O dia foi um pouco puxado ou, então, sou eu que estou a chegar à fase de alguma descompressão. Não sei. O que sei é que, depois de jantar, adormeci no sofá, mas adormeci tão profundamente que o meu marido estava francamente admirado. Não apenas me acordou algumas vezes como me perguntou o que é que eu tinha.
Por exemplo, perdi grande parte do debate do pobre Raimundo com o tresloucado Ventura. Quando vi, estava o Raimundo às aranhas, titubeante, a parecer que queria dar cabo do outro mas a fazer aquelas figuras tristes que fazem os cãezinhos minúsculos quando, lá em baixo, se põem a ladrar freneticamente junto às pernas dos cães grandes que não lhes ligam patavina.
Também só vi um bocado do comentário do Paixão Martins, sempre fino como nenhum outro, com o Calafate.
De facto, não percebi que onda de pesado sono foi esta que me submergiu.
E ainda não me encontro totalmente refeita.
Por isso, não vou relatar com pormenor as minhas peripécias com a NOS, não apenas telefonicamente como em loja (onde fui entregar os equipamentos que estavam em casa da minha mãe). Digo-vos apenas que é uma despersonalização da mais absurda que há. Reconhecem que erraram (isto é, não deram seguimento ao meu pedido de cancelamento, comprovadamente feito ainda o ano passado), constatam que o erro prossegue (apesar de ter entregue os equipamentos, o contrato continua activo) mas afirmam que têm que continuar a errar (leia-se, a enviar-me facturas relativas ao contrato da minha mãe) até ao fim do ciclo (?) e que só nessa altura é que posso apresentar uma reclamação e pedir que anulem facturas emitidas indevidamente. Explicam-me que, na realidade, compreendem que eu ache estranho mas que não podem fazer nada, 'é o processo'.
Tanto se automatiza e tanto tentam tornar-se eficientes que se tornam burros.
Já no outro dia, quando estivemos sem comunicações durante três dias e eu me queixei ao jovem que cá veio, respondeu-me ele: 'Três dias? Três dias está é muito bom... Tem vezes que vai quase a uma semana ou mais...'.
E um desgoverno a gestão das equipas de manutenção da NOS. Dava um post, tal a barafunda e o mau serviço.
Mas adiante que não estou em condições.
Tinha dito que ia fotografar o serviço de café (o tal que não é como aqueles de fundinho branco e florzinhas mimosas da VA, este é de uma fábrica na Baviera) que foi, adquirido pela minha mãe há certamente mais de cinquenta anos, por grande insistência minha. Aqui está, fotografado hoje, depois de ser desembalado e antes de ser devidamente arrumadinho num canto que lá consegui arranjar numa vitrina.
Também estive a retirar cartas e fotografias e coisas que estavam misturadas nos sacos. Lembrei-me que estavam umas caixas grandes de cartão na garagem e já separei algumas coisas pelas caixas. Dentro das caixas ainda estão a granel e ainda devem ser agrupadas e organizadas. Mas tenho que ter tempo e disposição para isso. A menos que alguém me ajude. Mas também não sei se me apetece que se ponham a ler as cartas que me eram dirigidas, mesmo que de amigas.
Vou colocar as caixas nas estantes do compartimento do sótão que antes, quando a casa tinha outros donos, era a biblioteca privativa do senhor, apenas para as revistas e livros profissionais dele.
Desencantei também uma saqueta com estojos de canetas. Presumo que fossem presentes que o meu pai recebeu. Claro que também não as usou. Guardou-as e agora vieram parar aqui a minha casa. Estão agora cá, numa gaveta, sem que eu também tenha uso para lhes dar.
