quarta-feira, agosto 31, 2022

Marta Temido e a Saúde em Portugal*

 

Há poucos médicos, poucos enfermeiros e poucos técnicos de electromedicina no país. Quem pode pagar mais rouba-os a quem tem mais limitações.

A partir daqui, começam os problemas.

Para resolver o assunto, há que atacar a raiz do problema. Alargar o número de vagas nos estabelecimentos de ensino é uma solução de médio/longo prazo. A curto prazo, há que 'importá-los'. Imigrantes nestas especialidades deveriam ser fortemente incentivados a vir e ficar por cá.

Li a sugestão do M. J. Marmelo de que quem estuda em estabelecimentos de ensino público seja obrigado a prestar serviço no SNS durante um número mínimo de anos. Parecer-me-ia uma boa solução. Não resolveria tudo mas todas as ajudas são boas.

Já aqui falei numa outra questão. A escassez de recursos humanos nas equipas obriga a que os que estão presentes tenham que fazer horas extraordinárias. Segundo a legislação em vigor e segundo os regulamentos em vigor nos diferentes acordos de trabalho não apenas há limite ao número de horas suplementares efectuadas como, consoante o número de horas, em especial à noite e/ou ao fim de semana, se adquire direito a gozar descansos compensatórios. Só que, se as pessoas gozam esses dias a que têm direito, outros terão que fazer trabalho suplementar para colmatar as faltas. É uma bola de neve. É um círculo vicioso.

Mesmo que não existissem pessoas a menos, há férias, há baixas. Só se evitam horas extraordinárias com equipas folgadas e férias muito bem distribuídas. 

Ora as equipas estão deficitárias e, com a pandemia, não houve como ter pessoal clínico em férias criteriosamente calendarizadas. Foi um toque a reunir. Todos eram poucos. Acumularam-se horas a mais, dias de férias e compensação por gozar a mais. Se agora os gozam, fecham urgências, ficam os serviços deficitários. Se não os gozam, entram em burnout.

O desastre teria, pois, que acontecer.

A única hipótese seria contratar gente para compor equipas enquanto os outros folgam. Só que não há gente disponível para isso. E, quando os há, ou são inexperientes ou ganham fortunas.

Com o SNS em exaustão (primeiro pela Covid e, depois da Covid, a apareceram todos os achaques resultantes de acompanhamento e diagnósticos tardios), muitos profissionais não aguentaram, fugiram para os privados. 

Poder-se-ia pensar que há nisto também algum maquiavelismo por parte dos privados: roubam ao público para o público ir ao tapete e eles, privados, terem maior clientela. Contudo, não o creio. Quem já tem seguros de saúde ou protocolos como a ADSE já vai maioritariamente ao privado. Os privados não têm falta de clientes. Os que vão ao SNS são maioritariamente os que não têm como ir aos privados. 

Mas cada vez as pessoas vivem mais anos e têm mais doenças. Além disso, ainda acontece que, quando a situação é grave, as pessoas preferem os hospitais públicos. 

Aconteceu-me estar numa clínica privada e ser-me diagnosticado um enfarte agudo de miocárdio. Activaram o protocolo do INEM e perguntaram para onde queria ir. Não hesitei, quis um hospital público. Assisti por dentro à confusão das urgências, à situação limite que se vive num SO, vi as imensas limitações. Na realidade não tive um enfarte mas verificou-se uma condição que fez com que tivesse que passar a ser seguida em Cardiologia. E voltei ao privado. Mas voltei porque posso. 

E, portanto, o SNS é o sistema a quem tudo se exige e que se encontra espalmado entre a falta de recursos humanos, por um lado, e falta de dinheiro, por outro.

No entanto, se houvesse gente suficiente e a possibilidade de exercer a gestão sem ser em situação de carência e crise, se calhar não seria preciso mais dinheiro.

Assim, é muito difícil. Tem solução. Tudo tem. Já o referi acima: há que injectar gente nas equipas, via imigração. Uma vez as equipas completas e com gente de reserva, pô-los a gozar as férias e as compensações em atraso. Depois organizar, repensar, reinventar. Há que pensar a longo prazo: abrir vagas nas escolas. E há que ter sangue frio e não ceder a pressões.

Portugal é ainda um país corporativista. Há coisas que são culturais, que atravessam gerações. Há que ouvir os médicos e os enfermeiros mas não ceder, por ceder, às suas múltiplas exigências, tantas vezes classistas, tantas vezes desprovidas de racionalidade. Têm razão em muitas coisas mas, pelo efectivo poder de pressão que detêm, muitas vezes exercem o que parece ser quase chantagem e não o que se exigiria, espírito de colaboração..

