar, dando sugestões, tentando acalmar a minha mãe mas incapaz de o fazer pois o meu pai não percebia o que se passava e a minha mãe estava com medo que ele caísse, e não queria sair dali para pedir ajuda para não o deixar sozinho. Por fim, lá a convenci e ir chamar um vizinho . Mas ele não quis partir o vidro da sala, e depois de muitas tentativas, conseguiu, com ferramentas, destrancar e abrir a porta da sala.

Tanto o meu pai se enervou nesse dia, pois achava que tinha deixado a minha mãe na rua e estava aflito porque não lhe conseguia abrir a porta e depois porque se assustou com estar durante muito tempo a ouvir mexer na porta e a voz de um homem, que acho que a partir daí piorou consideravelmente.


O neurologista disse-nos que quem tem um AVC com aquela extensão geralmente não fica cá para contar. Deve ter uma grande parte do cérebro inutilizada e não conseguiu regenerá-la como aconteceu noutras vezes. Não sei se é regenerar ou arranjar outros caminhos.

A mulher de um colega meu teve um AVC quando era ainda bem nova, quarenta e picos. Perdeu o andar, a fala e também parte do campo visual. Acabou por recuperar o andar e a fala (o campo visual não) mas ficou com falhas a nível do vocabulário que ultrapassa dizendo o significado. Se quer dizer botão diz qualquer coisa como isso que entra na casa para apertar o casaco. Outras vezes engana-se e nem dá por isso. Uma vez, sendo ainda fumadora, estendeu o braço na direcção do cinzeiro e pediu-me: passa-me o relógio?

Isto para mim é tudo muito estranho. Pensamos que somos assim ou assado como se isso estivesse impresso em nós, desde que fomos concebidos, como se a nossa maneira de ser fosse uma marca única e indelével, mas, afinal, tudo pode ser fruto de circunstâncias que não controlamos. Mais depressa sabemos sobre estrelas ou planetas longínquos e o que compõe a sua atmosfera do que como funciona o nosso cérebro. Claro que digo isto porque sou leiga porque, certamente, há quem saiba muito. Mas a procura do conhecimento nestes domínio é um work in progress.


Os vídeos abaixo mostram alguns aspectos dessa fascinante procura.
_____


Os efeitos da música no cérebro

Bach versus Beethoven no cérebro de Oliver Sacks


___

Os números e o cérebro


Your brain seems to treat numbers and words very differently (even if the number is written as a word!). So says cognitive neuropsychologist Brian Butterworth.

______

As palavras e o cérebro -- ou o dicionário do cérebro


Where exactly are the words in your head? Scientists have created an interactive map showing which brain areas respond to hearing different words. The map reveals how language is spread throughout the cortex and across both hemispheres, showing groups of words clustered together by meaning. The beautiful interactive model allows us to explore the complex organisation of the enormous dictionaries in our heads.

____

Já agora algumas curiosidades sobre o cérebro


_____

As imagens que usei para ilustrar o texto são, de novo, da autoria de Greg Dunn.

 A música é De Profundis de Arvo Pärt

________

E, caso desejem observar as evidências que contrariam as afirmações de um exemplar que talvez encaixe num dos tipos acima referidos, queiram, então, por favor, descer até a um desfile de inaugurações nas quais Passos Coelho participou 
(ele que convictamente disse que nunca, por nunca, participou em alguma inauguração)

___

quinta-feira, janeiro 21, 2016

Da mente, das partículas elementares, dos mistérios, dos atraentes enigmas que nos habitam
[O caos nunca impediu nada, foi sempre um alimento inebriante]


Ora muito bem. No post abaixo mostrei um vídeo fantástico e contei um dos meus famosos (e embaraçosos) deslizes e, mais abaixo ainda, mostrei um filme alusivo aos Descobrimentos mostrando Cabral, ele mesmo, a produzir indevido efeito sobre um índio maneiro.

E, assim sendo, quem queira pagode é descer, que, aqui, agora, a conversa é outra. Não é que seja dramática mas divertida também não será.




Atraem-me algumas matérias que desconheço e que, por algum motivo, me aparecem como mágicas ou simplesmente poéticas. Acontece isso, por exemplo, com a física da matéria. Por acaso, agora que falo nisto, penso que há já algum tempo que não leio ou ouço nada sobre o tema.

