terça-feira, fevereiro 25, 2020

Estou numa festa de Carnaval... e não sei se estou muito segura....
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Interrompo a festa para aqui registar o ponto em que as coisas estão. Daqui a nada, talvez já estejam diferentes, talvez tudo tenha tomado um outro rumo.

Estou num solar em Sintra que, para quem passa na rua, parece apenas um grande muro com largo e alto portão duplo de madeira. Quando se entra, há um pátio com escadas e varandins de pedra a toda a volta, excepto do lado do muro que separa a casa da rua. Aparentemente as escadas vão dar a entradas distintas da casa mas em dado ponto, no interior, tudo se comunica. Tantas vezes que aqui já estive e ainda não consegui decifrar esta misteriosa arquitectura.

De uma das salas vai dar-se a um terraço amplo, junto à serra, com o muro de pedra que sustém a terra coberto de hera. É aqui que muitas vezes, em dias de festa grande, se servem as refeições. Quando chove ou está frio, o terraço está coberto e há aquecedores altos.

Este é um lugar com séculos de história e já muito por aqui se deve ter vivido. A decoração deixa transparecer não apenas o gosto dos donos actuais mas, sobretudo, as marcas das várias gerações anteriores. Há pinturas que, de grandes que são, quase ocupam paredes, retratos de mulheres e de homens de há muitos anos, vários retratos a óleo de crianças, há enormes jarrões antigos onde caberia uma pessoa, há nobres castiçais, grandes e belas tapeçarias. Passa-se de algumas divisões para outras afastando pesados reposteiros em veludo. Na grande sala é normal a lareira estar acesa pois por aqui o clima é frio e húmido. O ambiente é sempre muito acolhedor.

Já aqui estive em inúmeras circunstâncias e já algumas vezes falei deste belo casarão.

Hoje os donos e alguns amigos resolveram festejar o Carnaval. Sendo gente avessa a manifestações efusivas e populares, não sei o que desta vez lhes passou pela cabeça. A idade às vezes produz curiosos efeitos em algumas personalidades. A ele sempre o vi reservado e a ela silenciosa, com um sorriso que parece tímido mas que alguns tomam por arrogante. No entanto, ultimamente, a ele noto-o como se a querer viver a adolescência que mal pôde experimentar em devido tempo, tantas as responsabilidades que a família lhe impôs e que ele próprio aceitou ao ser pai ainda não tinha saído da adolescência. Não há muito, surpreendi-me com eles, dançando como nunca julguei que fossem capazes de o fazer, libertos e quase irreverentes.

Pois bem. Aqui estamos. O convite dizia apenas que teríamos que estar irreconhecíveis e que, sob pretexto algum, deveríamos revelar a nossa identidade. Nem à saída. 

Isto não faz muito o meu género e do meu marido muito menos. Não queria vir. A custo lá consegui que viesse mas avisou-me que não arranjasse pretexto para madrugar.

Não posso revelar qual o meu disfarce, nem o dele pois são essas as regras do jogo. Mas acho que estou bem e ele está com muito charme.

O palacete tem garagem mas apenas para as viaturas da casa. Os convidados têm sempre que deixar o carro numa das ruas estreitas e inclinadas da zona. 

Por isso, quando íamos para lá, foi sem surpresa que vimos à nossa frente algumas pessoas mascaradas. Acenaram-nos e retribuímos. Ninguém fala para não se denunciar.

Há disfarces extraordinários. 

Há algumas mulheres que entregaram as capas aos empregados, que estão igualmente de rosto tapado, e que ficaram nuas, os corpos sumptuosamente maquilhados. Há corpos de tigre, há borboletas, há sereias. Contudo, quando fui tomar um seio de uma delas na minha mão, um seio pesado, percebi que ela não está exactamente nua. Sobre o corpo pintado tem uma lycra transparente e aderente. Por isso, não fiquei com tinta na minha mão. Descarada, pegou na minha outra mão e colocou-a no outro seio. E com as suas mãos fez que as minhas mãos a acariciassem. Reparei que o meu marido estava encostado a uma parede, certamente observando. Pensei que não deveríamos ter vindo ao mesmo tempo nem deveríamos conhecer o disfarce um do outro. Estaríamos mais à vontade. Ou talvez não. Quero lá saber.

Há pouco, estava a sentir calor, fui até a um dos varandins. Num canto, dois homens que estavam disfarçados de divindades gregas pareciam sussurrar, como se quisessem fugir ao interdito de não se denunciarem. Quando me viram, disfarçaram e afastaram-se mas, à passagem, fiquei na dúvida. Talvez não fossem dois homens.

Lá em baixo, no pátio, várias cortesãs dançavam como se o seu corpo fosse parte da música. Ondulavam livremente e a sensualidade era palpável. De vez em quando, uma encostava-se às costas de uma outra e a forma como se roçava fez-me pensar que talvez não fosse exactamente uma cortesã.

