Para afugentar os maus espíritos que nos desgovernam (ver post abaixo deste), para tentar distrair-me desta gente sem alma, sem moral, sem piedade, que tomou conta dos nossos destinos e maldosamente destrói a esperança num futuro melhor, desço aos meus refúgios, socorro-me das palavras que se encostam a mim, mornas, silenciosas, da música que vem de dentro de seres misteriosos, dispo a roupa, a pele, os pensamentos e fico só eu, eu sem matéria, e, no fim, fecho os olhos e deixo-me ir. Depois, já sou apenas as palavras que outros inventaram, a toada leve, a voz que vem nem sei de onde. E o silêncio branco e puro que tanto procuro.
Mysteries of Love
A escuridão é quase completa.
Apenas uma vela no exterior projecta alguma luz pela porta entreaberta.
Ouve o tilintar das braceletes quando a sombra escura se aproxima dele, antecedida de um perfume de almíscar e de rosa, de suor morno.
O escultor vira-se, enrodilha-se à beira da cama.
Ela, aquela sombra, cantou para ele, ei-la a seu lado, e não sabe que fazer; tem vergonha e muito medo; ela estende-se encostada a si, tocando-lhe; ele sente-lhe o hálito e estremece, como se o vento da noite, vindo do mar, o gelasse de repente.
Sente uma mão poisar-se-lhe no antebraço, e deixa de tremer, aquela carícia arde.
Não sabe qual dos dois pulsos sente bater tão forte através destes dedos.
De olhos fechados, imagina o rapaz ou a rapariga atrás de si, dobrando o cotovelo, com a cara sobre a sua.
Permanece imóvel, hirto como um cão de caça.
Não busco o amor. Procuro a consolação.
A verdade é que não há mais nada além do sofrimento, e que em braços alheios tentamos esquecer que em breve iremos desaparecer.
A tua ponte ficará; talvez, com o correr do tempo, venha a assumir um sentido bem diferente do que tem hoje, tal como verá no meu país desaparecido coisa diferente do que era na realidade, os nossos sucessores colar-lhe-ão as suas histórias, os seus mundos, os seus desejos. Nada nos pertence. Descobrirão beleza em terríveis batalhas, coragem na cobardia dos homens, tudo entrará na lenda.
Calas-te, sei que não me compreendes.
Deixa-me abraçar-te.
Escapas-me como uma serpente.
Já estás longe, longe de mais para que seja possível alcançar-te.
Muito tempo depois, em fevereiro de 1564, chega a vez de Miguel Ângelo, que se prepara para desaparecer.
Espera ver Deus, e vê-lo-á sem dúvida, já que nisso acredita.
De Istambul resta-lhe uma vaga luz, uma doçura subtil mesclada de amargura, uma música distante, formas suaves, prazeres enferrujados pelo tempo, a dor da violência, da perda: o abandono das mãos que a vida não deixou segurar, dos rostos em que não mais se farão carícias, das pontes que ainda não se lançaram.
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- O texto abaixo do vídeo é constituído por excertos um pouco ao acaso do belo livro Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes de Mathias Énard, com tradução de Pedro Tamen, livro de que antes já aqui falei antes.
- A música é Antony & The Johnsons, Mysteries of Love
- As fotografias mostram Kate Moss segundo Nick Knight
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Talvez não seja boa ideia, depois disto, descerem até à tristeza do post seguinte mas, enfim, é ao vosso critério.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um óptimo sábado.
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