terça-feira, agosto 13, 2019

Manuel, o grande executivo, caíu numa armadilha


O que lerão mais abaixo vem no o seguimento de Confissões. Meias confissões. Algumas omissões.
que já vinha no seguimento de Logo quando o cerco estava a apertar-se...
que veio a seguir a Manel contrata Clara que, por sua vez, 
vinha no seguimento de  Como definir o que não pode ser dito?
que já se seguia a A oradora-surpresa 
que foi, afinal, o início disto tudo


Retomo. Tentando manter alguma distãncia, tentando não expôr demasiado o que supostamente deve ser mantido na penumbra, vou ver se adianto um pouco mais desta história que, a bem da verdade, não se pode dizer que seja exactamente uma bela história.

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E encontrámo-nos. Eu e Clara. Como sempre, por mero acaso. Clara contou-me o que eu já sabia desde o início: alguém do país P 
(não posso dizer qual país; e ‘alguém’ também não será exactamente uma pessoa mas talvez um grupo de pessoas de uma empresa desse país, integrada na estratégia expansionista desse país) 
tinha obtido informação confidencial, completa, da nossa empresa. Tinham em seu poder o plano estratégico, o plano operacional, o project finance, relatórios de investimentos, estudos de mercado, análises detalhadas de custeios, os pricings nas diferentes geografias, os desenhos técnicos, etc. Tudo.

Do que se sabia, o computador do Manel tinha sido pirateado. Contrariamente às recomendações, não estaria encriptado. Também contrariamente a todas as recomendações teria usado as redes wifis abertas dos aeroportos e dos hotéis, o que, é mais do que sabido, é autêntica via verde para os hackers se servirem à vontade. Nada que espante quem acompanhe estas cenas: com receio de não se desembaraçarem sozinhas quando estão em solo estrangeiro, muitas pessoas aliviam nas medidas de segurança e são, sem o saberem, um apetecível alvo para quem procura informações críticas. E se só isso já seria grave demais, o pior foi o que ainda aconteceu em cima disso. 

A palavra a Clara: 'Nada de novo. Dos livros, estás a ver. Numa das viagens, uma mulher ao lado dele. A lição bem estudadinha, coincidências, afinidades, ele surpreendido com tantos pontos em comum. Mutuamente agradados, apresentam-se: ele diz quem é, onde vai, o que vai fazer. Ela diz que é correspondente. Mostra entusiasmo. Podia até preparar um artigo sobre as andanças dele pelo mundo dos negócios. Ele diz que não, que não tem interesse. Ela diz que tem, que ele tem até muito. Ele fica cada vez mais agradado. Morde o isco. Só se for não sobre ele mas sobre a empresa, coisa geral, sem pormenores. Ela acha bem, diz-lhe que seria bom em termos de imagem, sairia um artigo numa plataforma de referência lida em todo o mundo. Ele acede. Tudo a bem da empresa, disse ele. Sabes como é. Qual o homem que resiste à perspectiva de adulação por parte de uma mulher interessante? Nem tem a ver com ser bem ou mal casado. Sabes: aquela vontade de aproveitar o tempo, em fazer parar o tempo que passa, aquele prazer em experimentar uma aventura, o gosto em aflorar o interdito, o querer voltar a sentir o coração a bater como na adolescência. Sabes. A adrenalina de quem atravessa continentes, de quem enfrenta desafios. O consolo de um abraço apaixonado. Sabes como é.'

Eu ouvia-a em silêncio. Falava com tal paixão no olhar, tentava de tal maneira conter a emoção na voz que pensei que Clara falava dela própria.

