sexta-feira, novembro 18, 2022

Um dia de saltos altos e estômago vazio

 



Os dias têm sido longos, algo pesados. Para além de me acordarem mais cedo do que o decoro aconselharia, tenho-me visto forçada a ter que começar de imediato a pensar e a agir quando gosto é de avançar devagarinho pela manhã até estar bem desperta. Reuniões longas, algumas em línguas que não a nossa. Muita coisa going on. E depois maçadas, fugas de informação, a gente sem saber de quem desconfiar, em quem confiar. Chatices. 

E, pelo meio, o business as usual, decisões para tomar, muitas sob urgência, sem uma pessoa ter tempo para pensar ou para se documentar convenientemente, sem tempo para respirar. E se, antes, tudo isto me era normal e não me cansava, agora já me sinto um bocado a precisar de intervalar. Num dado ponto da reunião, olhei lá para fora e pensei: o que vale é que amanhã é sábado. Não sei porquê, pareceu-me que já era sexta-feira. Mas depois lembrei-me que isso é que era bom. Quinta-feira do caraças.

Hoje foi daqueles dias em que os saltos altos, bem altos, tiveram que sair à cena. E o resto a condizer com os sapatos, bem entendido. E um Daisy, Marc Jacobs, para suavizar. 

Acho graça ao dog: fica sentado, intrigado, a olhar para mim. Vê-me numa azáfama, a vestir-me, pentear-me, perfumar-me, calçar-me, tudo bem à pressa. Percebe que não vem comigo, isso é bem claro, pelo que a estranheza não vem daí: creio que é a velocidade com que me arranjo e as vezes em que vou ver-me ao espelho, ora num espelho de corpo inteiro, ora num mais curto mas melhor iluminado. Ou seja, percebe que há coisa.

Já não ia ali, onde fui, há algum tempo. A última vez foi também num daqueles andares bem altos de onde se vê Lisboa de cabo a raso, o rio, a outra banda. Mas o dia estava murcho e a névoa cinzenta envolvia a cidade em melancolia. E ainda a tarde ia a meio e já estava de noite. Ter reuniões numa sala envidraçada envolta em noite é daquelas bem típicas. Uma mesa grande, grande, cheia, cheia, mais os que estavam remotos. Os mais novos notoriamente empolgados com a operação, o que me é quase enternecedor. Quando tinha a idade deles também me empolgava com cenas destas, quase convencida de que ali se tratava de coisas de vida ou morte.

Não tive tempo de almoçar. Comi apenas um iogurte daqueles ricos em proteínas. Tinha pensado que antes, no meio ou depois, teria oportunidade de, num ápice, ir tasquinhar uma buchazita. Mas não. Não houve cá tempo para pão para malucos.

No fim, mais do que em cima da hora, desandei para o médico, para uma consulta de revisão marcada há meses. Felizmente, ao que parece, so far so good

Saí já depois das oito. O meu marido estava à porta, à minha espera e, imagine-se, com o urso cabeludo. Carros a passar ali, em contínuo, montes de gente, cheiros novos, luzes com fartura. Tudo novo. E, de repente, eis que daquela babel sai a dona. Gostava que tivessem visto a surpresa e a alegria. Fofo. Saltou, abraçou-me, rodopiou no ar. Uma alegria. Ia a andar e a virar-se para mim, para saltar e para me dar abracinhos. (Refiro-me ao urso, não ao meu marido). 

E eu deserta de fome. 

Resolvemos que o melhor era irmos comprar uma pizza. Encomendei e fomos buscar. Quando chegámos, o meu marido achou que deveria ir até ao fundo da rua a ver se o bicho queria ir fazer alguma necessidade. Como hoje não tinha andado, resolvi acompanhá-los. E aí o urso ficou espantadíssimo. De saltos altos no alcatrão, de noite, ouvia-se cada passo. Quando vamos andar com ele vou sempre de sapatos confortáveis, nomeadamente ténis. Hoje, isto, toc toc toc. Eu andava e ele virava-se, estupefacto. Olhava para mim, olhava-me para os pés. O tempo todo à ida, intrigado. À vinda já não ligou muito ao fenómeno. Aliás a viagem foi curta pois, depois de horas montada neles, já só queria era chegar a casa e desmontar-me. Nestes dias, só descanso quando me descalço, me dispo, retiro brincos, anéis, colares, me desmaquilho, me lavo. Caraças. 

O bem que a pizza me soube, aquecida para estar bem quentinha, o queijo molinho, eu já descansada, consolada. 

Com isto, não é hoje que vou gastar o meu latim com o segundo reformado ressabiado a dar à costa, uma tal mosca morta que, curiosamente, até parece que é amiga do outro. Não há pachorra. Se eu, quando me reformar, me der para escrever memórias destas, a sacudir a água do capote e a querer incriminar ou difamar outros, alguém que faça o favor e a caridade de me impedir nem que seja à força. Ele há com cada um. Caraças.


E agora, com a vossa licença, vou-me retirar para ir mergulhar no azul de um sono lento e descansado.

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As fotografias são da autoria, respectivamente, de Anne-Claire Vimal Du Monteil, Yves Léonard, Michelle Simmons e Edita Bizova. Podem ser vistas, estas e outras, aqui. Acompanha-nos Fiona Apple com Across the Universe. 

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Uma happy friday

Saúde. Paciência. Paz.

2 comentários:

Maria disse...

Um dia cheio, cheio, mas que ,nem por isso , lhe retirou o humor típico , UJM. Bem haja! Não estou a imaginar-me no seu lugar, sem chegar a casa com uma grande "tromba de elefante" e ai de quem falasse para mim.!!!
Tenha uma sexta feira mais leve e um fim de semana no paraíso .
Maria

Pôr do Sol disse...

Ola UJM,

Imagino a canseira de um dia assim.

Mas sabe, ja deu por isso certamente, o tempo agora passa veloz e vai ter saudade dessa obrigação de se preparar mais, de se compor com uns saltos de que ja se desabituou, da maquilagem e depois gostar de se ver. Aconteceu-me.

Hoje, por aqui, já ultrapassámos os setenta e raramente vejo um homem bem vestido, com fato e gravata. Até os jovens com a facilidade do teletrabalho, e não só, vestem-se mais desportivos.

Deve ser um sinal de velhice, mas lembro-me de me habituarem a que uma ida a um espectaculo ou a uma exposição, obrigava a vestirmo-nos "como deve ser". Hoje vão tão práticos ao teatro como para tomar um cafe.

Agora que li o que escrevi, surgiu-me uma frase que ouvi há dias A CULTURA DEVE SER CONSUMIDA COMO UM ALIMENTO. Certamente eles é que estão certos.

Um fim de semana bom com canseiras mas de afetos.

Um abraço.