[Ao escrever isto, interrompi a escrita e estive a ver alguns vídeos sobre o assunto]

Não me esforço por perceber. Aliás, prefiro até nem perceber. Neste tipo de coisas acho que, se mergulhasse nos aspectos mais técnicos e guiasse o meu raciocínio segundo os já desbravados caminhos do saber, deixaria que escapassem à minha percepção os aspectos mais luminosos e encantadores do assunto.

Sou capaz de ler livros sobre estes assuntos, de forma salteada, como quem lê um poema aqui, outro ali. Acho fascinante que aquilo de que tudo é feito se situe para lá da fronteira do nosso total entendimento. Fotões, quarks, a forma como se deslocam, o rasto que deixam, tudo isso para mim é magia. Já o contei (e é o mal de uma pessoa escrever como se não houvesse amanhã, já lá vão cinco anos, às tantas corremos o risco de nos tornarmos repetitivos): podendo escolher uma cadeira opcional na faculdade, por puro diletantismo escolhi Introdução à Física da Matéria, de um curso que não era o meu. Inesperadamente, tive um dezanove que tive que ir defender e para cuja sessão fui numa total inconsciência, sem me preparar e sem fazer a mínima ideia do que me esperava. Ainda estou para saber como, mantive a nota e recebi muitos parabéns. E muita gente manifestou a sua incompreensão sobre o que me levava a não me dedicar a sério a uma área na qual me movia com tanta facilidade. A questão é que a física das partículas, para mim, era como a poesia: um fascínio. E, nem por isso – ou talvez por isso - não me licenciei em literatura, ramo de poesia (se é que o há).

Igual atracção tenho por tudo o que se prenda com o cérebro, com o seu funcionamento, ou sobre maneiras de ser, o que as motiva, o que leva uma pessoa a ser como é. 

Tenho no meu pai a prova de como as ligações no cérebro podem apagar-se, renascer, flutuar, mudar de comprimento de onda, transformar-se. Desde que teve o último e profundo AVC já lhe vimos toda a espécie de comportamentos. No primeiro dia, lúcido, chorou quando me viu. Mal podia falar, tinha perdido meio campo visual e parte do corpo estava imobilizado e, muito naturalmente, isso desgostava-o bastante. No segundo, parecia estar numa euforia, cheio de planos para quando regressasse a casa (instalar acesso à internet, mudar os vidros das janelas, sei lá) e referia-se a uma enfermeira como sendo parecida com aquela miúda que vai à televisão e que tem umas grandes mamas. A minha mãe, espantada com aquele comportamento, recomendava que ele falasse baixo, que disparate, que alguém podia ouvir e que, para além do mais, mamas grandes têm elas todas, aumentam-nas. Ele ria-se. Depois lembrou-se: era a Ana Malhoa -- e a minha mãe ficou parva com o que ele tinha ido buscar. 

E foi variando. Houve uma altura que queria ter relações sexuais, até se queixou ao meu marido de que a minha mãe não queria. A minha mãe encabulada, mandando-o calar, e ele a insistir. Sentiu-se a minha mãe na obrigação de nos explicar o óbvio: que ele não estava minimamente em condições e que aquilo era mais um dos epifenómenos a que se vinha assistindo.

Quando a minha mãe esteve doente neste verão, choroso (apesar de não saber o que ela tinha nem ter bem a noção de há quanto tempo estava ela fora de casa), dizia ele que estava a rezar à Nossa Senhora. Fiquei perplexa e sem saber se era verdade ou mais uma baralhação. Sempre o ouvi, tal como ouvia ao meu avô, pai dele, referir-se aos padres como os padrecos ou a padralhada, sempre o ouvi referir-se às mulheres mais crentes como umas beatas. Não me lembro que alguma vez tenha ido à missa, quanto mais rezar.

