quinta-feira, julho 30, 2020

Ele há coisas






Um dia mais tarde talvez eu fale aqui destes dias loucos em que, em simultâneo, tudo muda, tudo acontece, tudo se atropela na minha vida. Umas coisas acontecem porque a vida é assim mesmo, outras porque eu fiz acontecer e outras são as consequências directas e os efeitos colaterais de tudo o resto. Não me queixo. Ou é assim porque é a vida ou é assim porque, de vez em quando, um vento de mudança toma conta da minha vida e eu preciso de mudar de pele, de vida, de tudo.

Mas manter os pés na terra, dar conta de todo o recado, trabalhar, assegurar a logística do dia a dia, manter a disponibilidade intacta para quem não tem nada a ver com os trabalhos em que me meto, não é fácil e, muito sinceramente, de vez em quando olho para o reboliço todo em cujo centro me encontro e só me apetece ter super-poderes para poder fazer dez vezes mais do que faço para mais rapidamente cumprir as fases de maior assoberbamento em que agora me encontro.

Hoje, ao fim do dia, fui fazer uma pequena caminhada mas ia cansada e só me ocorria como será bom, daqui por algum tempo, a vida já reequilibrada, tudo serenado. E a visão desses dias de quietude e tranquilidade parece-me o el dorado pelo qual, neste momento, anseio.

A tarde, em especial, foi repleta de cenas. O cúmulo da graça foi uma reunião remota com pessoas do meu lado e pessoas de um outro lado. Às tantas percebi que, dos outros, um deles, o mais calado e a quem menos os outros davam a palavra, parecia ser, ali, a peça chave. Era homem já de alguma idade. Aos poucos arranjei maneira de lhe ir dando a palavra. Até que, se calhar até meio a despropósito, lhe perguntei onde é que ele tinha trabalhado antes de estar naquela empresa. Ele chegou-se à frente e foi como se estivesse à espera de dizer aquilo. Começou referindo a primeira empresa onde tinha trabalhado e o ano em que tinha entrado. Anos depois, outra empresa. Aí tocaram muitos sinos. Disse-lhe: 'Se calhar ainda nos encontrámos por lá...'. Julguei que ia surpreendê-lo. Mas foi ao contrário. Diz ele, referindo-se a mim, com ar contido, como se tivesse ensaiado: 'Não, nessa altura já não estava lá, já estava nos escritórios da Avenida tal'. Fiquei banzada. Perguntei: 'Em que ano?'. Ele repetiu. De facto, nesse ano eu estava onde ele disse. Afinal conhecia-me. Fiquei espantada e só não completamente espantada porque não é a primeira vez que isto acontece. Eu a pensar que estava a ter uma reunião com um grupo de desconhecidos e, afinal, um deles conhecia-me de longa data. Admito que, num mundo profissional em que a larga maioria são homens, qualquer mulher se tornava notada. Ainda por cima há uns belos anos atrás, uma mulher naquelas funções era uma raridade.

Agora, ao estar a escrever isto, lembrei-me de uma reunião, no local onde ele trabalhava, onde uma equipa da Sede foi apresentar o plano de reestruturação que os ia afectar a sério. Juntaram-se centenas num pavilhão para ouvir. Estava cheio, o ambiente estava carregado de electricidade e ansiedade. Creio que apenas homens. Alguém achou que a pessoa da equipa que deveria apresentar esse plano deveria ser eu. Não me tinha preparado para isso mas, naquele ambiente quente, compreendi que talvez fizesse sentido ser eu, talvez o facto de ser uma jovem mulher contivesse a agressividade que estava latente. Durou horas essa sessão. Correu bem. Foi duro mas acho que houve franqueza e partilha de receios e de riscos. Lembro-me de estar vestida de branco, era verão. Eu estava de pé e, no fim, eu tinha perguntado se havia questões e... houve questões sem fim. Por volta da hora do almoço, comecei a sentir vontade de ir fazer chichi mas era impossível sair dali a meio e ir à casa de banho. Às tantas já me doía a bexiga, já quase não tinha posição. Tinha ido à casa de banho antes de sair de casa, certamente antes da oito da manhã. E tinha sede, aquilo estava muito quente, e sentia que a tensão me estava a baixar. Mas pensava que, se bebia água, ainda mais aflita ficava. Intimamente já só implorava que se calassem, que acalmassem, que aquilo acabasse. Temia não conseguir chegar à casa de banho e ainda fazer chichi pelas pernas abaixo, um vexame. Mas esta aflição ninguém deve ter percebido, só devem ter percebido que estava ali uma mulher, no meio de muitos homens, a tentar ser clara, falar verdade, não escamoteando o período complicado que se iria atravessar. E, se calhar, um desses homens era este que esta tarde tive ali à minha frente.

A vida tem destas coisas. A vida tem tantas coisas.


