domingo, agosto 21, 2022

Um susto recheado de guinchos ao dealbar d'aurora e uma açorda algarvia de galinha e grão para o jantar
(receita incluída)

 


A noite passada tinha acordado por volta das quatro e meia da manhã e estava a custar-me a adormecer. Como dormimos com os vidros abertos e persianas com as frinchas abertas, mal o sol começa a raiar já o quarto se ilumina. Não me afecta. Aliás, até gosto. Mas, então, lá fora mas junto à porta, um chinfrim danado, barulho como se de corridas, perseguições, encontrões, e logo uma guincharia terrível, uns estrondos. Claro que o dog de guarda acordou sobressaltado e correu a ladrar que nem um possesso. Ladrou, ladrou, correu de um lado para o outro numa agitação, enervado, um vozeirão, saltos ao pé da porta. Lá fora, o silêncio. 

Eu também intrigada com aquele aparato. O meu marido disse que devia ter sido uma cena qualquer com um gato. Tentei acalmá-lo mas foi impossível (refiro-me ao cão -- não ao meu marido que esse estava calmo, embora chateado por nem ao sábado conseguir dormir).

Contudo, perante o desassossego da fera, não teve outro remédio: foram lá fora, um escoltando o outro. 

No regresso, o relatório: de gato nem sinal mas um ratinho jazia no jardim. O gato com o ladrar da fera deve ter fugido e abandonou o seu troféu. O meu marido distraiu a atenção do urso, não fosse ele querer banquetear-se logo de manhã, ainda por cima com manjar alheio. Quando lá voltou já não viu o rato. Participou-me, a seguir: 'O gato já veio buscar o rato'. 

Contudo, quando, algum tempo depois, eu dei uma volta por outro lado, já o pobre ratinho tinha sido transladado para lá. Pequenino, cinzento muito clarinho, um rabo comprido quase rosado. Um inocente.

Por respeito, não captei a situação. Aliás, nessa altura mal tive tempo para uma fotografia à pressa a uma das belas flores amarelas que sempre me encantam e para aquele ser pré-histórico, uma osga moura que mais parece albina, que agora por lá se passeia, quase se confundindo com a parede 

O meu marido já estava no carro à minha espera com o urso cabeludo no banco de trás. Não dava para um enterro condigno da pobre vítima rabuda. Lá ficou, à mercê. Entretanto, imagino eu, o gato deve ter conseguido, finalmente, resgatar o produto da sua caçada.

É aquela velha história da cadeia alimentar. Que ninguém tenha peneiras: todos somos pasto de algum qualquer outro bicho. Muita prosápia, muito instagram, muita cagança para acabarmos todos da mesma maneira. 

Adiante. Os fins de semana não se querem para altas filosofias.

Passemos, pois, ao que importa. 

Fui ao supermercado que tem carne boa. De todos os que conheço, não encontrei ainda um outro assim. Tem é um inconveniente: ali ninguém tem pressa. Por isso, venho de lá sempre com as narinas a fumegar e a bater com os cascos, tanta a impaciência. Mas hoje nada disso: felizmente hoje não havia daqueles avantajados que enchem o carrinho com quilos e quilos de carne, carne certamente para a arca e para dar para um mês inteiro, tudo cortado a feitio, cada peça escolhida com rigor, um empregado mais de meia hora com cada cliente. Nem apanhei clientes amigos dos empregados, daqueles que conversam nas calmas, perguntam pela família e pelos vizinhos, sem quererem saber das pressas dos outros. Slow living por estas bandas. Mas este sábado a coisa esteve bem. Trouxe um mega frango do campo e meia galinha também campestre. Era para só trazer galinha. Mas galinha, galinha que se visse, em tamanho giga e ar de galinha feita, só havia aquela metade. Portanto, completei com o giga frango, animal a parecer capão natalício. Trouxe também uma farinheira e um chouriço de carne extra. Gosto de enchidos de boa qualidade, especialmente quando há crianças envolvidas do repasto

Sendo bichos do campo, musculados, e daquele tamanhão (refiro-me aos galináceos e não aos clientes), comecei a empreitada logo por volta das quatro da tarde. Slow food, pois.

