Imagino a invejinha que quem ainda trabalha sente quando me lê a relatar o meu dolce fare niente. Espero é que seja daquela invejinha boa, inocente, não daquela que vem sob a forma de olho gordo.
Lembro-me bem daquela ex-colega de quem toda a gente dizia que apenas se realizava através do trabalho e que um dia, uns meses depois de ter saído da empresa, apareceu lá a visitar-nos. Vinha remoçada, muito bem vestida e penteada. Quando lhe perguntámos como estava a adaptar-se à condição de 'desocupada', riu de gosto e disse: 'Penso muitas vezes que se as pessoas soubessem como não trabalhar é tão bom, ninguém queria trabalhar...'
E é mesmo. Não percebo como é que há tanta gente que faz de tudo para se manter a trabalhar até estar quase a cair da tripeça. Mas, enfim, cada um é como cada qual.
E o que eu ia dizer é que estava numa espreguiçadeira, à semi-sombra, completamente em paz comigo e com o mundo, a ler e a ouvir os passarinhos, e pensando que devia ter ali um lápis para ir assinalando algumas frases com piada. Nisto, reparei que o cãobeludo estava freneticamente a espreitar para uns vasos que estão num nível abaixo e que estão separados daquela zona por uma pequena rede. Entre a rede e os vasos costuma juntar-se farta caruma. E era para ali que ele olhava, saltava, agitado como se tivesse descoberto coisa. Tremo quando isso acontece pois antecipo que o passo seguinte seja o cometimento de um crime.
Chamei o meu marido.
Nessa altura já ele (ele, o cão) tinha ido para essa zona rebaixada e já andava agitadamente em volta dos vasos. O meu marido pegou numa cadeira dobrada e colocou, na parte de baixo, junto aos vasos, tentando impedir que ele lá chegasse.
Em sobressalto, fui buscar a mangueira e abri a água para tentar evitar que o predador se atirasse ao que quer que fosse que ali estava. Então, do monte de caruma que ali estava, monte que mais parece um ninho, saiu um pássaro espavorido, a correr. Parecia um pássaro ainda criança, que ainda não sabia voar, mas de um porte grande, digamos que do tamanho de uma palma de mão aberta. Desatei a chamar o meu marido para impedir que houvesse um desastre e, ao mesmo tempo, a dar mangueiradas de água para afastar o cãomaluco.
O aflito passarito foi a correr, ladeira abaixo, indo encostar-se a um canto do portão da garagem.
O meu marido foi então com uma pá para tentar que ele se pusesse lá em cima para o pôr a salvo. Mas foi o bom e o bonito pois, apesar de estar a levar mangueiradas de água, o cão queria, à viva força, ir atirar-se ao frágil serzinho. E o meu marido gritava com ele para ele se ir embora. Só que, com tal reboliço, o passarito abalou a correr ladeira acima, atravessou o jardim e foi refugiar-se junto à sebe. Só que o cão foi mais rápido que o meu marido e que eu com a mangueira. Em menos de um segundo saltou, implacável.
Quando o meu marido lá chegou, já o passarinho estava deitado de lado, sem se mexer. O meu marido deu um grito ao cão e eu apontei-lhe a mangueira. Mas, aí, ele deve ter percebido que tinha feito um mal irreparável pois afastou-se e ficou como se paralisado, sentado, a olhar para o pobre defunto.
O meu marido foi resgatar a vítima. O cão-marado afastou-se, pesaroso.
Fiquei atordoada com tudo aquilo. E francamente arreliada por não termos conseguido evitar tão infeliz desfecho.
Mas a vida na natureza tem destas coisas.
Depois fui apanhar nêsperas e, como sempre, foram quase tantas as que comi, in loco, como as que coloquei na taça. É congénito: não desfazendo... mas estou mais para Rubens do que para Giacometti.
E agora estou aqui sossegadamente a ganhar coragem para ir à procura de algumas frases de que gostei.
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E, depois de ter feito uma rápida pesca à linha, aqui estão algumas frases transcritas do gostoso 'Uma última pergunta - Entrevistas com Mário Cesariny'
- Tudo conspira, e muito, contra a inocência, contra a linguagem verdadeira.
- O que eu sinto é que a partir dos 50, por exemplo, uma pessoa sabe demais, não era preciso saber tanto. E muito do que se aprende é triste.
Como define a poesia? - A técnica mais proibida da mágica mais procurada
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Imagens geradas pelo Sora (IA)
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Dias felizes
4 comentários:
Isto é a poesia dos olhares que olham!
LS
Só na reforma percebemos o prazer de não trabalhar. Não mexer uma palha, não ter horários, levantar e deitar quando o corpo nos pede para tal, é uma dádiva . Não fazer puto, é um verdadeiro Xanax.
Pois...
Desta vez, 100% de acordo. Custei a aprender, mas, agora que aprendi, não posso estar mais de acordo!
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