quarta-feira, agosto 21, 2013

Amanheci com um alpinista à janela e anoiteci com um fauno perdido no bosque. E agora estou a entrar na madrugada com uma lua branca, esplendorosa, reflectindo-se no rio que corre aqui aos meus pés. Com tudo isto, como poderia eu queixar-me destes dias calientes de Agosto?







Hoje, quando estava no meu gabinete, apercebi-me de um vago ruído vindo do exterior. Cordas na janela. Instantes depois, suspenso, um homem jovem de pele cor de chocolate e corpo elástico sorria-me do lado de fora. Pela segunda vez este jovem com um cabelo entrelaçado em rasta, espalhado pelas costas, me aparece à janela.




Um alpinista imprevisto, talvez vindo directamente do céu, lavando a parede do grande edifício, que é toda de vidro. Fiz um leve aceno com a cabeça e continuei a trabalhar. Eu disse janela mas não é janela: o edifício não tem janelas. É todo envidraçado mas não há uma só janela que se possa abrir. E é um vidro duplo insonorizadao. Mesmo que eu quisesse dizer-lhe bom dia, ele não me ouviria. E então ali esteve ele, a escassos centímetros de mim, t-shirt de alças, calções acima do joelho, com uma escova fina rodopiando pelo vidro. Depois prendeu-se melhor, desta vez foi ele que fez um breve aceno com a cabeça, deu um salto no vazio e presumo que tenha descido até ao andar de baixo.

Quando à tarde cheguei a casa, vesti uma roupa adequada e fui caminhar.




Hoje não fui acompanhada nem fui para a beira do rio, hoje apetecia-me sentir o calor húmido que vem da terra nos dias quentes como o de hoje, num certo lugar onde as árvores formam recantos de sombra e intimidade.

Tão grande o prazer que perdi a noção das horas. Já não é a primeira vez que me distraio, que perco a noção do tempo, mas hoje foi pior.

Vinha eu pela beira do bosque já no caminho de regresso quando uns passos se começaram a ouvir vindos do lugar onde há uma inesperada clareira. Acelerei o passo tanto quanto o coração se acelerou. Tombava a noite e nunca se sabe que faunos se esquivam pelos vazios do mundo quando a luz mal penetra por entre a folhagem. Tinha-me atrasado e já sabia o sermão que me esperava em casa, já que tão avisada estou para não andar por aqui até tão tarde.

O homem tinha-se despido, tinha-se deitado nu sobre o chão macio, tinha sentido o sol suave sobre a sua pele tão pouco habituada a coisas concretas. Depois tinha adormecido. Quando acordou já a luz se escondia e a grande lua branca de Agosto pairava sobre si. Olhou à sua volta tentando situar-se. Não viu a sua roupa. Não se lembrava se a roupa tinha ficado mesmo ao seu lado ou ali por perto mas, com a noite a cair, já mal se via. De repente sentiu-se assustado. Nu, sem que a escassa luz lhe permitisse perceber como sair dali, começou a andar tentando descobrir a roupa.

Instintivamente joguei a mão ao bolso onde guardava o telemóvel. Não o senti. Pensei que talvez tivesse caído quando me tinha sentado num tronco a descansar da caminhada. Pensei, isto é o pior que me podia acontecer. Continuei a andar, quase a correr. Mas sentia que outros passos vinham na mesma direcção. Tinha vontade de olhar para trás mas tanto era o medo que não o fazia. Depois tive a sensação que não estava a andar pelo caminho do costume. Algures devo ter-me desviado. Mais ainda o medo, medo de me perder, medo de não ter como avisar, medo de ser atacada. Acabei por conseguir coragem para, enquanto continuava a andar apressadamente, me voltar para trás.




Pareceu-me ver um homem nu entre as árvores e gritei. Desatei a correr, aflita. Mas tanta a atrapalhação e o medo que caí e, tomada pelo pavor, não tive força, ânimo, para me levantar.

O homem correu na minha direcção. Pareceu-me mesmo que vinha nu. Aproximou-se. Mal o conseguia ver, a noite quase nos cobria, apenas o luar branco permitia que se visse alguma coisa. Fechei os olhos, senti-me desfalecer. Medo, medo, medo. O coração perdido no meio do peito.

O homem baixou-se. No meu peito, um grito queria soltar-se mas a garganta estava estrangulada. Era como se gritasse mas o som não se ouvia. Não sei se estava desmaiada ou se estava lúcida. Pensava que ia ser esfacelada por dentro, depois morrer.

