Abaixo poderão encontrar dois posts muito diferentes do que agora, aqui, vão ler. Lá mais abaixo falo do mediático lançamento do livro de Judite de Sousa sobre o Cunhal que foi invadido pelo PSD em peso, nomeadamente pelo Relvas agora em versão raçuda. E falo também da Constança Cunha e Sá, bronzeada e uma autêntica fera, uma pantera implacável agarrada à jugular de Passos Coelho.
Mas isso poderão ler nos posts a seguir a este, não aqui.
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Agora, aqui, a conversa é outra. Vou escrever sobre um tema que me é estranho. No outro dia a minha filha dizia-me que, quando eu aqui falo de relacionamentos amorosos, só falo de amores felizes. Como assim?, perguntei-lhe. Ela explicou: É que há amores impossíveis. Pedi para me exemplificar porque, voluntarista como sou, acho sempre que a gente, querendo, tudo consegue e, se não consegue, parte para outra. Ficar a remoer agarrado a uma ficção ou a uma ilusão é coisa que acho que não faz sentido.
Ela exemplificou. Um amigo dela que eu conheço muito bem, quando estava no fim do curso, foi estagiar para o outro lado do mundo, uma experiência engraçada. Como tantas vezes acontece, por lá foi ficando. Arranjou namorada. Teve uma filha. Agora o amor acabou mas há a filha. Entretanto reacendeu uma estima anterior, virou amor a sério. Mas esse amor está cá em Portugal. Por cá essa rapariga teve um filho. Se ele largar o emprego óptimo que lá tem (o que não faz sentido), afasta-se da filha, coisa que não quer. Se a namorada portuguesa for ter com ele, não pode levar o filho porque o ex-marido não o permite, e afastar-se do filho também não quer. Ou seja, cá está: segundo ela, um amor impossível.
Respondi-lhe: têm que esperar que as crianças cresçam. E não disse mas pensei que, até lá, muita coisa pode acontecer. É que nem esse eu acho que seja um amor impossível. Será complicado, será um amor que aconteceu no tempo e no sítio errado, ou tarde demais, ou cedo demais, não sei, mas impossível não é. A história desse amor pode estar ainda no início. Ou pode estar a ser empolada pela inviabilidade e a distância e o tempo podem vir a demonstrar que afinal não é tão forte como agora pensam. Ainda não o sabemos.
Mas há amores impossíveis. De facto, há.
Aquele de que aqui vou falar era, no fim, mesmo impossível. E tão devastadoramente impossível que devorou a vida de quem assim amava alguém que se tinha ausentado.
Hesitei em falar aqui nisto. Não é tema de que se fale de qualquer maneira. Teria que falar quase em silêncio, com muito respeito, quase uma oração. Não sei se sei falar assim.
Mas vou tentar. Ou melhor: vou dar a palavra ao próprio e a outros que sobre eles falaram.
Mas vou tentar. Ou melhor: vou dar a palavra ao próprio e a outros que sobre eles falaram.
Mourir d'aimer, Charles Aznavour
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A Fernanda veio passar comigo a entrada no ano 2000. Vi-a viva pela última vez na noite de 3 de Janeiro. Um beijo morno de despedida: «Não te esqueças de cortar as unhas à cadela e de dar o 'program' aos gatos. Ah, e também não te esqueças de me ir esperar a Santa Apolónia no domingo, à hora do costume...» E lá seguiu para o Porto no carro do João Grosso. Retrospectivamente, a recordação mais impressiva que conservo da cena é a do olhar de tristeza da Rosa, a nossa galga, vendo a dona afastar-se. Havia entre as duas uma relação fortíssima. Aliás, sempre me surpreendeu o poder da Fernanda sobre os animais: a um olhar, a um gesto, sem levantar a voz, tranquilizavam-se, obedeciam-lhe cordatos. Eu, se mandar a Rosa ir numa direcção, é garantido que vai na direcção contrária...
Falei da relação fortíssima entre uma mulher e uma cadela, e bem sei que é abusivo atribuir a um animal algo de parecido com sentimentos humanos. Pois é... Mas cada vez que levo a cadela ao cemitério, e ela aproveita para se rebolar sobre as campas (a Fernanda está debaixo de um magnífico relvado, à inglesa, de campas rasas), sempre que chega ao sítio onde a dona está enterrada, pára e assim fica de focinho entre as patas, a escavar lentamente a terra.
