sexta-feira, julho 24, 2020

Não temos o tempo todo do mundo





Há pequenos momentos. Por orgulho, eu tinha virado costas a um grande amor. Logo depois tive vontade que as coisas voltassem ao que tinham sido mas, em vez de dar um passo nesse sentido, dei no sentido errado. Acto contínuo, por razões diversas que agora não vêm ao caso, deixei que o amor de uma outra pessoa por mim me proporcionasse aquele agrado que, em querendo uma pessoa iludir-se, pode confundir-se com amor correspondido, nomeadamente correspondido por mim. Eu recebia diárias manifestações de amor e, agradada, deixava que elas me fossem prendendo. No entanto, no mais fundo de mim, eu sabia que não era bem aquilo que eu queria para a minha vida. Mas, na altura, eu não sabia se o que eu intuia que queria para mim alguma vez se materializaria e, portanto, por comodismo ou sei lá porquê, ia-me mantendo naquele romance.


Contudo, havia qualquer coisa nos beijos. Ele adorava os meus beijos, não se cansava de o dizer, escrever e cantar. Mas, sem que eu soubesse traduzir o que sentia em pensamento, muito menos em palavras, qualquer coisa no meu íntimo me impedia de verdadeiramente me entregar, nem sequer enquanto beijava. Eu sentia que uma parte de mim permanecia inexpugnável. Ele não sentia isso nem, na altura, eu sabia que o sentia. Hoje sei que sentia. Com o tempo a gente vai descodificando algumas partes menos compreensíveis da nossa existência.

Até que um dia aconteceu uma coisa.

Estávamos no S. Jorge e sei que era um grande filme. Sempre gostei de belos filmes vistos em boas salas de cinema. Gostava do S. Jorge. Estava concentrada, emocionada. Contudo, a certa altura, ele chegou-se a mim e disse-me que ia lá fora. Não estranhei. Se calhar ia à casa de banho. Contudo, estranhei quando reparei que não voltava. Mas o filme prendia-me. Sair para ir lá fora ver o que se passava parecia-me um desperdício. Mas depois, como tardasse demais, tive mesmo que ir. Estava sentado, num sofá do corredor. Perguntei o que se passava. Disse-me que tinha ficado mal disposto com uma determinada cena. Não percebi. Disse-me que tinha sentido que, se ficasse a ver, poderia desmaiar. Não percebi mesmo nada. Tinha sido uma cena no meio de muitas outras, já não me lembro bem mas tenho ideia que alguém agredia alguém, que havia sangue. Eu estava estupefacta. Um filme tão bom e ele cá fora, sem o querer ver, por causa duma cena violenta. Não quis voltar e eu, aborrecida, fui ver o resto do filme sozinha. Nesse dia, ganhou forma a ideia que se vinha formando dentro de mim. Ele não era para mim. Foi como se tivesse havido a revelação de que eu estava à espera.

A partir daí, de vez em quando lembrava-me disto e uma mancha de desagrado alastrava e anulava todo o amor, ternura e agrados com que me me cobria. Lembro-me que era frequente que, enquanto ele me beijava com paixão, eu sentia que nunca eu entregaria a minha alma e o meu corpo a alguém que não tinha suportado ver uma cena de nada, só porque tinha sangue, e me tinha deixado sozinha a ver um filme tão bom. Jamais seria meu companheiro para a vida.

De facto, foi uma questão de tempo e de circunstâncias. Nunca falei sobre isto com ele nem nunca fui capaz de lhe dizer que, certamente não por sua culpa, ele estava muito aquém do que a minha alma e o meu corpo reconheciam como essencial.

Curiosamente não consigo lembrar-me do filme. Recordo 'A amante do tenente francês' mas não deve ter sido esse, esse não tenho ideia que tivesse cenas mais violentas, só me lembro do amor entre a Meryl Streep e o Jeremy Irons, da voz deles, uma voz tão bonita, do olhar apaixonado entre eles. Não acredito que fosse esse.

Já vivi muitos anos. Tem passado a correr. Sinto-me ainda a mesma jovem que se deleitava e embevecia com tudo, sempre com vontade de rir, sempre disponível para ir em busca de bons momentos. Mas, se me puser a pensar, percebo que a minha vida já pode começar a organizar-se por décadas. Um dia que eu tenha sossego ainda hei-de sentar-me a escrever as minhas recordações, especialmente aquelas de que aqui não posso falar. De forma geral, tem sido tudo bom. É com doçura que as evoco.

