Dia chuvoso e sem grande atractivo. Mais um dia em casa da minha mãe, mais um dia confrontada com armários e roupeiros cheios que nem ovos, coisas boas, mal empregadas para serem deitadas fora, e nós sem as querermos para nós, porque não temos falta, porque não temos onde pô-las, porque não nos serve ou não são o nosso género.
Tudo muito, muito, tudo infindável.
Valeu-me a minha filha que fez um bom rastreio e que consegue ter um desapego que eu não tenho.
Começo a pensar que, se a minha mãe guardou durante toda a vida, é porque era importante para ela e, se era importante para ela, dá-me pena deitar fora.
Mas tem razão, ela (e do meu marido nem falo pois, por ele, não aproveitava nem um só copo) pois poderia ter importância para ela mas teve-as guardadas longe da vista, durante décadas. A nós pouco nos diz e, a guardarmos tudo aquilo, seria também para ter encafuado, sem qualquer préstimo. E vamos ter as nossas casas atafulhadas de coisas que vão estar escondidas e que são inúteis?
É verdade, reconheço.
Portanto, enchemos vários sacos com coisas que considerámos lixo.
E voltei a deixar a cama com uma pilha imensa de roupa que a senhora -- que lá ia a casa e que lá irá até esta monda estar feita -- fará o favor de ver se quer alguma coisa para ela e, o que não quiser, tratará de lhe dar destino. Contou que uma rapariga brasileira que veio para Portugal quase só com a roupa que trazia no corpo delirou com a leva anterior, que lhe assenta tudo bom, que está feliz da vida. Fico contente.
A minha filha levou algumas coisas, eu trouxe coisas que acho que têm valor e não podem ir para o lixo e que ela não quer e o meu filho ainda menos.
Ela também já levou alguns livros e eu trouxe também uns quantos. O meu filho diz que fica com o Eça. Mas espero que ele fique com mais alguns pois há muitos, muitos. Eu depois verei se há alguns que não tenha ou que minimamente me interessem. Depois... nem quero pensar.
E de copos nem sei que dizer. Várias prateleiras cheias de copos. Ora, ninguém quer mais copos, e eu não tenho mesmo onde pô-los. É de loucos, não sei como é possível ter tantos copos. E eu, que ali vivi e que toda a vida frequentei aquela casa, nunca tinha reparado em tal. A gente, à força de tanto ver as coisas, parece que deixa de vê-las. Penso que vamos ter que embalá-los e serão mais alguns caixotes que ficarão na garagem. Como já aqui o referi, só espero que os meus netos, quando estiverem a 'montar' as suas casas, queiram ficar com todo o material que cá estará à sua espera.
Entretanto, quando estava lá, ligou-me uma amiga. Gostei imenso de falar com ela. Conhece a minha mãe desde os nossos dez anos. Contou-me que tem uma grande admiração por ela desde essa altura pois, nesse tempo, entre o nosso grupo de amigas e amigos, era a única mãe que trabalhava. Todas as mães estavam em casa. Lembra-se de estar em minha casa e gostar imenso de falar com ela e de, outras vezes, passarmos pela escola em que ela dava aulas e vê-la, com a sua bata branca. E isso, para ela, era o máximo. Achei graça ela dizer isto. Nunca tinha visto isso segundo essa perspectiva. Para mim era natural a minha mãe trabalhar, tal como era natural que todas as outras mães estivessem em casa. Depois, voltou a estar frequentemente com a minha mãe pois era médica no Centro de Saúde onde a minha mãe ia e, portanto, conversavam sempre e, através dela, ia sabendo sempre notícias de mim. Tal como eu ia sabendo notícias dela. Mas, diz ela, que, do que conhecia a minha mãe, não estranhou a decisão de não nos contar a doença que tinha, não se deixar aprisionar pelos exames e tratamentos que, vendo bem as coisas, não iam servir para salvá-la e iam estragar-lhe a qualidade dos últimos meses de vida. Assim, teve uma morte muito rápida. Quando eu disse que ainda me custa acreditar e que me custa perceber como é que ela esteve tão bem, sem que ninguém percebesse nada, até cerca de mês e meio antes de cair a pique, disse ela: 'Mas ainda bem, não é? Ainda bem que esteve bem quase até ao fim, não é?'. Pois, nessa perspectiva, sim. Esta minha amiga nunca foi médica dela mas conversavam muito e diz que também nunca lhe percebeu nenhum mal estar ou que sofresse daquilo que viria a morrer. Mas reforçou várias vezes: 'Ainda bem que foi assim'.
Hoje, lá em casa, vi as flores que plantou, ela própria, no canteiro do meio, perto do portão, pouco antes de ir para a residência. Estão floridas, alegres. São a prova viva da força dela.
Queixava-se de mil pequenos sintomas, coisas que atribuía sempre aos comprimidos que tomava, achava que mais valia não tomá-los pois vivia melhor sem os seus efeitos secundários. Pelos vistos também não os tomava todos. E, se calhar, dada a conjunção de maleitas e dada a sua idade, mais valia gozar a vida como se tivesse vinte anos, sem medicamentos e, quando tivesse que ser, isto é, quando chegasse a sua vez, chegava. E chegou. Para o mês que vem faria noventa e um anos.
