segunda-feira, maio 25, 2020

É um desnudamento quando escorregamos da pele para fora, para o vazio







Conheço uma pessoa, que não conheço, que me disse que queria ver-se livre das palavras. E, no entanto, para mim ele é feito de palavras. Quando penso nele, penso nas suas palavras. Conhece milhares de palavras e de cada palavra ele conhece o sentido e o anti-sentido e sabe edifícios que as usam como materiais de construção. Há quem de um conjunto de pedras construa uma catedral e ele era menino para fazer o mesmo. Diz que não. Diz que está cansado delas. Mas de uma palavra nascem-lhe ramos de rosas invisíveis, bandos de pássaros inventados, rios infinitos e muito belos, montanhas secretas habitadas por seres nunca antes vistos. O seu mundo é o das palavras e eu estou em crer que ele sente através do que as palavras lhe dizem. Aliás, nem sei se sente ou se apenas constrói pensamentos que, por vezes, às escondidas, falam de emoções. Mas nem disso estou certa. Até porque o desconheço. Mas não acredito que queira mesmo esquecer-se das palavras. Aliás, estou em crer que, sem palavras, ele deixaria de existir. Pelo menos, enquanto pessoa. Talvez se transformasse em bicho. Talvez se transformasse em personagem de uma ficção que jamais quererei descortinar. Mas talvez as palavras também se recusem a abandoná-lo. Há pessoas a quem as palavras nunca abandonam. Há pessoas a quem as palavras correm nas veias e que, se não estou enganada, trocariam um amor e a própria vida pelas palavras. Pessoas que talvez tenham nascido de uma palavra e cuja vida seja a insana luta para descobrir a palavra de que nasceram.


Estive a ler aquele livro que a querida JV em boa hora me recomendou: O rei faz vénia e mata. Lá se fala de palavras, daquelas que parecem coladas aos objectos, daquelas que a gente pensa que conhece, daquelas que queremos que voem para muito longe, daquelas que escondem segredos. Palavras que não descrevem nada, palavras que existem sem razão, palavras a quem ninguém conhece, palavras sem carne, sem veias, sem escamas, palavras que só existem noutras línguas e que querem dizer coisas estrangeiras, que nos são estranhas. Ou não diz nada isso e sou eu que agora estou  a inventar o que estou a escrever? 

Por exemplo: o homem feito de palavras e que quer esquecê-las existe? Não sei. Não sei mesmo.

As palavras que eu escrevo sobre as palavras e que fotografo existem ou são meras pinturas de coisa nenhuma?


Há um lado secreto de mim, habitado por outras que não eu, outras que desconheço e a que apenas o homem das palavras tem acesso. Mas, como ele não existe, é como se ninguém a elas tivesse acesso. Ele não sabe falar comigo e eu não sei falar com ele. Por vezes, penso que ele fala a mesma língua nocturna que uma das outras que me habita mas, quando a noite se fecha, eu desapareço e dele não sei mais. A noite é um país desconhecido feito de labirintos que são percorridos por criaturas silenciosas que gostam de percorrer caminhos sem fim que acabam quando a noite acaba.

Caprichos negros, raivosas melancolias, ânsias da cor das nuvens que se avolumam no mar -- extrai Herta Müller da Explicação dos Pássaros de António Lobo Antunes para o colocar no livro de onde extraí eu o título deste post. 
E eu leio e gosto de ler. Não sei se são palavras que façam sentido mas as palavras que fazem mais sentido são palavras assim, intemporais, desligada da geografia em que foram proferidas.
Se, por exemplo, eu disser que caminhei, um dia, sobre uma estrada que descia e que voei ao lado de canteiros de flores e que do nada, dessa varanda encantada, nasceu um abraço prometido, um sorriso eterno, uma surpresa sem palavras e um fio que se estendeu pelo infinito, para sempre eu presa a esse fio, e que, por ele, enfrento minotauros enlouquecidos e desfaço tapeçarias que invento todos os dias, será que alguém pode levar a mal que nada se perceba do que digo? 