Tenho ideia que, salvo talvez o caso referido e algumas concessões a nível profissional que, por forças que mais alto se levantaram, sempre fui muito franca, muito directa na expressão das minhas vontades, sempre fui atrás do que queria, sempre neguei aquilo que não queria, sempre me deixei tocar pela beleza, pela emoção dos bons sentimentos.

Sempre tive muito presente a noção da minha finitude, a certeza de que sou efémera e que tudo o que de bom se relaciona comigo deve ser agarrado com agradecimento e cuidado pois pode desaparecer. Vita brevis. Tempus fugit.

Por isso vos digo: aquilo que queremos, que queremos não à superfície mas no nosso íntimo, deve ser procurado e, uma vez encontrado, preservado e acarinhado. E aquilo que não nasceu para fazer parte da nossa vida deve desaparecer para que se abra o espaço onde a felicidade verdadeira deve poder florescer. Não temos a eternidade pela frente. Temos apenas estes breves instantes em que temos a sorte de poder viver.


O vídeo abaixo, que o omnisciente algoritmo do YouTube hoje me apresentou, pelo que vejo na apresentação de Slyfer2812, resulta de uma compilação de excertos de filmes e respectiva edição de um jovem estudante de vinte anos. Não apenas gostei muito como fiquei surpreendida por um jovem de vinte anos já ter uma percepção tão nítida do que é importante na vida.


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As pinturas que hoje resolveram aqui dar as caras são de Micky Allan e gosto delas

De Nick Cave não vale nem a pena falar: gosto sempre, não sou isenta
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Um dia feliz. Uma vida feliz.

7 comentários:

Anónimo disse...

Esse quadro do M.Allan (Poplars?) é simplesmente horrendo. Uns "ciprestes" alaranjados. Onde está a beleza de semelhante coisa?
Há gostos para tudo, até para abortices.

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo/a

E dos outros quadros gostou? E dos vídeos gostou? E do que leu gostou?

Ou só desgostou foi da referida obra? E o que o motiva é aquilo de que não gosta, é isso?

Olhe que o tempo é curto... e gastá-lo apenas com aquilo de que não se gosta não parece a forma mais inteligente de gastar um bem tão finito e precioso como é o tempo. Digo eu...

Um resto de dia feliz.

Paulo B disse...

Na muche (mas nada fácil de executar)

Na mesma linha, partilho: https://youtu.be/32ZOklRlaOw

Paulo B disse...

Anónimo,
Como tem gostos refinados, sugiro: https://vimeo.com/213501469

MARIPA disse...

Já disse uma vez que gosto de a ler e repito.Estou a "conhecê-la" aos poucos e do que sinto é que é uma pessoa frontal,com sentimentos e valores. Sabe comunicar muito bem com quem está do outro lado... e já aprendi algumas coisas consigo!

Gostei da resposta que deu ao Anónimo, principalmente as duas últimas linhas.

Há um provérbio aborígene que diz "Somos
todos viajantes deste tempo e deste lugar. Estamos só de passagem. Viemos para observar, crescer e amar... Depois voltamos para casa."

Tudo de bom. Saúde, paz e amor e dias felizes.

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

Já me fez rir... :)

Então não arranjou cena mais requintada, mais clássica, para oferecer ao Anónimo/a requintadésimo...?

Até me deu más ideias...

Abraço, Paulo!

Um Jeito Manso disse...

Olá Maripa,

Obrigada pela simpatia. Palavras boas de ler, em especial as sábias palavras do provérbio.

Mas, olhe, vou já avisando, não se fie muito em mim. Tenho um lado meio maluco, sabe...? Gosto de me divertir, gosto de provocar, gosto de responder a provocações. Não me levo a sério, não sou dada ao lado pesado e bem pensante da vida, prefiro ir passeando na ligeireza, na boa, curtindo o que há de belo e de bom por aí e, se me aparecem a moer a paciência, pode até acontecer que me divirta a dar troco.

Saúde a alegria para si e para os seus, Menina Maripa!