segunda-feira, outubro 19, 2020

Perdas, ausências, saudades no ano da (des)graça de 2020

 


Tenho saudades de algumas coisas e de algumas pessoas. Não posso dizer que seja saudosista e talvez que o que sinto nem seja exactamente saudades, talvez seja mais a falta que sinto. Há coisas ou pessoas que ganham espaço dentro de nós e, quando nos faltam, deixam um vazio. Claro que o tempo vai empurrando outras coisas e outras pessoas para esse espaço mas, não nos enganemos, há faltas que não se ultrapassam.

De vez em quando, do nada, sinto uma vaga de tristeza e saudade que cresce dentro de mim. Sem que tenha tempo para controlar, dou por mim com lágrimas nos olhos. Felizmente é à noite que isto me dá e, portanto, não há quem o veja nem me peça explicações. Não teria como dá-las. Não é nada de muito definido. É, sobretudo, aquele sentimento de saudade. Por sorte, não é frequente. Mas, até pela raridade, maior a estranheza e intensidade.

Quando o 2020 chegou, pensei que um número tão redondo viesse carregado de coisas especiais. E assim foi mas, infelizmente, quase todas especiais no mau sentido. Perdas, sustos, preocupações. Também coisas boas, claro, mudanças. Mas as perdas e os abalos têm sido violentos.

Nem falo nas perdas pessoais que essas são dolorosas demais para poderem estar aqui mas, depois, há todas as outras.

Lembro-me do dia em que saímos do escritório, despedindo-nos uns dos outros, preocupados, um pouco tristes, sem sabermos quando voltaríamos a ver-nos, sem sabermos o que viria aí. 

As reuniões por teams ou zoom ou hangout atenuaram as distâncias a nível profissional mas há muitas pessoas com quem não tenho relações profissionais directas que não vejo há meses. Todos os dias havia um bom-dia dado por quem estava na recepção, um bom dia, conversas e sorrisos trocados na copa. E havia aquelas pessoas com quem se trocavam ideias, inofensivas fofocas, sugestões. Temos falado mas muito menos, nada que se compare. 

E, pelos anos, juntava-se mais família e parentes e, este ano, foi tudo minimalista ou, mesmo, nulo. Pessoas que este ano nem sequer vou ver. Quando chegava o natal eu tinha fotografias para oferecer a toda a gente, feitas nas vezes em que tínhamos estado juntos. Este ano não devemos encontrar-nos pelo natal e, a muitas pessoas, não terei fotografias para distribuir.

Penso que gostava de convidar algumas pessoas a virem conhecer a nossa casa nova. Gostava de organizar um almoço ou um jantar, todos à volta de uma mesa grande. Agora não podemos. 

No outro dia, no escritório, tive uma reunião com um colega com quem sempre muito conversei. Contei-lhe da casa. Ficou admiradíssimo. Sabia como nós gostávamos tanto da outra casa. Achou uma aventura. Percebi que, ao ver o meu entusiasmo, achou engraçado, deu-me os parabéns, desejou-me as maiores felicidades. E ria, achando divertido esta nossa decisão. E fez muitas perguntas, mostrei-lhe fotografias, percebi que gostaria de vir conhecer. Em situação normal, talvez eu organizasse também uma vinda dele cá, talvez dele e de outros que asseguram sempre um ambiente animado. Agora, não pode ser.

Mas sinto também falta do gosto que tinha em andar pelas livrarias. Toda eu mudei. Sinto agora como que uma certa repulsa pelo acto de consumir. A desabituação está a marcar-me. Vejo as minhas estantes, agora tão bem organizadas, tantos livros por ler -- e não consigo ter vontade de voltar a uma livraria. Quando penso nisto sinto um aperto. Se muito mais pessoas houver como eu é toda a cadeia ligada ao livro que se afunda: escritores, editores, livreiros. Mas a mesma coisa com vestuário. Não faço a mínima ideia de como estão as modas. Tenho roupa que chega e sobra para os próximos anos. Desinteressa-me o consumo. Ir a lojas, provar roupa? Nem pensar. Para quê? Para acumular roupa? Não. E os perfumes? Sinto pena de já não ter a vontade e a oportunidade que antes tinha de me perfumar. Pouco me perfumo. Só quando vou ao escritório. Se me perfumo fora disso já me parece escusado. Recebo mensagens das lojas de perfumes: oferecem pontos, vales, vouchers. Nada me tenta. 

E sinto saudades de ir ao cinema. Ah, isso sinto mesmo. O escurinho do cinema. Não se compara a ver filmes em casa, nada a ver. Tenho muitas saudades de ir ver um filme numa sala de cinema -- de preferência sem pipocas por perto. Há uma emoção, uma envolvência que é especial, para a qual não há sucedâneo. 

Vejo os filmes que estão a ver a luz do dia, não sei quando virão para Portugal mas, ainda que venham, não consigo pensar em enfiar-me numa sala fechada, com ar condicionado cuja qualidade desconheço. Mas como gostaria que a pandemia acabasse e eu pudesse voltar a ir ao cinema. Será que, com o tempo, se isto se prolongar, acabarei por me esquecer do bom que era?