E toda a gente fala dela como uma pessoa jovial, independente, bem disposta e muito sociável. Uma vez, ao princípio de estar na residência, eu estava a falar-lhe de uma senhora que tomava as refeições na mesma mesa, uma senhora muito interessante, escritora. Como havia lá mais duas, uma delas, uma das quais sua amiga, a minha mãe perguntou a qual me referiu eu: 'Qual, a velhota?'. Fiquei como sempre ficava quando ela se referia às pessoas da idade dela ou mesmo mais novas como 'velhotas'. Mas, de certa forma, percebia. É que, se as outras pareciam ter a idade que tinham, a minha mãe não parecia nada uma velhinha. Nada. Uma vez, ela tinha que ir aos Correios. Disse-me que não ia em dada altura do mês porque estava 'cheio de velhos que iam receber a pensão'. Só que ela parecia bem mais nova mas, na realidade, já era nonagenária. Mas não se sentia. Nunca se sentiu velha. Quando se queixava que os medicamentos para o coração lhe provocavam a sensação de cabeça vazia e tinha receio de ter tonturas, eu e os médicos dizíamos que, se calhar, por segurança, podia usar uma bengala. Nem pensar. Nunca usou. Para ela usar bengala devia ser sinónimo de ser velha. E, de facto, ágil e desembaraçada como era, uma bengala não tinha nada a ver com ela.
Enfim.
Por vezes penso que pode parecer estranho eu, tão cedo, estar a querer dar destino às coisas da minha mãe. Não sei explicar. Como fui várias vezes a casa dela não estando ela lá (quando foi para a residência, como já contei, nas duas ou três primeiras semanas, enquanto ainda estava bem, queria mais casacos, mais sapatos, calças de fato de treino, etc). Por isso, entrar em casa sem ela lá estar não me faz impressão. E acho que, resolvendo já isto, me custa menos do que estar muito tempo sem lá ir e depois ir a uma casa abandonada, triste. Não sei explicar. Cada um vive e gere as suas emoções da forma que lhe é mais natural. Eu parece que fico mais tranquila se souber que as coisas que lhe eram mais queridas estão connosco, em nossas casas. Parece que assim, arrumando e organizando e vendo as suas coisas (como, por exemplo, as cartas, as fotografias, etc), estou a honrar melhor a sua memória, não deixo as suas coisas por lá, tristes e sem razão de ser.
Hoje descobrimos uma coisa que nos fez rir. Num dos roupeiros, numa bolsinha de crochet feita por ela para supostamente trazer, à tiracolo, com o telemóvel ou com a carteira, meia escondida no meio de uns casacos compridos, descobrimos cadernetas antigas da CGD, envelopes de cheques, uns antigos, outros actuais e, no meio, completamente ocultado, um molho de fotografias. Eram fotografias minhas com aquele namorado de quem já tantas vezes aqui falei. Nem me lembrava que as tinha. Ou seja, deu-lhes sumiço, escondendo-as completamente. Provavelmente foi para que nunca se corresse o risco de o meu marido ou os miúdos darem com elas. Mas que mal fazia? Não sei. Só sei que ela nunca engraçou com ele. Não quis que, de alguma forma, ele fosse tema. Fartámo-nos de rir.
Assim, parece que, às tantas, vamos encarando com mais naturalidade o que aconteceu e que tanto nos abalou e que tanta tristeza nos trouxe.
Afinal é o que se diz, a vida continua.
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Chegámos a casa ainda a tempo de vermos o Montenegro com a Inês Sousa Real, uma coisa sem história, pelo menos pela parte que me toca. Nada que se lhe diga. E vimos o infeliz Raimundo que, coitado, não consegue dar uma para a caixa a debater com a Mortágua. Também nada a dizer a não ser que o Raimundo arranjou dois tópicos: o PCP está ao lado do que é positivo e que só vale a pena o que é grosso. Quem viu e ouviu poderá confirmá-lo. Ora não explica o que é isso das coisas serem positivas e, quanto àquilo de só valer o que é grosso, nem vou querer saber até porque a língua portuguesa é traiçoeira. Tirando isso, é uma mão cheia de nada e que, quando quer dizer qualquer coisa, não é capaz. E quando se esforça, como no caso da Ucrânia e da Rússia, é uma infelicidade, vem com a conversa das 'forças da paz' sem que ninguém consiga perceber o que é isso das forças da paz. Uma conversa de pombinha, ainda por cima titubeante.
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Uma boa semana a começar já nesta segunda-feira
Saúde. Ânimo. Paz.
2 comentários:
Cara UJM
Jã não tenho pachorra para ouvir debates. E muito menos comentadeiros assalariados da direita. É uma vergonha,o critério de avaliação do mano costa é miserável, faça o PNS o que fizer, a nota é sempre a mais baixa que o adversário.
Estes painéis de comentadeiros que enxameiam as televisões, são puros rottweiler ás canelas do Pedro Nuno Santos. Estamos a assistir à maior campanha das televisões para levarem a direita ao pote. Nunca como nestas eleições, se perdeu tanto a vergonha, e o vale tudo, para beneficiar uma direita reacionária que só pensa na apropriação dos fundos como o PRR.
Execráveis esta cambada. Toda a direita e extrema direita acantonada no Observador, colonizou o debate nas televisões a mando dos seus diretores de informação. Que ninguém duvide, já o disse e volto a dizer, se o PS perder estas eleições as televisões tudo fazem para afastar o PS durante vinte anos do poder.
É verdade.
E o tempo extra que a RTP deu ao Ventura & Montenegro....? Uma indecência.
Tomara que lhes saia o tiro pela culatra.
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