Talvez percebendo o que eu estava a pensar, continuou mas em tom neutro, sorrindo, creio que simulando alguma complacência: 'Tudo by the book: trocaram contactos. Jantaram. Foram para um bar. Continuaram a conversar. Ele é um bom conversador. Ela pediu para gravar, para o artigo. Ele não viu mal. Havia jazz. Beberam. Ouviram, quase in love. No dia seguinte, à noite, quando ele já tinha cumprido a agenda, voltaram a encontrar-se. Repetiram. Uma boa companhia, ela. Animada. Ele todo inchado com o interesse dela. Continuou a conversa, continuou a gravação. Só que a noite acabou no quarto dele. Estava-se mesmo a ver, não é?'

Eu ouvia sem surpresa. Por mais avisados que estejam, é só aparecer quem queira que parece que caem sempre. E Clara tinha razão: quanto mais reservados, mais vulneráveis.

Conclui eu: 'E, portanto, deixa-me lá adivinhar: dias depois ele recebeu um porno-vídeo com aquela noite caliente?'

Ela fez que sim com a cabeça. 'Sim. Previsível, não é? Claro que ficou para morrer. Apavorado. Arrependido. Sem perceber o que lhe tinha acontecido. Ela tinha credenciais de correspondente. Tudo tão credível. Qual o propósito? Seria uma doida? Seria perigosa? Ficou atormentado temendo as consequências, tentando adivinhar se haveria próximos episódios de um filme que poderia ser de terror.'

Encolhi os ombros, sem qualquer pena: 'Caem que nem uns patos e depois, quando percebem que caíram na esparrela, ficam com medo. Totós. E depois que haja quem, na penumbra, vá atrás a limpar a porcaria que fazem. Estúpidos.'

Clara concordou, sorrindo de forma que pareceu irónica: 'Isso, na penumbra. Saber toda a espécie de histórias e fazer com que as histórias se esfumem.'

E continuou: 'Dias depois, numa outra viagem, num aeroporto de escala, um fulano qualquer dirigiu-se-lhe falando em înglês, dizendo-se partner de uma consultora que em tempos tinha trabalhado na empresa, que o conhecia, que até tinha tido reuniões com ele. O Manel desculpou-se, que conhece tanta gente, que talvez, quem sabe. O outro explicou que estava a preparar um business plan para um grupo internacional, que andava a colher informações. E, de repente, como se tivesse recebido uma notificação no telemóvel, pediu desculpa, olhou. E, vendo, fez um ar espantadíssimo. E disse: 'Esta é boa, um vídeo, diz que é urgente, deixa cá ver. E pôs o vídeo em play e, fazendo-se espantado, mostrou-o ao Manel. Estás a ver, não estás...?'

Estava a ver, claro. Não era difícil. 'Deixa-me adivinhar. Estarrecido, completamente aterrorizado, o Manel viu-se de novo como protagonista de um vídeo do mais escabroso que se pode imaginar...?'

'Bingo', confirmou a Clara.

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Não garanto que Clara seja completamente parecida com Isabelle Huppert e o Clive Owen, por acaso, nem é nada parecido com o Manel. Mas como nem a Clara é Clara nem o Manel é Manel, talvez faça sentido assim

E continuo com o Malandain Ballet Biarritz, desta vez com Marie Antoinette. Soa-me bem enquanto escrevo. E as coreografias são tão boas e dançam tão bem.


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E talvez continue.

2 comentários:

Smiley Lion disse...

Cara UJM, estas suas crónicas fazem-me lembrar um guião para coisas do tipo "House of Cards". Estou enganado?
Abç

Um Jeito Manso disse...

Olá Smiley,

Eu não me importava nada de ser contratada como guionista de uma série do tipo 'House of Cards'. Pode ser que haja por aí algum produtor que resolva bancar a coisa e aposte na contratação de uma doida varrida como eu...

Mas, olhe, acredite que gosto à brava de me meter nisto. É para mim uma surpresa porque quando começo a escrever cada episódio nunca faço ideia onde é que aquilo vai dar. Mas é também, às vezes, uma dificuldade pois por vezes a coisa quer ir para um lado e eu acho que é melhor não.

Abraço, Leão.