Quando estava em Março ou Abril pensei que, com o confinamento, as pernas da curva haveriam de ser partidas e que, até ao verão, a coisa iria ficando controlada e que, no verão, ao ar livre, a coisa seria suave e, quando o verão acabasse, já deveria haver tratamento eficaz. Não acreditei que houvesse vacina mas acreditei que tratamento haveria. Acreditei mesmo. Ou seja, acreditei que, chegando ao outono, com tanta ciência focada na causa, apesar de uma segunda vaga, a covid já haveria de ser virose da treta. Não imaginei nem que a curva viesse com toda esta força nem que se estivesse ainda tanto na infância da arte. Ainda não se sabe porque ataca tanto uns e nada outros, ainda não se sabe como impedir a progressão fatal em alguns casos, ainda não se sabe a extensão dos danos, ainda não se sabe em que condições reincide. Pouco se sabe. E disto eu não estava à espera.

Estamos ainda no início do Outono, com o Inverno pela frente, tempo de frio e chuva em que não dá para conviver na rua, tempo em que nos locais de trabalho e escolas não dá para estar com as janelas abertas, espaços confinados, propícios ao contágio, tempo, ainda por cima, de gripes e resfriados. E os números a crescerem a partir de uma base que já é alta demais. Não é bom.

Em Março eu pensei: põe-se a malta toda em casa e isto quebra. E quebrou. Mas agora em Outubro todos sabemos o mal que o confinamento geral faz e, por isso, não defendo isso. Mas tem que haver outras medidas. Isso tem que haver. Tem que haver medidas para impedir a disseminação descontrolada do vírus na sociedade, sob pena de nos descobrirmos dentro do pior pesadelo. De notar que, em alguns hospitais, já há equipas clínicas em quarentena, equipas de manutenção de equipamento médico em quarentena, e isso, como é óbvio, reduz a capacidade de resposta. A partir de agora, nada ajuda. 

O lema de todos sempre foi 'esperarmos o melhor, prepararmo-nos para o pior' e, neste momento, temo que que não esteja a ser feito tudo o que há para fazer para nos prepararmos para o pior. Ou melhor: para impedirmos o pior.

E eu não gostaria nada de, daqui por uns meses, estar ainda mais pessimista do que já estou e com mais saudades do que já estou. 

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E adiante que se faz tarde: estes são dois filmes que gostaria de ver. 

Será que, quando chegarem a Portugal, já conseguirei ir, descontraidamente, ao cinema? Tomara, oh céus, tomara.





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Pinturas de Marcella Barceló ao som de Nick Cave interpretando Suzanne de Leonard Cohen

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

2 comentários:

Corvo Negro disse...

Cara UJM, do pouco que conheço de si, aqui deste cantinho inspirador, você é uma resiliente lutadora, pelo que estranho vê-la a deixar-se "migrar" para a mó de baixo do ceticismo. Sabendo-a uma mulher que lida e trata muito bem os números, sugiro-lhe que invista um pouco na análise dos números da pandemia Covid-19 e verá que a relatividade dos mesmos (p. ex. doentes Cvid versus outros doentes; mortes Covid versus mortes de outras doenças) não se conjuga com tudo aquilo que diariamente nos impingem na comunicação social. O "bicho" é novo e aparentemente altamente contagioso (ainda resta saber porque não consegue contagiar alguns), mas é relativamente pouco mortal e quando o é geralmente mata pessoas que já há muito ultrapassaram o limite da esperança média de vida, pessoas que teriam que morrer mais dia menos dia. Eu não devia escrever isto porque tenho 71 anos e estou no chamado grupo de risco e perto do fim do meu "prazo de validade", mas sendo duro, politicamente incorreto e deixando transparecer alguma insensibilidade, é a realidade da vida. Alguém escreveu há uns tempos, a propósito dos confinamentos e do encerramento de Unidades Económicas, que não é necessário matarem-nos para podermos viver, e é mais ou menos isso que nos estão a querer fazer, a matar-nos para vivermos e os governantes, genericamente, estão a deixar-se ir na onda. Não será de estranhar que, segundo a Forbes, desde que começou a pandemia os ricos do Mundo aumentaram a suas fortunas em 30%? 30% em 6 meses é obsceno, e em contrapartida os pobres fenecem e os remediados caminham para pobres. Resumindo, acho que não nos podemos deixar vencer pelo ceticismo porque alguém neste planete nos pretende ludibriar. Teoria da conspiração? talvez não. Veremos.

Um Jeito Manso disse...

Olá Corvo,

Sou dada a análises e projecções e, neste caso, digo: no caso desta 2ª vaga estou apreensiva. Seja porque o bicho é mesmo mau, seja porque é percebido como mesmo mau, a verdade é que tem contaminado tudo, nomeadamente a confiança sem a qual todas as economias soçobram. A força com que os contágios se dão e o facto de o número (mesmo que percentualmente baixo) de casos a necessitarem de cuidados intensivos e o tempo que lá estão, saturam o sistema de saúde. E tudo isso é mau de verdade.

Estar confinado e com medo é mau mas não vejo como evitá-lo. Nos casos em que não levam a sério a perigosidade do animal, os números disparam para níveis que envergonham a humanidade. Portanto, Corvo, neste momento a minha garra de lutadora só me dá é para pedir que haja maior divulgação dos riscos e dos cuidados a ter. Ainda vejo muita gente inconsciente e, neste caso, o medo pode ser um bom aliado.

Saúde, Corvo!