Agora, dormimos todos na mesma cama: eu, a cadela, o gato (Artur) e as duas gatas (a Fina e a Nina). Numa destas noites, os quatro animais ergueram-se súbita e simultaneamente e ficaram sentados, hirtos, a seguir fixamente com o olhar um ponto, para mim invisível, que se deslocava no espaço, enquanto eu sentia o rosto batido por um sopro gelado.
Disse que vi a Fernanda viva pela última vez na noite de 3 de Janeiro. Dois dias depois vieram anunciar-me que tinha morrido. No avião para o Porto não me saía da cabeça que se tratava de um engano, e estava ansioso por chegar, vê-la, desfazer o equívoco. Depois... a morgue, as burocracias, a entrada naquele quarto de hotel, a cigarreira e o livro abertos na mesa de cabeceira, o colar em cima da cama...
(Ernesto Sampaio, pág.32 e 33, em 'Fernanda')
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(páginas 88 e 89, as últimas do livro) "O amor não admite a menor restrição: tudo ou nada, sendo o tudo a vida e o nada a morte" |
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Fernanda. Nome de uma actriz talentosa. Fundadora do teatro A Barraca, residente do D. Maria II, assídua no Teatro Experimental do Porto e no São João, onde se preparava para estrear uma peça quando a morte, súbita, a apanhou num quarto de hotel, em 1999. Um rosto intenso, de olhos grandes, negros, e boca larga, talhada para grandes sorrisos.
Fernanda era também – ou acima de tudo? – o amor de Ernesto Sampaio, jornalista, ensaísta e poeta, um teórico do surrealismo que se sentava à mesa do Café Gelo com Herberto Helder e Mário Cesariny.
Mais discreto e comedido do que os seus pares, parece ter guardado a inflamação para esse amor que viveu com Fernanda Alves.
Cesariny ilustrou assim a grandeza do homem e do sentimento que o matou, num texto para o jornal Público: “Ernesto Sampaio tinha a grande rebeldia e a grande inteligência. Dentro do grupo surrealista, era dos mais lúcidos, dos que mais sabiam (…). Um sentido de humor formidável, uma agudeza de espírito extraordinária, amabilíssimo. Uma figura muito rara, de saber e dedicação (…) Desde a morte de Fernanda Alves, já não sabia viver. É a única pessoa que conheço que morreu de amor”.
Fernanda é o último livro de Ernesto Sampaio. Escreveu-o e a seguir morreu, um ano depois do seu amor sair sem se despedir – e sem querer.
Apesar da solidão e da mágoa de algumas passagens, é um remédio contra a descrença. Porque os que não têm a certeza de Deus, e não conhecem o melhor do amor, precisam das suas orações.
“Apresentei Fernanda ao João Rodrigues (um suicida) e ele disse-me: ‘Sempre tiveste muita sorte’. O Tunhas (outro suicida) disparou-me um dia: ‘Ela é a sua mãe’. Sorte grande, mãe, companheira, a Fernanda foi a salvação da minha vida. O meu mar. O mar sempre mais forte com a sua voz de amante e a sua voz maternal traz-me palavras muito puras que dizíamos outrora”.
“Numa carta comovente, diz-me a Isabel de Castro que eu e a Fernanda éramos um. Penso que ainda somos. Mas a raiz, a alma e o corpo desse ‘um’ era ela. Eu podia entregar-me às minhas manias, não querer saber de nada nem de ninguém, afastar-me, isolar-me; tinha-a a ela, que era tudo, e agora não tenho nada. A Fernanda era a minha embaixatriz do mundo”.
“Quando a Fernanda estava viva, quase tudo era magia. O resto é utilitário e dá-me vontade de chorar. A magia é interior. A Fernanda era-me interior e exterior. Agora só me é interior. Não chega. Que fazer? Onde ir? Não posso deixar de amá-la. A recordação do seu rosto, da expressão do seu sorriso, ainda me enchem o coração de êxtase, de amor e de desespero. Desespero por não lho ter dito e por já não poder dizer-lho. Não posso imaginar-me sem ela. Sem ela não teria sido nada”.
Encontrar alguém com quem se deseja partilhar a vida é um milagre. Partilhá-la, de facto, durante 40 anos é uma bênção. Numa história assim, só a morte podia pôr o ponto final. Apesar de tudo, é a menor de todas as injustiças.
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"(...) Em Lisboa, sua terra natal. Sombria e solitária. Ernesto Sampaio, poeta, tradutor, pensador, bibliotecário, jornalista, morreu esta semana, junto dos seus livros e das suas memórias. Em sua casa. A casa que, para este poeta, passou a ser "lá longe onde nascem os lobos". (...)