Contou-me a minha mãe que ontem, estando ela a tentar evitar que ele durma durante o dia, senão não dorme de noite e não a deixa dormir, se queixava, com um certo toque de ironia, à senhora que lá vai tratar da higiene: não tenho conseguido dormir, aí o fiscal não me larga. Outras vezes refere-se à minha mãe, com arrelia, dizendo: ‘anda aí feita doutora, a dar ordens, só a querer que eu amoche’. Outras vezes, logo de seguida, é capaz de querer ir para um lar porque acha que dá muito trabalho e que tem pena de ser uma prisão para a minha mãe. E oscila entre todos os estados de espírito, sem razão aparente. Outras vezes percebemos que nem é ele: são os comprimidos. Há dias chamou a minha mãe e disse-lhe que já tinha morrido e queria saber onde é que iam pôr o caixão. Já não é a primeira vez que diz isto. A minha mãe já se ri, e diz-lhe como se se zangasse: ‘Ai! não sejas parvo, então achas que, se tivesses morrido, estavas a falar? Cala-te com essas conversas que não têm jeito nenhum’. A semana passada chamou-a, parecia assustado. Praticamente não vê nada mas, então, dizia que a minha mãe tomasse conta das crianças que ali estavam, todas de roda da cama, sem pararem sossegadas e sem ninguém a olhar por elas. Quando a coisa derrapa para estes domínios, a minha mãe pensa que é algum medicamento que está a provocar alucinações. Ou pensa que sabe qual é e reduz a dose (embora receie que alguma outra coisa descarrile), ou vai ao neurologista que lá muda ligeiramente aquele processo alquímico que serve de caldo no qual a mente se movimenta.

No entanto, li num livro de Oliver Sacks (a ver se um dia destes falo sobre ele que é deveras, mas mesmo deveras, interessante) que aquelas alucinações podem não ter a ver com a medicação mas com o facto de praticamente não ver. Há pouco fui ver se encontrava algum vídeo sobre isso e encontrei. Está ali em baixo.

São matérias tão misteriosas... É o nosso corpo e, no entanto, como ainda é um enigma, pelo menos para a maioria das pessoas.

Pela parte que me toca, não sei se há alguma relação entre a física das partículas, as neurociências, a poesia, a álgebra ou a geometria descritiva, os modelos de simulação e a inteligência artificial, a simetria e as cores puras das flores. Não sei mesmo. Não sei porque é que isto me atrai nem provoca em mim esta sensação de irresistível atracção que me leva a ler sem querer fixar, a contemplar sem querer perceber, a aproximar-me sem querer tocar. Não sei. E também não quero saber.
(...)
e já declina a beleza completamente despida
da jovem ateniense que abriu a porta e traz a luz ao quarto inteiro
de uma só vez,
mas deixa que se suspeite a treva infinda de onde chega,
ávida fêmea de que equívoca temperatura,
de perguntas como: que idade tem a terra?
em que data de que sítio é a primavera?
(...)


.  ...  ...   ....   ....    ....    ......    ........     ..........     ..................      ........................

Acima, o excerto pertence a um poema inédito de Herberto Helder publicado na revista de poesia Relâmpago, 36/37.

No título desta mensagem há um pequeno excerto de um outro poema, mas esse já de 1990.

.  ...  ...   ....   ....    ....    ......    ........     ..........     ..................      ........................

E agora aqui estão dois vídeos nos quais Oliver Sacks fala de enigmas que me fascinam. 

1.

Oliver Sacks explica o incrível efeito da música sobre a gagueira cinética do mal de Parkinson


Transcrevo o texto de apresentação do vídeo: Muitos têm conhecimento sobre o notável poder da música em fazer desaparecer os bloqueios de fala das pessoas que gaguejam (cantar é uma das formas mais infalíveis de eliminar momentaneamente a gaguez). Mas poucos sabem que um efeito similar também ocorre no mal de Parkinson, também chamado de gagueira cinética. Neste vídeo, o neurologista Oliver Sacks fala sobre como é surpreendente a forma com que pacientes parkinsonianos reagem ao estímulo fornecido pela música. Impedidos pela doença de falar e se mover com fluxo e suavidade, a música momentaneamente consegue trazer-lhes de volta à normalidade, restaurando-lhes a leveza e o ritmo dos movimentos. A história contada no vídeo é um dos casos clínicos relatados em seu novo livro, Musicophilia,


2.

Oliver Sacks: O que as alucinações revelam sobre as nossas mentes


O neurologista e escritor Oliver Sacks chama nossa atenção para a síndrome de Charles Bonnet -- na qual pessoas visualmente deficientes experimentam alucinações lúcidas. Ele descreve as experiências de seus pacientes com detalhes afectuosos e nos conduz à biologia desse fenómeno pouco divulgado.

.....

Lá em cima, o primeiro vídeo traz, de Hildegard von Bingen, Ave generosa (de Heavenly Revelations), numa interpretação a cargo de Oxford Camerata.

As fotografias da mulher que partilha um dos olhos com um animal e a última, a que os esconde com uma borboleta, são da autoria da húngara Flóra Borsi.

.....   .....

E, agora, a quem ainda tiver paciência para me aturar, recomendo que desçam até aos dois posts seguintes, bem mais levezinhos.

...