No seguimento de Como definir o que não pode ser dito? que,
por sua vez,
já vinha no seguimento de A oradora-surpresa
Hoje pensei que o melhor seria parar. E agora ainda estou hesitante. Sei bem o que se passou com o Manel. Poderia passar já à descrição disso mas a questão é que acho que não devo fazê-lo. Por isso, sendo isso central na narrativa em que me meti, agora não sei bem como sair daqui. Por muito que tente ficcionar, alguma coisa poderá transparecer que seja inoportuno e, não podendo escrever à vontade, fico tolhida. Acreditem ou não é o que se passa. Há histórias que não são exactamente histórias.
Vou tentar mas, juro, não sei o que vou escrever. Pode até acontecer que escreva mais do que devo e que, chegando ao fim, apague tudo. Nao está fácil. A sério.
Vou tentar mas, juro, não sei o que vou escrever. Pode até acontecer que escreva mais do que devo e que, chegando ao fim, apague tudo. Nao está fácil. A sério.
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A empresa contratou a Clara. É uma profissional de mão cheia, sabe da matéria e sabe como comunicar da melhor maneira. Tem ainda a perspicácia de saber adaptar a teoria geral às circunstâncias concretas com que lida. Toda a gente gosta de trabalhar com ela. Não há conselhos dela que sejam à toa, não há dinheiro que se lhe pague que não se dê por muito bem gasto.
De vez em quando aparecia por lá. Se calhava cruzarmo-nos, cumprimentávamo-nos com naturalidade embora com a distância de quem apenas se conhece superficialmente.
O Manel nunca mais me falou no assunto. Passou a ser um tema profissional lá dele. Profissionalmente continuou como sempre: consciencioso, metódico, analítico e falando apenas do estritamente necessário. Além do mais, reservado como é, pouco deixa transparecer de humores ou estados de alma. Ao contrário de alguns que, de vez em quando, vão até à copa e ali ficam a dar dois dedos de conversa, grupo no qual me incluo, ele não. Bebe café no gabinete e muitas vezes nem sabemos se está no gabinete ou noutro país. A secretária é como ele pelo que ninguém a interroga.
Nos dias em que a Clara lá ia, creio que uma hora por semana, excepto se ele estava fora, a secretária ia buscá-la à recepção e levava-a até ao gabinete dele.
Um dia que não sabia que ela lá estava e precisando de uma opinião dele -- e não tendo validado com a secretária se ele estava disponível -- bati ao de leve como sempre faço e abri um pouco a porta, espreitando a ver se podia entrar. Estavam sentados na mesa de reuniões que está junto à janela. Percebi que conversavam animadamente, sorrindo. Quando me viram, interromperam a conversa. Ele, educadamente, levantou-se para me convidar a entrar, ela mostrou-se surpreendida por me ver mas cumprimentou-me simpaticamente. Eu disse que não era urgente, que iria depois, e saí.
Nesse dia à noite ela ligou-me, quis saber porque não tinha eu entrado, disse que eu tinha parecido pouco à vontade. Expliquei-lhe que por acaso até fiquei mas não por ela, que ele é que é muito discreto, que não gosta de ser interrompido quando está com alguém e que, portanto, não ia interromper a conversa deles tanto mais que o meu assunto era interno, não para ser falado perante uma pessoa de fora. Mas, já que ela ligava, aproveitava para perguntar se já tinha conseguido alguma coisa. Senti que a minha voz, involuntariamente, estava a deixar transparecer alguma impaciência.