Fui buscar uma bebida. Curiosamente, as palhinhas são metálicas. A sustentabilidade está presente.

Olhei em volta e não descobri o meu marido. Pensei que seria um desastre se se tivessse ido embora. 

Quando estava a refrescar-me, bebendo a fria bebida e olhando os circundantes com pena de não ter trazido a máquina fotográfica, um vulto, alto, vestido de negro, um capuz negro, aproximou-se. Assustei-me. Não percebi se era suposto estar disfarçado de meliante, se de uma qualquer seita secreta. Senti-me a petrificar. Mas ele levantou a sua bebida, como que saudando-me. Levantei a minha mas quase a medo. Baixou a cabeça ao de leve, como que cumprimentando-me. Aproximou-se mais. Como um gato traiçoeiro, como um lobo inevitável, pôs-se atrás de mim. Arrepiada, paralisada, deixei-me ficar. Poderia ter fugido mas não consegui, nem me ocorreu. Senti que desviava a máscara e que se aproximava perigosamente. Senti os seus lábios beijando-me o ombro desnudo. Estremeci. Depois voltou a ajeitar a máscara, passou para a minha frente, tomou-me a mão enluvada e fez o gesto de a levar aos lábios. Estivesse eu mais calma e teria sorrido. Mas não, fiquei trémula. E quase fugi.

Quando entrei e comecei a circular, uma Marie Antoinette veio dar-me o braço, e cheia de coquetteries, ternuras e mesuras, como se estivesse divertida, levou-me até à sala da lareira.

Num dos amplos sofás, o meu marido e duas freiras, uma de cada lado e ele, de lado em relação a uma. Essa estava de joelhos em cima do sofá, e fazia-lhe uma massagem nos ombros e a outra estava a rezar o terço, com um rosário, com a cabeça encostada ao peito dele.

Quando me viu, ele sobressaltou-se ou, pelo menos, fingiu que se sobressaltava, mas eu não quis saber. Se duas freiras estavam a zelar pela saúde do seu corpo e da sua alma, melhor para ele. Segui para outra sala, de braço dado à Marie Antoinette. 

De repente, silencioso e esquivo como um lobo sombrio, vi que, ao fundo, o homem de negro deslizava até à biblioteca. A Marie Antoinette fez-me um aceno, como se se despedisse de mim e empurrou-me para lá.

A medo, assomei à porta.

Junto a uma estante, fez-me um gesto de aproximação. E então, quando, a medo, dei uns passos na sua direcção, ele mostrou-me um livro. Gelei. Não, aquele livro não. Não podia ser. Como? Não pode ser. Tive medo. Tenho medo. Por isso, saí apressadamente, o coração descompassado, e vim até aqui, até ao boudoir da dona da casa, e aqui estou a fazer tempo. Tomara que ele não me encontre, tomara que se vá embora. Tomara que eu esteja a delirar. Tomara que as duas freiras libertem o meu marido para nos irmos embora.

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Não sei se ainda cá voltarei hoje. 

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Por facilidade, usei máscaras de Veneza para ilustrar o post mas, como já referi, nem toda a gente está assim.

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6 comentários:

Paulo B disse...

Bem, depois de um serão caseiro e solitário entre leituras e o Mezzo, ia agora deitar-me e deparo-me com este post. Venha daí mais UJM. Agora despertei e estou em pulgas para ler mais do folhetim! Ficarei de bom grado mais umas boas horas. Amanhã até tenho tolerância de ponto!



Francisco de Sousa Rodrigues disse...

UJM, adoro essas surpresas, de pessoas que pensamos muito reservadas e depois surgem como "party animals".
Aqui em casa também houve festa, vesti-me de pijama de senhora em seda, música "a mi manera" e muita dança.

Um rico dia.

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

Um folhetim...? Mas, então, achou que isto não se passou...? Ora bolas. Devo ter sido pouco realista...

:)

Abraço!

PS: Vou pensar no seu caso e ver se me volta a pica para dar largas à imaginação.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Uau, uma festa louca...! Mas de cara destapada? Já experimentou uma totalmente blind party? Carnaval que é Carnaval é bom é na base do mistério. E haja música e que a noite seja longa.

Quanto aos animais que soltam a franga e a fera que há dentro deles quando as luzes se toldam e a música se anima, é do que mais gosto de ver: uma verdadeira metamorfose. Já aqui falei da mais louca que conheço, uma colega que impõe respeito pela reserva e ensimesmamento. Mas quando a party arranca, oh meu amigo, ela vira outra e não há quem a segure...

Abraço, Francisco.

Uma feliz quarta-feira.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Com bom quórum de pessoal é uma bela ideia uma "blind party", o verdadeiro espírito do Carnaval.

Um bom serão.

Paulo B disse...

Ora, realista ou não. É um bom folhetim. Aliás, os que deambulam no limbo da realidade são os melhores. Livros. Folhetins. E realidades. ;)

Abraço!