domingo, maio 24, 2020

Daqui por uns anos, como recordarei este mês de Maio?





De tarde, estive a ver com atenção aquele bicho que a minha filha fotografou. Está no telemóvel dela pelo que não posso mostrar-vos. Tem umas mãozinhas com uns dedinhos redondos, tem picos no dorso, não tem rabo. Estávamos na sala da minha mãe e vimos um animal colorido, igual. Foi o meu tio que lhe trouxe ao vir de um passeio a Barcelona. A minha mãe esclareceu: do jardim do Gaudi, acho. Mas fico na mesma. Um dos meninos foi ver ao google e disse que, se calhar, é um lagarto espinhoso. Mas as mãos não parecem ser e os picos não são bem assim. Iguana não é. Talvez um misto. Se calhar um bicho misterioso made in heaven.

Ao fim do dia, ao regressarmos, o menino mais novo pegou num pau e, de mangas curtas e descalço, foi em silêncio fazer uma caminhada com a mãe e com o irmão. Disse que queria meditar. Disse que, por estar a meditar, não sentia frio. E estava frio mas eu percebo-o pois eu, que fui também caminhar e fotografar, fui também a vogar acima das coisas terrenas e também não senti o frio. Quando chegou cá acima, perto da casa, sentou-se no caminho, virado para o pôr do sol, e ali ficou, sempre em silêncio, em total comunhão com o espaço, com o momento. Fotografei-o lá de baixo e continuei a minha caminhada. A minha filha disse que ele depois se deitou. É um menino surpreendente.


Ao jantar comeram como dois lobos apesar de terem lanchado como gente grande. Esse menino, o mais novo, disse que a quarentena tem coisas boas. Por exemplo, se não fosse a quarentena não estariam tanto tempo aqui. Referiu também que, se não fosse a quarentena, a mãe não teria feito o doce folhado com creme de pêra. Nem a lasanha. Aí o mais velho, que ouvia aquela conversa sem se desviar do seu ataque ao prato, observou: 'Embora a lasanha não estivesse assim tão boa...'. Aí a cozinheira encheu-se de brios: 'A segunda estava melhor. Na primeira é que as placas ficaram duras'. O mais velho confirmou: 'Pareciam de pedra'. Ela explicou: 'Com isto, deitam-se fora as embalagens exteriores e por isso fica-se sem as instruções. Por isso, segui a receita. Coloquei-as directamente sem as amolecer antes'. Também já me aconteceu mesmo. Nunca mais fiz lasanha por causa disso.

Perguntei-lhes se não tinham saudades dos colegas. Que sim. Mas sem grande entusiasmo. Começam a habituar-se a estar com eles por via remota. Adoram estar aqui e isso compensa-os das saudades dos colegas de carne e osso e dos jogos de futebol.

Quando estávamos em casa da minha mãe, ligámos nós para os outros meninos pois tinham-nos ligado antes de lá chegarmos e queriam ver a bisa. O bebé ficou admirado de estarmos todos de máscara. Ficou sério, intrigado. Quando nos falamos nos outros dias andamos aqui à vontade mas, se vamos a casa da minha mãe, queremos que ela ande de máscara e nós, logicamente, também.

Tempos difíceis.


Só de pensar em protocolos de distanciamento, máscaras, descalçar sapatos, cuidados a toda a hora e etc. já me apetece manter-me aqui, em reclusão. Temos que nos ir habituando e temos que saber viver com o merdinhas por aí à solta, insignificante e invisível. Mas, nisto como em muito mais cenas nesta vida, é difícil perceber qual a fronteira entre o andar à vontade ou andar à vontadinha. E eu, que não sou muito de me preocupar com fronteiras, só de pensar nestas coisas até parece que perco a vontade de sair de casa ou de fazer visitas.

