domingo, agosto 09, 2020

Flores geladas para me ajudar a ter melhores epifanias nesta noite tão quente




Há quem leia bem, sentado numa mesa de café. Eu não. Em ambiente movimentado parece que não consigo abstrair-me o suficiente do que me rodeia para me entregar totalmente à leitura. De resto, não gosto muito de ler sentada. Não me dá jeito. Prefiro ler reclinada. Não deitada: reclinada. Sempre pensei: devia ter, junto às estantes, uma coisa onde me pudesse reclinar. Agora tenho um cadeirão reclinável junto aos portugueses mas, junto aos estrangeiros, quanto muito deito-me no sofá já que os estrangeiros estão na sala de estar, nesta em que agora estou. Mas às vezes não vem muito a propósito. Primeiro, pode estar mais gente na sala e não dá jeito nenhum eu monopolizar os três lugares do sofá para me pôr a ler e, depois, aquele sofá é tão fofo e bom que, mal ali me deito, deixo-me dormir.

Pois bem: acabei de ter uma epifania. Nestas minhas mudanças, só me apetece que não fique pedra sobre pedra, tudo do avesso, vida nova, e acabou de me ocorrer pegar na chaise longue que está na sala da lareira e colocá-la junto à janela na saleta que vou forrar a estantes. Fica a biblioteca dos lusófonos -- dos lusófonos e não apenas dos portugueses, e incluirei também os poetas -- e, nela, também uma pequenina secretária, quiçá a que me trará a possibilidade de vir a escrever grandes obras (não sei quê e água benta, certo...?) e, para me reclinar a ler, a dita chaise longue. 
De cada vez que aqui falo na chaise longue recordo-me sempre do dia em que a dita veio cá para casa. Como não encontrei nenhuma tal como eu queria, resolvi mandar fazê-la. Comprei um tecido, levei uma fotografia e fui ao estofador a quem de vez em quando recorro. Por essa altura, ia havia uma festa cá em casa. Era uma época de muita festança chez moi. Não me lembro se era o aniversário da minha filha, se quê. Sei que eu tinha pedido para vir com um ou dois dias de antecedência mas ele, o estofador, perfeito de mãos, é um bocado lento de compreensão e de execução. Portanto, chegou no exacto dia da própria festa. Mas eu estava a trabalhar durante o dia. Estava a minha filha em casa. Combinei com ela onde é que era para ficar e o pagamento. Quando cheguei a casa, no meio do reboliço que era sempre preparar uma festa em pouco tempo, estava a minha filha perdida de riso. Acho que já aqui o contei. Apareceu-lhe um calmeirão à porta, e eu não lhe tinha dito que ele era um tal calmeirão, mas ga-ga-ga-ga-go para além da conta, e eu não a tinha avisado de tal, a dizer que trazia uma ó-ó-ó-ó-to-to-to-to-ma-ma-ma-ma-na-na. Ora a minha filha não fazia ideia que à dita chaise longue também se chamava otomana. Portanto, gerou-se ali à porta uma confusão agravada pelo facto do dito calmeirão não se exprimir a direito. Nem ela percebia bem o que ele dizia, tamanhas as síncopes que em que ele mergulhava entre cada sílaba da dita cuja. Primeiro que percebesse que era o estofador que ia levar a chaise longue teve que penar um bocado. Ela ria bom rir a contar-me isto e eu ainda hoje me rio só de imaginar a cena.
Aliás, os tormentos que eu já passei com aquele estofador só eu sei. Não sabe planificar os trabalhos nem calcular as necessidades de material. Uma vez disse-me que, para forrar um cadeirão grande, de orelhas, e para fazer um puff do mesmo tecido, precisava de uns certos metros. Perguntei-lhe para que largura de tecido estava ele a fazer as contas, para eu me certificar quando o fosse comprar. Primeiro que percebesse a pergunta foi o bom e o bonito. Já não me lembro qual foi, finalmente, a largura que me disse ser a habitual. Tentei que me explicasse o raciocínio para eu adaptar a quantidade caso o tecido tivesse outra largura. Esqueçam. Não conseguiu. Entre a gaguez e a dificuldade para compreender a aritmética aquilo foi conversa de surdos. Pois bem: azar dos azares, o tecido que escolhi tinha mesmo outra largura. Liguei-lhe. Não foi capaz de extrapolar. Disse-me que tinha que ensaiar. Pedi-lhe para ver com um outro tecido qualquer que tivesse na oficina pois, obviamente, não ia poder levar-lhe uma peça de tecido para ele ensaiar. No dia seguinte ligou-me. Disse-me a quantidade. Achei que não ia dar. Insistiu que sim. Eu insisti que não. Ele insistiu que sim, que ora essa, era a profissão dele, sabia bem o que fazia. Pelo sim, pelo não, levei um metro a mais. Pensei que o que sobrasse  daria para almofadas. Lá fui levar. Passados uns dias ligou-me, a gaguez extremada, enervadíssimo, a corda ao pescoço: o tecido afinal não dava e se calhar não podia aproveitar nada senão ia ficar com costuras onde não podia. Fiquei passada. Em vez de me dizer o que faltava, queria que comprasse os metros todos outra vez. Eu dizia que não fazia sentido. Aquilo tinha almofadas, tinha braços, encosto, etc, havia forçosamente costuras, tinha que poder aproveitar tudo o que já lá tinha. E ele que não era assim, que tinha que ser ao correr da fiação, que tinha que acertar o desenho. Eu passada: mas qual desenho? O tecido é liso, só com umas leves e ínfimas pintas em relevo, na mesma cor. E ele a dizer que eu não percebia, que ele assim não sabia trabalhar, tinha que pôr a peça por cima da estrutura e depois é que cortava com o desconto das costuras. E gaguejava, gaguejava, um sufoco, um tempo infinito, ele enervado, eu enervada com aquela lentidão mental. Perguntei-lhe qual a diferença: faltava mais ou menos a diferença para a quantidade que eu tinha estimado. Fui à loja. Já não tinha a quantidade toda que ele queria. Comprei um bocado a mais do que a quantidade em falta e foi isso que levei. E quase o levei ao desespero porque disse que não ia conseguir, que era impossível, que pedia muita desculpa pelo erro, que desistia do trabalho, que não ia conseguir fazê-lo sem a quantidade certa de tecido. Tentei que se acalmasse. Sugeri soluções. Mas ele que não, que era muito perfeito na maneira como trabalhava, que não fazia trabalho mal feito. Eu já passada. O tempo a passar e eu ali. Geralmente ia lá à hora de almoço. Só que, com ele, o tempo passa, passa e a coisa não desenvolve. Por fim lá estabelecemos um acordo. Costas e por baixo com o bocado que agora eu tinha trazido. E, no resto, a parte anterior. Se não fosse ao correr do fio ou outro preciosismo qualquer, paciência, ficava a imperfeição por minha conta. Contrariado, lá aceitou a incumbência.
Cá o tenho, o meu confortável cadeirão de orelhas. Não se dá por nada e creio que não se dá porque não há nada para dar. 
Agora, nestas arrumações em que tudo foi revisitado (e carradas de papel e tralha para o lixo!), apareceu um papelinho com o nome dele e o telefone. Sorte. Numa das vezes em que fiquei com o telemóvel todo limpo (habilidade de um dos meninos, coisa que nunca ninguém percebeu como é que ele conseguiu tal proeza), todos os contactos que não eram profissionais desapareceram para sempre (porque os outros foi fácil recuperar) e o do estofador tinha-se perdido de vez. Até agora.
Bem. Mas esta minha epifania de colocar a chaise longue junto à janela e perto dos lusófonos não é desprovida de escolhos. Primeiro: tem a cabeceira (ou o braço) no lugar contrário ao que, onde a quero pôr, deveria ter. E, se a viro, terei que afastá-la da parede para poder ir-lhe para cima e, para isso, acho que não há espaço pois a toda a volta terei as estantes, sobrando, à justa, espaço para a dita otomana. Acresce que, como a janela é baixa, penso que o encosto longitudinal a excederá ligeiramente em altura. Amanhã logo confirmo este aspecto.