Fiz assim:

  • Num panelão, coloquei água, um pouco de sal, duas cebolonas novas, muito grandes, cortadas aos bocados, um ramo de salsa, três cenouras de bom tamanho (sim, nas cenouras, digam o que disserem, size matters). Juntei os bichos já devidamente esquartejados (e desculpem-me a violência da descrição) e um pouco de sal. Depois de levantar fervura, baixei e assim ficou a cozinhar, o panelão devidamente tapado.
  • Quando a carne dava mostras de querer soltar-se ligeiramente dos ossos (e, uma vez mais, desculpem se a descrição vos parece gráfica demais), juntei a farinheira e o chouriço. Passado um bocado, o caldo da cozedura tinha adquirido as belas cores dos enchidos e estava na hora de juntar os ovos. Levantando o lume ao máximo, parti lá para dentro -- mas com cuidado para o mergulho ser suave -- seis ovos. Quando voltou a levantar fervura, voltei a baixar e a tapar. Cozeu mais um bocado. Finalmente juntei uma embalagem de grão cozido. Desliguei.
  • Aqui entrou em cena o meu marido. Pedi-lhe que forrasse o fundo de duas travessas com fatias generosas de baguette de pão rústico. 
  • Enquanto isso, preparei o tempero para o piso. Para uma tigela piquei finamente uma meia dúzia de grandes dentes de alho, um ramo de coentros, juntei azeite e envolvi tudo muito bem, pisando um pouco com um garfo. Se tivesse um almofariz teria esmagado mas não faço ideia onde foi parar o dito cujo. Nada de grave. Com uma concha fui retirando caldo da canja e mexendo. 
  • Depois, com uma colher, despejei esse caldo a cheirar a açorda algarvia (ou alentejana) sobre as fatias de pão. Quando estavam ensopadinhas, coloquei os pedaços de galinha e frango e depois o grão, a cenoura, os ovos escalfados e mais caldo. No fim, enfeitei com hortelã. 

Quando estávamos a começar a servir-nos, recebi uma chamada com imagem da turma que anda em turismo por fora, por terras onde o calor ainda aperta com mais força. Mostrámos-lhes as travessas (pois o prato era uma tentativa de reprodução da açorda algarvia de galinha e grão que eles tinham comido a semana passada quando ainda andavam por terras de Portugal). Mas a confusão era grande de um e do outro lado, eles mostravam cocktails, elas falavam de tatuagens, todos a falarem ao mesmo tempo. Portanto, a seguir uma chamada apenas de voz, coisa mais um a um, e fui atender para outro lado. Demorei um pouco. Quando regressei à sala de jantar, os comensais começaram a bater palmas: que a açorda estava mesmo boa, que era das melhores coisas que eu já tinha feito.

E porque é tão simples, tão agradável e creio eu, tão razoavelmente saudável, disso aqui vos quis deixar nota. 

Não usei a linda taça das folhas de couve que está lá em cima e que hoje recebi de presente porque era pequena demais para tanta comida. Fica muito bem como peça decorativa sobre a mesa da cozinha. Podia usá-la como fruteira mas acho que prefiro que fique sem nada pois assim rapidamente a uso como saladeira ou travessa de ir à mesa.

Também recebi um pequeno presépio pois gosto bastante da composição familiar pouco ortodoxa, até une chose a modos que avant la lettre: uma jovem mãe solteira, um homem generoso que lhe deu guarida (e que não sei se seria o pai da criança o qual, para disfarçar a diferença de idades, deu uma de protector), um bebé nascido numa gruta, um burro, uma vaca. Sabendo deste meu gosto, também recebi, pois, o delicado presepinho. Esqueci-me de fotografar (e, acho eu, ... esqueci-me, até, de agradecer...) e agora não dá, senão ainda ia acordar o pessoal todo. Amanhã a ver se duplamente trato disso.

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Desejo-vos um bom dia de domingo

Saúde. Bom apetite. Paz

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