Ouvi há pouco na televisão que o SNS foi criado numa altura em que os problemas de saúde eram, sobretudo, agudos e com causa única e que hoje a situação é o contrário: a prevalência é de doenças crónicas e origens variadas, obrigando a tratamentos prolongados através de equipas cruzadas. Como eu, pessoas que têm que continuar a ser seguidas, se calhar para o resto da vida, há aos montes. E os hospitais e os centros de saúde não foram concebidos ou dimensionados para isso Ou seja, estamos perante uma séria questão estrutural que requer estudos e uma implementação demorada e complexa.

Face a isto, o que dizer de Marta Temido?

Do que lhe vi, só tenho a dizer muito bem. É uma pessoa resistente, ponderada, com uma imensa capacidade de trabalho. O que ela aguentou, a forma inteligente e firme como o aguentou, faz dela uma heroína. Penso que só temos a agradecer-lhe. Devemos-lhe a forma objectiva e racional, tantas vezes de improviso (porque ainda não havia ciência comprovada), como enfrentámos a pandemia, devemos-lhe a forma coesa como a sociedade soube adoptar os cuidados que se iam sabendo eficazes. Devemo-lo a ela bem como a Graça Freitas ou a Lacerda Sales que a coadjuvaram de forma leal e coerente.

Não há soluções mágicas para a Saúde e é bom que quem suceder a Marta Temido venha com humildade, nunca se esquecendo de louvar o trabalho meritório da sua antecessora que enfrentou uma pandemia terrível, com o SNS sempre disponível.

Agora estamos a pagar o tremendo esforço do período da pandemia, as consequências do corporativismo das classes clínicas, as consequências do fortalecimento dos sectores dos seguros de saúde e da saúde privada e as consequências da mudança de paradigma dos cuidados de saúde necessários -- mas, ingratos como somos, não faltará quem se esqueça disso e se apresse a crucificá-la.

Eu não me esqueço. Vi-a à beira da exaustão, vi-a à beira das lágrimas, via-a a envelhecer, a pele a ir ficando mais manchada e mais macilenta. E sempre corajosa, sempre presente. Do que ela abdicou a nível familiar nem consigo imaginar. Nunca a ouvimos queixar-se. E, por tudo isto e por tudo o que acho que lhe devemos, aqui fica o meu reconhecimento pela sua extraordinária dedicação e competência como Ministra da Saúde. Muito obrigada, Marta Temido.

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* Peço desculpa se o título deste post parece formal ou pomposo pois sei que o que escrevi é incompleto, superficial, coisa de leiga. Simplesmente, não me ocorreu outro. 

Pensei em Na despedida de Marta Temido ou Ficamos de melhor saúde depois da saída de Marta Temido? ou, ainda, Sai Marta, alegram-se as comadres. Mas, não sei porquê, apeteceu-me o comedimento.

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Desejo-vos uma boa quarta-feira

Saúde. Justiça. Generosidade. Paz.

10 comentários:

Carla A. disse...

Bom dia UJM,

Não poderia estar mais de acordo com o que escreveu, só quem está lá sabe o que realmente se passa e como é difícil gerir, orientar um sistema viciado e corporativista, não só a nível da saúde como em todos os outros organismos do estado, é um sistema viciado e cheio de manhas, costumo dizer que as empresas do estado estão doentes e consequentemente adoecem quem lá trabalha. Os administradores/diretores/presidentes, etc... com mais ou menos competências que vão para estes organismos, de um modo geral, utilizam-nos como plataforma para saltar para empresas como a Galp...
Não gosto de política por aquilo em que está enredada, simpatizo com um partido e é nesse que habitualmente voto, embora confesse que cada vez é mais difícil acreditar que algo vai mudar e que alguma coisa vai realmente ser feita.

Tenha um bom dia!!
Carla Almeida

Américo Costa disse...

Cara UJM:
A meu ver (e isto com quarenta anos de SNS em exclusividade) há dois fatores que persistem, e que impedem o bom desempenho do SNS:
1- A não observância do escrito em Mateus 6-24;
2- A existência de muitos chefes, poucos índios e raríssimos lideres, nas chefias de Agrupamentos de Saúde e de outros Serviços!
Não se pode olhar para o SNS sob o prisma de uma luta esquerda/direita. Este Serviço é criado para favorecer os mais pobres. A privada "tem clientes", como diz e bem. Esta coisa de utentes/clientes é criação posterior da direita que na saúde vê negócio (não é um mal, já que a palavra que dizer - negação do ócio-). Não vejo os meus colegas (com exceção daqueles que têm nome e alguma clientela) serem bem remunerados e bem tratados na privada. Não conhece a história toda. A ameaça constante de irem para o privado é tão só uma ameaça: não deixam de ter o "baixo" ordenado do público. O SNS não é nosso, dos médicos.
Obrigado.
Américo Costa

afcm disse...

E assim terminamos : "Porreiro, Pá"".....

aamgvieira disse...

Costa,como de costume, reage com indiferença olímpica. Caiu uma simples peça do dominó político que deixou de lhe ser útil. A prioridade do PM é Bruxelas, não Portugal.

