quinta-feira, agosto 08, 2019

Logo quando o cerco estava a apertar-se...


No seguimento de Manel contrata Clara
que vinha no seguimento de
que já vinha no seguimento de 


Continuo. Sempre hesitante, tacteando. Não é assim que gosto de escrever. Mas custar-me-ia deixar isto a meio. Já outras vezes o fiz: quando a verosimilhança se impõe, o cuidado tem que falar mais alto. Mas fica-me sempre um travo amargo na consciência: abandonar uma conversa a meio pode parecer falta de consideração para quem se deu ao trabalho de nos dedicar alguma atenção. Por isso, na tentativa de conseguir ir prosseguindo, vou esforçar-me por não ser muito explícita, tentando cobrir a narrativa com um véu de ficção. Pelo menos, mudando os nomes...

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Algum tempo depois daquele último dia, talvez um mês e tal, não sei precisar, na reunião havida para se comunicar internamente a desistência do Fundo ACx (chamemos-lhe assim) na compra da nossa empresa XPTO (chamemos-lhe também assim), não foram aventadas razões. Pelo contrário, o que foi dito pelo responsável pela equipa que estava a ocupar-se da operação é que a gente do Fundo não tinha dado razões. A due diligence estava a avançar a bom ritmo, nenhum problema de maior foi evidenciado, poucas questões foram suscitadas e, no entanto, do entusiasmo inicial que nos tinha deixado todos favoravelmente expectantes, sem se perceber bem porquê aparentemente passaram a um ambiente de apatia, deixando que o interesse se fosse progressivamente reduzindo até que formalmente anunciaram a retirada.

Não ficámos surpreendidos. Eu, pelo menos, não fiquei. Os indícios eram cada vez mais perceptíveis. Foi, contudo, um rombo na nossa estratégia. Mas, pior seria se, por trás, estivesse aquilo que eu começava cada vez mais a temer.

Fugazmente, fui espreitando o semblante do Manel durante esse anúncio. Impávido. Fez perguntas, contestou alguns argumentos, mostrou-se preocupado como os demais, apenas de vez em quando sorrindo ao de leve como se já estivesse a antecipar o que, para outros, eram surpresas. Contudo, nada, nada no seu comportamento denunciava qualquer comprometimento ou desconforto. Temi que ele não estivesse a perceber bem a situação. Mas temi também estar a equivocar-me e a lançar infundadas suspeitas sobre um colega.

À hora de almoço fui a uma livraria daquelas que vende tudo e mais alguma coisa, incluindo livros. Acidentalmente, cruzei-me lá com a Clara. Mostrou-me os livros que tinha no cesto, eu mostrei-lhe os que tinha na mão. Depois, como quase os deixássemos cair, resolvemos sentar-nos numa mesinha no café da livraria.

Contei-lhe a reunião. Obviamente não se admirou pois algumas movimentações deixavam prever que isso ia acontecer.

Falou-me que, entretanto, teria havido indícios de que alguém estaria a começar a equacionar um investimento num país aqui perto e que isso, sim, seria muito preocupante para nós. Para nós e para o nosso país.
Voltei à minha: ‘Tomara que o Manel não tenha nada a ver com isto’. 
Ela foi peremptória: ‘Esquece. Tem a ver. Ainda não sei exactamente como, mas tem. E é isso que está a ser visto.’ 
Impacientei-me: ‘Caraças, Clara. Estamos ainda no ponto zero? Na fase das suspeitas? Não te esqueças que foi assim que começou, com suspeitas. Se ao fim deste tempo todo ainda estamos na mesma, caraças, que é que se está a passar?' 
Manteve-se calma: ‘Não estamos na mesma. Não exageres. Sabes bem que estamos no terreno e em várias frentes. Só ainda não é clara a forma como estão a obter as informações.’ 
Mas calma era coisa que eu não conseguia manter: ‘Olha, só me apetece dizer the f word. Estás a brincar comigo ou quê? Se ele está a ser acompanhado, se tu o manténs na mira o tempo todo, queres que eu acredite que ainda não sabes como é que a coisa se está a dar? Vai enganar outro, ó Clara!’ 
Ela então abriu um pouco o jogo: ‘Se queres que te diga, já tenho uma ideia e, se queres que te diga mais, acho que a fonte é dupla. A primeira foi directa, nas calmas. Mas aí, como sabes, já estancou. Embora, o que havia para se saber, já o têm do lado de lá, já levaram tudo o que queriam. A segunda -- e aí é que me está a encanitar mais -- é que acho que ele está mesmo na mão dos tipos e a passar o que não deve e isso, escuta lá, é uma gaita daquelas que, a ser verdade, vai causar um estrago dos danados na vida dele. Já estamos também a estudar a maneira de o pôr fora de combate sem estrilho mas, olha lá, tu sabes como é, só avançaremos com certezas absolutas. Mas não deve tardar’. E era outra vez a Clara que eu conhecia, implacável, segura.
Depois acrescentou, ‘Olha, por acaso, hoje vou lá.‘ 
Pensei que talvez por isso estivesse tão produzida mas logo me arrependi de pensamento tão absurdo.

Quando cheguei ao escritório, ia apreensiva. O que é que, afinal, ela já saberia?

Ao seguir para a minha ala, cruzei-me com a silenciosa secretária dele. Como o 'boa tarde' foi mais sumido que habitualmente, olhei para ela. Reparei nos olhos vermelhos. Perguntei: ‘Então...? Que foi...? Algum problema...?’

Com ar ansioso, perguntou: ‘Não soube?’.

‘Não. O que foi?’, perguntei assustada.

E ela, trémula, 'Pois, como é que poderia saber? Foi mesmo agora, se não se cruzou com eles foi por dois ou três minutos...' e pôs a mão no peito, como que para sossegar o coração, talvez para se acalmar. Mas não conseguiu. Encostou-se à parede e desatou a chorar.


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Como venho referindo, estou a usar a Isabelle Huppert como Clara e o Clive Owen como Manel. acho que assentam bem neles.

Continuo a usar os bailados da companhia Malandain Ballet Biarritz e, enquanto escrevo, vou ouvindo a música. No fim, descanso e vejo o bailado. Espero que também gostem.


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Talvez amanhã continue

1 comentário:

Olinda Melo disse...


Olá, UJM

O que terá acontecido?
Agora não nos pode deixar assim na expectativa.
Nem que tenha de ficcionar mesmo...

Os bailados, Lindos!

Beijinhos

Olina