'Uma enguia', disse ela. E quase me pareceu sentir que estava a desculpar-se. No entanto, confirmou a suspeita. 'Que há coisa, há, e fizeste bem em reportar. Agora que ele tenha dito alguma coisa, nem pensar. Nada. Escorrega por todos os lados. Quer conselhos em abstracto. E se acontecer isto, o que aconselharia que se fizesse? E é seguro usar o wifi nos aeroportos e hotéis? E pode deixar-se o computador no quarto de hotel? E como é que se pode perceber se alguém está com segundas intenções? E ri como se fosse curiosidade abstracta, como se estivesse apenas a querer mostra-se consciencioso, talvez até apenas para me agradar. E faz questão, a toda a hora, de dizer que é descuidado, que é muito ingénuo, que confia em toda a gente, que acha que não tem nada de relevante que alguém queira apanhar. E muda de conversa, graceja, ou fica parado a olhar para mim. Mal eu tento espetar o palito no bolo perguntando alguma mais direccionada, ele foge, muda de conversa. Mas, se eu faço perguntas sobre as suas viagens, sobre como é fazer viagens tão longas, andar por tantos países e lidar com tanta gente tão diferente, aí ele fica agradado com o meu interesse e põe-se a contar. Sabes? É notoriamente daqueles tipos solitários, nunca deve falar com ninguém. Por isso, acreditando que o meu interesse é genuíno, desbobina, desbobina. E tem graça na maneira de falar, sabes, o tempo passa num instante porque o tipo, curiosamente, revela-se um bom conversador.
E eu: 'E não saem do mesmo sítio, não? Só conversa? E, entretanto, sabe-se lá o que está a acontecer... Não será de se passar para outra abordagem...?'
'Calma. Tenho estado num registo muito pro, chego ao fim da minha hora, mais coisa menos coisa, vou-me embora. Mas vejo que ele fica sempre com pena, por ele ficava ali a desbobinar durante muito mais tempo. Para a próxima, deixo-me ficar, faço-me de distraída, como se estivesse presa à conversa', disse ela.
'Escuta. Ando a notar uma mudança de atitude nos fulanos que supostamente estão interessados em comprar uma daquelas nossas empresas lá no cu de judas', e disse-lhe o país. 'Como se o interesse estranhamente estivesse a esmorecer. Cá para mim, é por aí. Como se isso tivesse sido o pretexto e agora já não precisassem do pretexto.
E ela: 'É muito isso que, como sabes, costuma acontecer. E já te disse, cá para mim ele tem a ver com isso.'
'Pois, mas, olha lá, se é isso, é grave e não sabemos quão grave. E tem que ser estancado antes que seja tarde demais. E ele afastado.', disse eu.
'Calma, mulher, dá-me tempo. E já estamos a seguir outros vectores. Calma. Mais uma ou duas conversas. E, já te disse, estamos no terreno.'
Não fiquei tranquila com a conversa. Aquele não era o ritmo habitual dela. Faz sempre o trabalhinho de casa bem feitinho, é especialista na empatia espontânea, nas afinidades que se descobrem inesperadamente e que tanto facilitam a aproximação. E se o próprio não tem redes sociais, tem a mulher, têm os filhos, os irmãos, e as pistas e as dicas vão parar às mãos de quem delas precisa sem que tenha que haver algum esforço. Portanto, como é que ao fim de três ou quatro conversas de uma hora cada, ainda estava no mesmo sítio?
Ná. Não estava a perceber. O que é que estava a passar-se?
Aquela não era a Clara que eu achava que tão bem conhecia.
Ná. Não estava a perceber. O que é que estava a passar-se?
Aquela não era a Clara que eu achava que tão bem conhecia.
(Mas será que conhecemos, verdadeiramente bem, alguma pessoa?)
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Estou a usar a Isabelle Huppert como Clara e o Clive Owen como Manel. Felizmente não preciso de me representar a mim.
Não sei porque estou a colocar aqui os bailados da companhia Malandain Ballet Biarritz. Se disser que é apenas porque gosto não sei se soará convincente.
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Tentarei continuar com esta 'história' mas, acreditem, não sei se conseguirei.
1 comentário:
Sim, é verdade, não podemos ter a certeza de
conhecer, verdadeiramente, uma pessoa...
O ritmo da Clara agora é outro.
O que estará por trás disso?
Bj
Olinda
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