A.Vieira

ccastanho disse...

Certo, UJM, tem razão no diagnostico.

Marta Temido tem a admiração da maioria das pessoas deste país, ao contrario de António Costa, que a deixa cair sem o mínimo de dignidade, e solidariedade!, ( acaso, Costa, sabe o que é a solidariedade? não, não sabe, nem quer saber, apenas e só, o seu interesse politico).

António Costa geriu Marta Temido, da forma mais vil, deixou Marta estatelar no chão sem dó nem piedade. O cinismo foi por demais e evidente quando os "rottvaiers
do privado" ocupavam as tvs diariamente na exploração dos casos no SNS sem que António Costa, desse conforto politico, a uma pessoa desgastada por uma pandemia e com toda a oposição desde o Marcelo, ao Ventura, a fazerem a cama para o abismo da Senhora.

Há quarenta e tal anos que voto PS, mas reconheço que o partido, faz oposição a si próprio, não precisa de oposição porque ela está dentro do próprio partido na representação de interesses muitas vezes antagónicos, é assim o PS, foi sempre assim o PS.

Falcão Vigilante disse...


Gostaria de ter disponíveis quadros estatísticos sérios, semelhantes àqueles de que dispõem as empresas com boas áreas de RH, que permitissem comparar o grau de absentismo nos hospitais públicos e privados. Tudo subdividido por tipo de população e idades (médicos, enfermeiros, auxiliares, etc.),e, dentro de cada um destes, por motivos (doença, etc.).

Gostaria... mas não tenho. Também não vejo discutir o assunto em lado nenhum, como se o mesmo não tivesse relevância. Nem aqueles sujeitos das famigeradas "Ordens", sempre tão disponíveis para as suas campanhas mediáticas, sempre tão agarrados aos microfones para os seus ataques ao Governo, dizem algo sobre a matéria. Por que será? Receio de alguma má surpresa?

Quanto a Marta Temido, faço minhas as palavras da autora do blog. Está visto que a senhora se fartou de tanta estupidez, tanta ingratidão e tanta sanha partidária. Bateu com a porta e optou (espero) por regressar a uma vida normal e saudável. E o país perdeu alguém que foi do melhor que já passou pelas funções governativas nacionais. Para gáudio e aproveitamento político dos videirinhos que só pensam em regressar ao "pote" de onde foram expulsos há sete anos...




Anónimo disse...

Marta Temido foi uma guerreira, aguentou ali bem firme em alturas muito difíceis. Duvido que alguém tivesse feito melhor do que ela.
Ponham lá o bastonário Miguel Guimarães, ele deve ter uma varinha de condão para resolver tudo. Devia entregar-se o SNS a esse senhor e à parte da comunidade médica que bem fizeram a cama à ministra. Em 3 tempos só havia serviços de saúde nos privados. E é isso que eles querem, transformar a saúde num negócio.

Lurdes

Um Jeito Manso disse...

CCastanho,

Mas o que é que viu que eu não vi? É que sempre vi o António Costa a apoiar a Marta Temido, a apoiar o seu trabalho, as suas decisões. Mesmo quando todos pediam a sua cabeça, Costa esteve ao seu lado, firme, correctíssimo.

Mesmo agora, acho que foi absolutamente correcto. Agora se Marta Temido está exausta, desfeita, sem energia para mais, enfrentando o que não se deseja a ninguém que enfrente, ele poderia continuar a exigir tamanho sacrifício pessoal? Claro que teria que deixá-la sobreviver.

Se alguma comunicação social gosta de inventar telenovelas, não podemos deixar-nos contagiar. Há gente que, para ter audiências e likes, vive da maledicência, da intriga. Se a gente vai na conversa, damos em doidos.

Os factos são o que são e não as histórias que inventam à volta delas.

Dias felizes!

Um Jeito Manso disse...

A. Vieira,

Mas queria o quê? Que António Costa se atirasse para o chão a fazer uma birra? Felizmente que temos um Primeiro Ministro que tem a cabeça no lugar, que não é de histerias, de amuos, de folguedos, de indirectas, de lágrimas no canto do olho.

Não me desiluda, A. Vieira. Diga-me coisas que me convençam, se faz favor. Não me diga coisas destas...

Um Jeito Manso disse...

Caros Outros,

De acordo com o que disseram. De acordo que os jornalistas deveriam averiguar o que se passa no 'privado'. De acordo que seria interessante analisar o dia a dia dos médicos que trabalham no público e no privado (quantas horas faem de um lado e do outro, quanto ganam num lado e no outro, que regalias ou garantias têm de um lado e do outro). De acordo que há gestão ultrapassada em alguns estabelecimentos de saúde.

De acordo que Marta Temida enfrentou Ordens e interesses corporativistas, enfrentou pandemias, enfrentou crises tramadas.

Tomara que o próximo ministro seja tão bom como Marta Temido!

Obrigada pelas vossas palavras.