No regresso, ao sentar-me no carro, tirei a máscara. Quando parámos na estação de serviço e resolvi entrar para comprar gelados para todos, já não sabia dela. Estava no chão, eu já com os pés a roçar nela. O meu marido abanou a cabeça. Felizmente tinha trazido uma de tecido que era a que ia pôr antes da minha filha dizer que aquilo não protege coisa nenhuma. Mas dadas as circunstâncias tive que a pôr. Quando fui pagar os gelados, o rapaz pegou neles e revirou cada um à procura do código de barras. E eu a olhar para aquilo e a pensar: agora a seguir vou eu pegar no papel plastificado no qual ele mexeu e remexeu. E odiei aquilo. Odiei os meus receios. Odiei esta situação. Fico sem saber se é excesso de zelo da minha parte ou se é mesmo assim. Fico a achar-me parva, ridícula. Quando cheguei ao carro, abri as embalagens e cada um tirou de lá o gelado sem mexer na embalagem. No fim da manobra, limpei as mãos com álcool-gel. As embalagens ficaram no chão do carro. Uma estupidez tudo isto. Uma pessoa virada do avesso, o mundo virado do avesso. Não tenho pachorra.


Gostava que a minha mãe fosse para a universidade sénior. Não pode. Está fechada. Antes andava na ginástica. Agora está o g ginásio fechado. Dantes as amigas visitavam-na. Agora imploramos-lhe que não as receba. Dói-me tanta restrição, tanta impossibilidade.

Uma coisa que me incomoda, esta porcaria da covid. Prefiro nem pensar muito nisto porque sinto sempre que me faltam várias peças para conseguir desenvolver um raciocínio escorreito. Penso: se fosse muito contagioso, não havia duzentos e tal por dia, havia milhares. E porque é que o R0 anda abaixo de 1? Ainda não há gente imunizada em número suficiente para partir as pernas às cadeias de transmissão. Mas depois vejo que numa missa no Reino Unido ficaram uns quarenta infectados de uma só vez. Como? Toda a gente tossia uns para cima dos outros? Não pode ter sido isso, já toda a gente foge a sete pés de quem tosse. Não percebo. Quantos para lá entraram já infectados para terem contagiado tanta gente? Que porcaria de coisa é esta em que uma pessoa não consegue juntar as peças e fechar o puzzle?

Raios partam o infectado do corona.

Mas adiante.


Posso é dizer que o tempo tem estado uma maravilha e que ao fim do dia a luz está linda e que, quando estou prestes a ir-me embora ou quando estou longe, é desta luz que mais sinto saudades, sinto falta, sinto carência, sinto o peso da ausência. Quando se gosta muito de uma coisa ou de uma pessoa a gente sente que vem de lá uma luz que nos envolve e alimenta. Penso que é isso que faz verdadeiramente a diferença. Às vezes não se sabe, de certeza absoluta, se aquela pessoa, aquela casa, aquele quadro, aquela música são os tais. Mas é simples: quando se duvida é porque não é, porque, quando é, a gente sabe, a gente sente que sim -- porque tudo se ilumina, não apenas em torno do que amamos como a luz do amor também nos ilumina a nós, ao nosso olhar, à nossa alma. E sentimos que não há dúvida possível porque a luz é o maior aliado do amor. E o meu imenso amor por este lugar abençoado tem muito a ver com a luz que envolve as árvores, as flores, os muros, os caminhos, a mim, a todos. Fotografo tudo. A flor, a pedra, a árvore, os muros. Em tudo a luz pousa com doçura e de tudo vem uma luz dourada que me adoça e aquieta a alma.

E soube agora que morreu a Maria Velho da Costa. Tenho vários livros dela. Vai pesado este mês de Maio. Mas não quero falar nas trevas que associamos à partida, prefiro continuar a pensar na luz dourada que envolve a nossa memória quando recordamos aqueles que amamos mesmo que se tenham ido. Estão para lá do visível. Mas estão lá.


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E um bom dia de domingo.

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