A morte arrancou-o subitamente, assim como o fizera, no ano passado, à actriz Fernanda Alves, sua mulher. O seu último livro, "Fernanda" (Fenda, 2000) , a que ele chamava "o seu coração empalhado", é o testemunho dessa morte e de um amor decisivo que foi, do lado dos grandes afectos, o sustentáculo de uma vida: "Estar vivo é acordar todas as manhãs no inferno (...) A recordação de um só dia contigo torna inúteis o labor e o prazer de todos os dias que me restam viver". A morte dela não pode deixar de estar associada a este final de vida de Ernesto. (...)
Ernesto Sampaio foi um dos grandes teóricos do surrealismo, embora a sua obra seja curta e o seu temperamento tenha sido discreto. Disse ele, numa entrevista ao PÚBLICO (12-10-93): "Dá-me um certo prazer ser esquecido, assistir às coisas como se não existisse, como se não tivesse uma presença real, estar e não estar".
(...) O que disse Ernesto, de Fernanda, pode ser dito agora dele, pela suas próprias palavras: "É uma planta que continua a florescer depois de ter sido arrancada". [ Ernesto Sampaio: A morte solitária de um poeta - Texto de Rui Ferreira e Sousa, in Público 07/12/2001]
IN MEMORIAM Ernesto Sampaio (10/12/35 - 5/12/01)
Desliguei-me do resto do mundo para me ligar a um único ser que de repente me falta. Já não tenho mais nada, não me resta nada. (Ernesto Sampaio na pag. 69 do livro 'Fernanda') |
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Como na vida, o amor continua a evoluir na morte. Jurei fidelidade à Fernanda sem jamais lho ter dito. Todas as noites estendo os braços para o seu lado do travesseiro e é como se a respirasse, como se ela estivesse presente, difusa nas claridades longínquas e nas trevas cada vez mais cerradas que me vão envolvendo.
(Ernesto Sampaio, pág.82, em 'Fernanda', editora Fenda)
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Arvo Pärt, Cantus in memoriam Benjamin Britten
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Há amores impossíveis, sim: os amores imensos, eternos, tornados impossíveis pela morte.
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E por aqui me fico. Recomendo vivamente a leitura dos livros de Ernesto Sampaio, nomeadamente este, Fernanda.
Há livros que ficcionam as ausências. Este não é ficção, é um registo autêntico, muito sofrido. E, apesar do documento pungente que é, não é sentimentalista, não banaliza a fragilidade do autor. Há neste amor desmedido uma pureza e uma simplicidade magníficas. Uma grandeza incomum.
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Isto saíu-me imenso. Peço desculpa pelos meus excessos.
Recordo que abaixo há mais dois posts e, caso precisem de 'desopilar', não deixem de os espreitar.
De resto, nada mais. Tenham, meus Caros Leitores, uma quarta feira muito feliz.
E não se esqueçam de aproveitar bem a vida, está bem?
6 comentários:
Histórias de amor incomuns, que nos aquecem a alma e nos fazem acreditar que o amor verdadeiro, autêntico, é raro mas não impossivel.
Abraço.
Uma ternura de texto
memória viva
Pena a cena da Judite
Uma bela e comovente homenagem.
Olá UJM,
Depois de uma pequena ausência, cá estou a fazer-lhe companhia.
Li este seu post e fiquei emocionada pela autenticidade deste amor eterno existente entre Ernesto e Fernanda, que só se tornou impossível e descontinuado
pela morte que os separou abruptamente.
Não foi excesso, como diz, o facto de ter partilhado excertos da vida e do livro de Ernesto Sampaio, foi sim uma homenagem muito sentida e merecida ao escritor e
ao amor eterno que ele imortalizou através do seu livro, Fernanda, a sua amada. Logo que oportuno vou adquiri-lo, para lhe prestar também a minha homenagem.
Obrigada por este momento de tamanha grandeza e partilha.
Um beijinho grande
Olá Tazinha!
Tocante a roçar o deslumbramento. O que é que um ser humano sente quando se sente assim amada?
Ou será que, tal como Ernesto confessa " sem jamais lho ter dito" ela não o sentiu assim?
De qualquer modo um amor desta dimensão tem quase sempre tendência para um final infeliz seja qual for o motivo.
Grande beijinho
Haverá algum dia um livro chamado,ESTELA?!
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