Portanto, vamos ver se a epifania terá pernas para andar.

Quanto aos estrangeiros, terão perto de si o cadeirão reclinável que estava a fazer companhia aos portugueses. E poderei ter os estrangeiros todos na mesma ala: seja policial, seja romance, sejam diários, epístolas, biografias, seja poesia.

Os de história, política, economia política e esses que são, sobretudo, do meu marido ficarão noutro sítio, perto da sua secretária de trabalho.

Os de arquitectura, que são muitos, os de pintura ou fotografia ficarão também organizados numa estante específica.
Ah, é verdade: apareceu aquele livro de fotografia que tem uns nus que deixaram o mano do meio fora de si e que, desde então, motivam buscas pela casa toda, não apenas feitas por ele mas já secundado pelos primos. Tão bem o tinha escondido que agora fiquei surpreendida ao dar com ele no meio da filatelia.
Enfim. Temas que ocupam a minha mentezita.

Portanto, para resumir: penso que me esperam belas horas de santa e descansada leitura. Tenho aqui em carteira alguns para ler e tenho que, rapidaemente, arranjar um certo narciso que me recomendaram e que, só de saber que é 'muito bonito' e que está longe de mim, me faz ficar em estado de impaciência por ainda não lhe poder deitar a mão, espreitar, degustar-lhe a qualidade da escrita.

Tirando isso, também estou a ver se consigo ter o meu lugar de eleição para poder escrever, aquele de que acima vos falei. Isto um dia em que tenha tempo para escrever, claro.

E, por hoje, é isto. Ou melhor: não passa disto.


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As flores em gelo são obra de Marisa Culatto e as The Webb Sisters confirmam o óbvio: Always on my mind

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E a si, em particular, desejo um feliz dia de domingo

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