No outro dia, em casa da minha mãe, também dei com uma coleção de leques numa gaveta de uma mesa de cabeceira. Ofereci-lhe alguns deles e só me lembrei disso ao revê-los. Ainda este verão lhe trouxe um do Algarve pois queixava-se do calor e nunca a via com leque. Afinal guardava-os todos bem guardadinhos. Como gosto muito de leques e tenho alguns que me parecem bem bonitos, coloquei um deles ao pé dos meus mais bonitos que estão como peça decorativa numa estante com portas de vidro.
Quanto às cartas do meu pai para a minha mãe, quando namoravam e ele estava longe, na tropa, a minha filha está cheia de curiosidade. Vai ficar surpreendida. Acho que vai ela, vai o irmão, vai o meu marido. Também eu estou pois desconhecia a faceta romântica do meu pai. Aposto que o meu marido nem vai querer saber, vai querer respeitar a contenção que o meu pai sempre revelou.
Estive a ver as fotografias dele quando era novo. Era um galã. Vestia-se e penteava-se de uma forma elegante e sedutora. Mas, ao mesmo tempo, era um desportista. Lembro-me muito bem dele a jogar futebol e a organizar torneios e lembro-me que fazia parte da equipa organizadora das equipas que praticavam todos os desportos. Por exemplo, os meus tios jogavam vólei. O meu pai acompanhava-os (e nem sei se também jogava, mas tenho ideia que eles é que jogavam a sério). Mas dois primos dele praticavam hóquei em patins. E eu adorava ir ver, à noite, esses jogos, sempre muito renhidos. Lembro-me bem de estar à espera deles e, às tantas, ouvir o barulho dos patins das equipas a descerem a rampa até ao campo e de achar que aquilo era uma excitação. E lembro-me de uma vez, em campo, se terem picado uns com os outros, já parecia que ia haver pancada, e de o meu pai, muito ágil, saltar por cima da barreira do campo. Pôs a mão em cima, deu balanço, e saltou lá para dentro. E eu fiquei com medo que se envolvessem à pancada com o meu pai no meio. Mas não. Com uma grande calma, lembro-me de ele ter posto uma mão no peito do primo, que era alto e bonito como um galã, do género do Belmondo mas mais bonito, e a outra mão no peito do outro, da outra equipa. E lembro-me de ele ter conseguido impor respeito e eles se terem acalmado e acabarem a dar um aperto de mão e, só então, o meu pai saiu do campo.
Mas, dizia eu, em família não me lembro de observar nele uma faceta romântica. E, afinal, ao ler as suas cartas, fico estupefacta. Ainda só consegui espreitar, e por alto, duas cartas. Sinto-me intrusa. Quem escreve uma carta de amor escreve apenas para a pessoa que ama, não para ser pasto para diversão ou especulação alheia.
Por exemplo, até as minhas cartas, as que foram dirigidas, me custa um bocado a ler. Declarações inflamadas, juras de amor eterno, diminutivos enternecidos, desenhos de corações... Bocados de um tempo passado. Já não somos os mesmos. Quem assim me escrevia já não é hoje assim e a que recebia aquelas palavras pingando amor já não sou eu. Quando me forçar a lê-las, admitindo que o consigo, terei que me esforçar para não as achar cansativamente ridículas. Felizmente não tenho as que eu escrevi senão sentir-me-ia, certamente, agoniada. E, isso, em especial, por, à posteriori, pensar que nada daquilo era verdadeiramente sentido. Se calhar, queria iludir-me, se calhar queria gostar, se calhar sentia-me bem por poder experimentar a sensação de parecer estar apaixonada. Mas na verdade não estava por aquele a quem escrevia as cartas. Portanto, ainda bem que não vejo o que escrevi.
Mas adiante. Pode ser que um dia me apeteça partilhar aqui uma dessas inflamadas cartas de amor que recebi.
Hoje partilho uma página de uma das cartas que o meu pai escreveu à minha mãe. Aqui fica pro memoria. A sua letra manteve-se assim, firme, determinada, organizada, sem atropelos, com hastes e pernas pronunciadas. Isso diz muito da sua personalidade.
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