A liberdade de cerzir palavras -- construindo esconderijos, recantos, segredos, loucuras, fantasias, promessas, pedrinhas, conchinhas, caligrafias, gestos perfumados, pétalas de flores indecentemente sedosas, lânguidos sussurros de inexistentes leopardos azuis, gritos de pássaros loucos, memórias acarinhadas como raros tesouros, sombra de árvores acolhedoras como ventres maternos, gatos deslizando no silêncio da noite, sonhos, bordados, umas mãos que nos esperam -- essa liberdade ninguém me tira.  Mesmo que nada faça sentido. Aliás, sobretudo se não fizerem sentido. Já o confessei. Não quero despojar-me de palavras, gostava era de ser capaz de dizer coisas que fizessem sentido para outras pessoas como se fossem elas que as tivessem dito. Ou que façam sentido num outro lugar, num outro tempo, como se eu tivesse renascido para as dizer, como se eu tivesse que inventar uma pessoa para gostar de me ler.


______________________________________________________

Hoje à noite apareceu um pirilampo. Estava na parede, junto à porta, do estúdio. Luzia como se não fosse possível. Vê-se e custa a acreditar. A natureza é cheia de improbabilidades. Há muitos anos que não via um pirilampo. Os meninos nunca tinham visto e creio que a mãe deles também não. 

O gato, que a minha filha diz que é uma gata, senta-se agora sobre a mesa de pedra que está em frente da sala. Vê-nos a olhar para ela e deixa-se ficar a olhar para nós. 

Os pássaros têm cores cada vez mais vistosas. Hoje esteve aqui um à porta que tinha o papinho num verde pistácio. Saltitava de alegria. E as rolas andam muito próximo, vivem nestas árvores que eu plantei e que agora roçam o céu. São lindas.

Há inúmeras lagartixas, perfeitas, ágeis. Não sei a que se deve. Parece-me um milagre a existência de todos estes animais.

A borboleta amarela que todos os anos me acompanha enquanto caminho veio de novo ao meu lado, minha guardiã, minha alma efémera e fugidia, minha alma todos os dias renascida.


_______________________________________________________________________

E, a propósito de coisas que parecem estranhas e sem sentido mas que, de tão inusitadas se tornam insólitas e especiais, deixem que partilhe convosco um vídeo que me prendeu do princípio ao fim sem que eu saiba dizer porquê. Parece-me uma coisa meio louca, sem nexo, insustentável. E, no entanto, uma coisa tão bonita, tão transcendente, tão indefinível.


_________________________________

Desejo-vos uma boa semana.

Saúde e motivação. E que a beleza das coisas não vos abandone.

2 comentários:

Estevão disse...

… pirilampo, pirilampo,
gosto muito de te chamar arincu !

Pôr do Sol disse...

Obrigada UJM.

Gostei do texto, como quase sempre.

Mas mais uma vez fiquei encantada com o video. Ja tinha visto alguns do genero mas fico sempre surpreendida com a maravilha de um(?) só Homem.

Gosto muito do campo mas não me vejo a viver muito tempo isolada.

Nesta época, em que ouvimos apelos ao retorno rapido ao consumo, pomos na balança os beneficios que ficam na Natureza depois do confinamento e a economia. Ambos pesam muito. O desemprego e a saude preocupam-nos.

A quantidade de edifícios de escritórios, grande negocio há poucos anos e, agora vazios, sem que o trabalho que lá se fazia tenha parado, não é simpatico de se ver. Só na rua onde moro há tres, dois deles ocupando quarteirões inteiros. Os pequenos restaurantes sofrem com as ausencias de grupos que iam buscar os almoços e comiam em frente aos computadores. Era deprimente ver.

Sei que quase toda esta gente, muitos deles jovens, está em teletrabalho e muitos continuarão. Só me pergunto que será destes escritórios todos super equipados e agora desnecessários?

Tres meses bastaram para muitos de nós percebermos que não nos faz falta tanta roupa, sapatos ou trocar de carro de dois em dois anos.

A saude e a economia são preocupações, mas e a consciencia de quem tem o consumo desenfreado de tal modo enraizado pensarão no assunto?.

De economia só percebo da minha, a domestica. Oiço os tais comentadores a metro, gritarem que não haverá economia sem consumo mas terá mesmo de ser assim?

Há gente feliz vivenda de outro modo.