Passei o dia de volta das caixas. Descobertas que, para mim, são fascinantes.
Uma fotografia me encanou: a minha avó materna, muito jovem, sentada com o meu tio, ainda bebé, ao colo e a minha mãe, talvez com uns três anos, muito loura, olhos muito claros, muito séria. Mas o que mais me surpreende é o porte da minha avó, muito direita, com um vestido que devia ser de uma cor viva com um padrão não de bolinhas claras mas um qualquer motivo assim, com mangas compridas, cós branco nas mangas, um decote em bico com uma gola branca em volta e um colar de grandes e coloridas contas. Morena, cabelos pretos, sobrancelhas vincadas. A minha filha disse Frida Kahlo vibe. E é.
Tenho que arranjar maneira de ter em casa, algures, em destaque, algumas das incríveis fotografias que descobri. E para as cartas antigas. Tenho que tê-las num lugar em que saiba onde estão. Receio guardá-las num sítio em que se perca o rumo para elas.
Descobri também um pequenino caderninho em que a minha bisavó escreveu a data de nascimento da minha avó, a data em que se casou e a data em que a minha mãe nasceu. Afinal nasceu à tangente com a minha avó com dezasseis acabados de fazer.
Aí escreve também como o filho andou aos tiros, foi preso, foi deportado. Na fotografia dessa folhinha apaguei o nome desse meu tio-avô.
Noutra folhinha, diz que regressou e, mais tarde, foi outra vez preso.
Já descobri que era anarquista. Encontrei-o, via google, num trabalho sobre os movimentos anarquistas. Bate certo com o que a minha bisavó escreveu, a data, o nome do navio, etc. E a minha filha descobriu uma fotografia com os deportados dos anos 30 em Timor, na ilha em que, justamente, ele esteve. Um dos da fotografia é certamente esse meu tio-avô anarquista de que sempre ouvi falar como sendo um combatente, um aventureiro, corajoso. Viveu clandestinamente, esteve preso. Morreu pouco antes do 25 de Abril para grande desgosto da minha avó pois toda a vida ele lutou pela liberdade.
No dia do enterro da minha mãe (custa-me dizer enterro pois foi cremação; apenas uma semana e tal depois é que fizemos o enterro das cinzas), os meus primos, filhos do irmão da minha mãe, disseram que tinham descoberto não sei o quê sobre esse tio, qualquer referência histórica, creio, e que aparecia lá o nome de código dele. Tenho que lhes enviar a fotografia de algumas destas coisas que estavam com a minha mãe e pedir-lhes que me mandem imagens do que, se calhar, estava com o pai deles.
Nesse livrinho a minha bisavó fala de uma Luiza que tinha um amante e que viveu um drama, tendo sido salva. Nunca ouvi falar dela. Seria uma outra filha? Não sei.
Descobri também duas folhas antiquíssimas com textos, creio que humorísticos (mas tenho que me debruçar para conseguir ter a certeza). Tenho ideia que era correspondência dos primos algarvios, entre eles o que foi presidente.
E inúmeras, inúmeras fotografias. Primos em Lisboa, outros no Algarve. E muitas, muitas de quando eram jovens. Era um grupo enorme de amigos e deviam andar sempre juntos. E fotografias do casamento dos meus pais. E dos meus tios, os meus pais como padrinhos de ambos, a minha mãe de chapéu, elegante, o meu pai muto bem, eu de menina de alianças.
Passando para a correspondência que me foi dirigida tenho muitas dezenas, talvez centenas, de uma grande amiga epistolar, alguém que escrevia muito bem, com muita facilidade e que me encantava pelos seus gostos, pela sua cultura. São Tavares. Tenho ideia que estudou História. Tenho cartas que vinham de Leiria mas creio que ultimamente vivia no Porto. Não consigo descobrir o nome completo para conseguir descobrir que é feito dela.
E várias outras. Por exemplo, a Mané de Leiria. Era muito alegre, tenho ideia que era um espírito livre. E muito bonita. Mas a única coisa que sei dela é isto: Mané. Conhecia-a, a ela e à São, num acampamento creio que na Quinta dos Lilases, ao Lumiar. Estivemos uma semana a acampar e tornei-me muito amiga delas, uma amizade epistolar que durou vários anos.
Com tempo vou pôr as imensas cartas por ordem cronológica e vou ler.
Mas já separei as cartas por sacos: um para as cartas da São, outros para as da Mané, outro para as da Jill, outro, quase a rebentar, para o namorado que escrevi que se desunhava. Etc. Encontrei também cartas anónimas de um que dizia que era louco por mim, que me adorava há muito tempo. Como nunca descobri quem era, juntei-as ao saco do namorado. Enfim, vários sacos,
Foi o dia quase todo de volta do conteúdo das caixas. Tinha pensado que o dia me chegava para arrumar lençóis e toalhas de mesa mas o tempo não esticou. Entre refeições, caminhadas, fotografias e correspondências, não deu para mais nada.
A meio da tarde senti um cansaço grande, uma saturação. Ia pondo as coisas em cima de uma mesa e ia vendo, eu de pé. Mas o cansaço não foi, certamente, de estar tantas horas de pé. Deve ter sido de tanto tempo de atenção, de seguida.
Agora tenho que intervalar disso, tenho que descansar a cabeça.
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Um feliz dia de domingo
Saúde. Esperança. Paz.
2 comentários:
O tio da UJM bem que poderá ter contribuído para alimentar aquilo que hoje conhecemos como sindicalismo.
https://ensina.rtp.pt/artigo/as-greves-anarquistas-e-comunistas-da-i-republica/
( ao ver este vídeo lembrei-me de um partido já muito partido e que integra aquilo a que chamam AD, querer proibir o seu autor de contribuir para o ensino em Portugal )
Creio que sim. Pelas pesquisas que ontem consultámos, pensamos que ele foi um combatente considerado 'perigoso' e com 'capacidade de influenciar a população', muitos vezes opondo-se à opressão sobre os trabalhadores. Foi preso várias vezes, esteve muito tempo na clandestinidade e muitos anos deportado em Timor. Travou diversos combates (pelos vistos até aos tiros, como a mãe, minha bisavó, escreveu) e não estou certa de que tenha permanecido anarquista. Não sei se depois não passou a fazer parte de grupos comunistas na clandestinidade.
Tenho que tentar saber mais sobre ele.
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