No outro dia, um outro, do nada, começou a dizer-me que agora estava melhor. Fiquei em suspenso. Já sei perceber quando há, do lado de lá, vontade de falar. Depois acrescentou: 'Mas não foi fácil, passei um mau bocado'. Tive que perguntar: 'Mas o que foi?'. E, então, para minha surpresa, com uma franqueza desarmante, talvez até com inesperada candura, ele desatou a contar-me aquilo pelo que tinha passado. Daquelas coisas que uma pessoa tem que engolir em seco para não denunciar alguma reacção que faça o outro inibir-se. Falou e eu ouvi-o. É um homem a quem os outros que trabalham com ele, e são centenas, acham seco, duro. É uma pessoa pouco estimada, pouco empática. E, no entanto, sem que eu consiga explicar porquê, ali estava, falando-me de assuntos íntimos, de problemas que estava a superar mas que ainda o afligiam.

Não sei explicar isto.  Mas também nem tudo precisa de ser explicado. Não é?

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E também não sei porque estou a falar disto. Comecei o post com a ideia de falar de uma colcha de renda muito bonita que uso na minha cama e que não me lembro se foi a minha avó ou uma tia do meu marido que ma ofereceu. Ao falar disto com a minha mãe, tirei uma fotografia para ver se ela se lembrava. Respondeu-me que aquilo não é uma colcha, é uma toalha de mesa. Fiquei perplexa. Pensei que estivesse enganada. Que não, certeza absoluta, Alguma vez aquilo é uma colcha? Mas a verdade é que tem sido e, em minha opinião, uma bela colcha. Também, ao tirar uma outra de um gavetão, me surpreendi com as toneladas que aquilo pesa. E nunca a uso porque imagino que seja um calvário para lavar, para secar, para passar a ferro. E custa-me pois uma pessoa, cheia de amor, trabalhou naquela colcha durante muito tempo, certamente anos, gastou muito dinheiro em fio, aquilo é um peso bruto. Como poderemos retribuir gestos de amor junto de quem já não está entre nós?

Mas, enfim, não sei porquê, o post tomou outro rumo. E agora não vou apagar tudo e, a esta hora, recomeçar. Fico-me por aqui.

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As pinturas são de August Macke e vêm ao som de Bach pelas mãos de Stephanie Jones.


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E, antes de escrever, gosto sempre de circular pelos blogs aqui do lado, pelas notícias, pelos vídeos que o YouTube me propõe. Sabendo que me pelo por me rir e por sorrir, agora anda a propor-me o abençoado, querido e divertido Charlie Chaplin. E aqui está ele, para que, possam também sorrir.


E um dia feliz para todos.
Saúde, sorte e dinheiro para os gastos. E alegria. E força.

4 comentários:

MARIPA disse...

A vida não está fácil... penso até que não está para ninguém. Apenas os irresponsáveis e "os donos disto tudo» passam por entre os pingos da chuva que não cai.

Cansaço é a palavra que mais me acode ao pensamento. Gostei de Bach, amei as pinturas do post anterior e a hitória da colcha que não é colcha e gosto quando mistura os assuntos...

Desejo-lhe tudo de bom e mando-lhe um abraço.

Anónimo disse...

Já há algum tempo que os seus posts me fazem pensar que é uma pessoa da área de serviços (recursos humanos, finanças ...). A cena que descreve neste post vem-me reforçar essa ideia. Não me vou espantar se disser que não é nada disso.

Um Jeito Manso disse...

Olá Menina Maripa,

Muito obrigada. Sabe, eu escrevo conforme falo e a gente, quando fala, também, às vezes, muda de assunto. Não é? Claro que seria mais gostosa a conversa se huver quem, do outro lado, traga as suas ideias, memórias, graças. Mas, sabe, eu, quando escrevo, é como se sentisse, aí desse lado, alguém muito próximo, que me ouve, que me compreende. Gosto de escrever. À noite, quando consigo chegar ao sofá, sabe-me bem desacnsar a cabeça e, para isso, nada melhor do que bater um papinho, escrever.

Espero que esteja tudo bem consigo apesar deste calorão. (E o calor que a máscara nos faz, não é? Poças, asfixio, abafo, encaloro-me...!)

Um bom fim de semana, Maripa, Menina Bonita.

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo/a

Serviços é coisa lata. Mas, de facto, também faço uma espécie de agricultura embora agricultura de montanha. Pescas por acaso não. Já fiz, mas já lá vão mais de mil anos. Extração mineira também não. Indústria, bem, indústria não posso dizer que não mas, também, indústria é hoje conceito tão abrangente (indústria do cinema, indústria do turismo, sei lá). Comércio? Bem, comércio está em todo o lado: nos serviços, na indústria, na agricultura, por tdo o lado. É que, se não se vender, não vale a pena fazer. Portanto, dizer o quê...?

E um bom fds!