O homem perguntou, magoou-se? Não respondi, tinha perdido a voz. O homem tocou-me, está bem? E eu não reagi, talvez estivesse já morta.

O homem apalpou-me o pulso, encostou o ouvido ao meu rosto ou deitou a cabeça no meu peito, não sei. Depois disse, está viva, o seu coração bate descompassado. Então sentou-se ao meu lado. Não me mexi, cheia de medo, sem acção, imobilizada, olhos fechados. O homem, então, deu-me a mão. 

Sem querer, comecei a chorar ao de leve, talvez fosse ainda medo, talvez fosse alguma descompressão, não sei. Abri os olhos, era de noite, mal via, sentia um corpo ao meu lado, alguém que me dava a mão.

O homem perguntou, está a chorar? Mas eu nada disse. O homem disse, não chore, não tenha medo, não lhe faço mal. Apenas corri para vir ter consigo porque a vi cair. Não fui capaz de dizer nada. E, então, ficámos ali em silêncio. Comecei a sentir frio.

Sentei-me. Abri os olhos. Os olhos do homem brilhavam na escuridão. Assustei-me de novo. Pareceu-me que tinha barbas. Podia ser um lobo. E estava mesmo nu. 




O homem disse, perdi-me, e, pior que isso, perdi a roupa. 

Fiquei calada, não percebi.

O homem continuou, saí do trabalho, estava cansado, precisava de me descontrair, as coisas não estão fáceis, sabe, resolvi vir andar aqui, depois cheguei a uma clareira, um silêncio muito puro, habitado apenas pelos sons da floresta, pássaros, insectos, aragem, um restolhar ao de leve. Apeteceu-me sentir o sol no corpo, sentir o chão na pele. Dito assim parece ridículo, eu não sou nada dado a isto, bucólico. Mas foi o que foi. Só que adormeci. Acordei há pouco, não vi a roupa, já mal se via. Agora não sei o que fazer, sem luz não sei o que fazer.

Tive vontade de rir.

O homem continuou, eu podia ir andando mas sei lá onde vou dar; e vou aparecer nu aí na estrada?

Ri.

Reparei, então, que fez um gesto com a mão, percebi que estava como que a prender o cabelo: para além das barbas tinha um cabelo comprido. Um lobo. Um lobisomem. Um fauno assustador com olhos que brilhavam no escuro.




Ele riu também, ah agora já se ri…? É do género de se rir com a desgraça alheia?

Estávamos agora sentados ao lado um do outro. Ele disse, e a noite está a arrefecer, estou a ficar cheio de frio.




Ainda me sentia vagamente assustada. Pensei, que situação mais absurda.

E, então, desatei-me a rir, mas a rir a sério, ah o que eu me ri. E ele também. Às tantas, de tal forma nos ríamos, atirámo-nos para trás, ficámos deitados ao lado um do outro a rir.

Até que parámos de rir.

A lua vista do chão, numa noite quente de verão, é imensa, luminosa, mágica. Vem dela uma suavidade envolvente, muito envolvente.





Agora já aqui estou na minha sala, de onde vejo a mesma lua. Olho-a neste momento: parece-me longínqua e reflecte-se no rio como se derramasse beleza, emoção, saudade.




[E façam a gentileza de não me perguntar o que aconteceu durante todo o tempo em que estive desaparecida, nem como vim parar a casa, nem porque sou tão imprudente que, em vez de me ter enfiado sorrateiramente na cama, me pus aqui a escrever isto. Não me perguntem nada, por favor]


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  • A música é He fades away de June Tabor, a mulher que canta os sons da terra. 

  • As fotografias mostram Kate Moss e Patrick Petitjean (o lobo) por Patrick Demarchelier. A primeira fotografia, a do rapaz das rastas, não sei de quem é.
  • As fotografias da lua foram feitas há pouco.

  • Convido-vos ainda a descerem até ao post seguinte onde respondo a uma pergunta de um Leitor (Se o expressionista Munch a tivesse conhecido, que quadro pintaria?). É certo que não deve ser a resposta de que ele estaria à espera mas, enfim, é a resposta possível.

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E por hoje é apenas isto. Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta feira! 

Bons sonhos (especialmente os acordados)!

1 comentário:

jrd disse...

Mesmo com um vidro pelo meio,à luz da lua, o nu contra o nu, pode sempre ser imaginado.

Regressando a Munch, agora sim poderíamos falar de "O grito" e, por momentos, pensar em "O assassino na alameda".

Abraço