segunda-feira, fevereiro 24, 2020

Louvor da Terra





Hoje de manhã vi que, em cima da mesa redonda que está junto à janela, estava 'O amor louco' do Breton. Estranhei. Depois fez-se-me luz. Pela capa julgaram que era outra coisa

Levei-o. E levei também o outro, o último, aquele a que não tive como resistir, 'Louvor da terra' de Byung-Chul Han, com tradução de Miguel Serras Pereira, coisa que também ajudou ao bom prenúncio.

Dia de descanso. In heaven. 



Lá chegada, e tão cheia de saudades eu estava, depois de abrir as portadas para que a luz pudesse iluminar a casa, saí para o campo.

Caminhei e, para estas caminhadas, eu não quero companhia, quero apenas o som dos meus passos sobre a caruma, o som da levíssima aragem nos ramos, o cantar dos pássaros, o silêncio, o silêncio que traz de longe o som de uma roçadora e o perfume da erva a ser cortada ou a longínqua presença de um cão que ladra no vale ou algures na serra. Caminho em puro estado de deleite e não penso em nada, apenas sinto o que os sentidos me trazem. A beleza das pequenas flores, os líquenes dourados e os pontinhos brancos, o rendilhado das sombras e a luz sobre todas as coisas, os verdes e a paz que deles se desprende, os odores limpos do campo, a suavidade da folhagem ou das superfícies mornas das pedras ou o enrugado dos troncos. As palavras são escusadas enquanto caminho. Por isso, nessas alturas, não gosto de ter alguém por perto. Quero apenas o silêncio. 

Depois, fui para o sol e levei os livros. Estendi-me numa espreguiçadeira, despi-me, deixei que o sol pousasse devagarinho na minha pele. Estava debaixo da grande figueira mas, como ainda tem os ramos nus, a sombra era subtil. E o perfume fresco que me traz a memória das tardes de verão ainda era apenas uma vontade dele.


Continuei O amor louco, verdadeiramente louco, que tinha começado no carro. Li a direito, fui lendo. Até que comecei a abreviar, a saltar. Dantes era incapaz de fazer isto. Dantes, mesmo que não gostasse de um livro, só o abandonava quando lia escrupulosamente todas as palavras. Agora já não é assim. Perdi a inocência. À medida que o tempo passa a gente vai percebendo que tem que escolher bem onde o usa. A Luísa Neto Jorge traduziu e há momentos belos, outros interessantes, outros muito loucos. Talvez um labirinto. Mas não tem aquele fio de Ariadne de que preciso para me guiar, página a página. Qualquer coisa ali me fez ter vontade de interromper. Se calhar não teve a ver com o livro, se calhar teve a ver com o calor brando do sol sobre a pele ou com o sobressalto das rolas a soltarem-se da ramagem perfumada dos cedros, se calhar teve a ver com a vontade de palavras a brotar da terra e não das mãos, nem mesmo do coração.

Fui, então, para o Louvor da Terra. E como gostei. Ia lendo, ia parando, ia sentindo o amor pelo jardim, pelo devir do tempo sobre as flores, o amor pela paz que se desprende das coisas da natureza, ia vivendo a simplicidade do que me rodeava e do que lia.


Por exemplo, sobre um tema que me é caro (e agora nem tem a ver com as flores ou o jardim que Byung-Chul Han amorosamente cultiva):
Gostaria de me desprender de mim no sono, para me tornar ninguém, um ser anónimo. 
E a referência à Carta sobre o Humanismo onde Heidegger escreve:
'Mas, se o homem encontrar de novo a proximidade do ser, terá de aprender primeiro a existir anonimamente. Terá de se dar conta do mesmo modo tanto da sedução da esfera pública como da impotência do privado. Antes de falar, o homem terá de deixar que o ser de novo o interpele, correndo o risco de, depois dessa interpelação, pouco ou raramente alguma coisa lhe restar que diga'.
E continua: 
Hoje temos muito que dizer, muito que comunicar, porque somos alguém. Perdemos o hábito quer do silêncio, quer de nos calarmos. O meu jardim é um lugar do silêncio. No jardim, crio silêncio.
E eu acho estas palavras tão bonitas, tão sábias, tão simples, tão boas para ler devagar.

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As fotografias foram, pois, feitas este domingo in heaven. Enquanto caminhava tinha umas calças brancas e a túnica que ainda tenho vestida, branca, com flores encarnadas à frente. Ao ver as fotografias, vi-me, nesta aqui acima, espelhada na caruma e nas ervinhas e folhinhas secas do chão. No lugar que provavelmente é o do meu sexo uma florzinha amarela, uma pequena réplica do sol. 

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Lá em cima, quem interpreta as Variações Goldberg de Bach é Igor Levit, não Byung-Chul Han que, a páginas 119 do livro, diz que 'Enquanto contemplava o Vesúvio, tocava todos os dias as Variações Goldberg de Bach. Mandei instalar um piano na minha cabana junto ao mar'. E mais à frente escreve: 'A paisagem mediterrânica é íntima. Comove-me no mais fundo do meu ser. Penetra-me o adejar de um pássaro negro. Comove-me profundamente. Aqui tudo é muito próximo e muito íntimo. Íntimo é um superlativo de interior. Estou no meio da paisagem.'

E, ao ler esta passagem, fiquei a pensar que adejar era justamente a palavra que me faltava para o sobressalto dos pássaros quando batem apressadamente as asas para se libertarem da folhagem e me fazem arrepiar porque esse é um som demasiado íntimo que me faz sentir que tenho um pássaro a querer libertar-se do meu peito. Adejar. 

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Desejo-vos uma boa semana --
mas não sem antes vos convidar a descer para verem o fantasminha que descobri, abraçado ao tronco de uma aroeira.

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2 comentários:

Anónimo disse...

Heidegger? Toma lá um ninguémzito para o bucho.


Ser ninguém
Senão eu mesma

Mas não
Quando o tempo manda na vida
Folhas que se despegam e esvoaçam
Amontoado oco por dentro
Não
Quando a vida manda no tempo
Cascatas de resmas compactas
Buraco de entulho quebrado

Sequer ninguém por um momento


Um abraço para si, UJM
JV

Um Jeito Manso disse...

Olá JV!

Bolas, tão bonito.

Gostei. Temos poeta mesmo, JV.

Não deixe nunca de escrever quando a inspiração desce, ouviu?

Grande abraço para si, brava JV!