sexta-feira, agosto 05, 2022

Os mais qualquer coisa de entre os bloggers que sigo (Parte 4):
a guerreira

 

Continuo a fazer justiça aos bloggers que acompanho e que, por um ou outro motivo, acho que se destacam. 

Não quero com isto dizer que os que aqui refiro são forçosamente melhores que os outros de que não falo (até porque tudo isto é tão subjectivo que o que é melhor para um é treta para outro), digo apenas que, pelos motivos que refiro, os acho mais (qualquer coisa) que os outros. 

Se os conhecesse a todos pessoalmente poderia aqui trazer o mais fofinho, o mais aluado, o mais zarolho, o dono dos caracolinhos mais lindos, o que anda melhor ao pé-coxinho, o que tem a voz mais sensual, etc. E, volto a dizer, escrevo no masculino mas tudo se aplica a eles e a elas

Aliás, estou super desactualizada ao escrever, como se apenas houvesse eles ou elas. Em muitas coisas começo a sentir-me à margem dos avanços. As pessoas falam e não sei do que falam. Acontece isto com a gramática portuguesa. Os meus netos falam de coisas que nunca aprendi e que me vejo grega para perceber de que se trata. Pior: não percebo o que é que aquilo acrescenta em relação ao que aprendi, sendo que metade do que aprendi nessa matéria já era a modos que de interesse duvidoso. Isto dos géneros é outra. Ainda não atinei com a categorização assente em terminologias que não há meio de assimilar: não-binários, cisgénero, transgénero, ou pansexual ou poliamoroso. Sei que uns têm a ver com identidade de género, outros com orientações sexuais e outras, tenho ideia, com práticas. Mas, quando ouço no meio da conversa, nunca me lembro onde é que a coisa encaixa e o que é que exactamente significa. 

Assim, fico-me pelas categorias que se conseguem depreender a partir do que os -- ou as ou @s -- bloggers escrevem, das músicas ou das imagens que escolhem ou dos temas que lhes despertam interesse.

E se no primeiro dia falei do mais jovem, da mais criativa e do mais romântico, no segundo falei do mais cirúrgico e do mais inesperado e ontem falei de dois temíveis e intrépidos guerrilheiros, verdadeira tropa de elite, hoje abro espaço para uma blogger que apenas recentemente comecei a apreciar.

A mais guerreira. E a minha dúvida, em relação a ela, começa já aqui. Faz sentido chamar guerreira a uma pessoa como ela? Não sei. Mas não me ocorre melhor definição. Antes achava-a quase uma variante da Pipoca mais Doce, talvez por, nessas alturas, gostar de se auto-designar por 'a pessoa'. Raramente a visitava pois, sempre que ia espreitar, apanhava alguma daquelas coisas que me pareciam feitas para ter graça mas a que eu, desmancha-prazeres, não achava. Contudo, há tempos, num outro blog, o da Flor cuja faca não corta o fogo, vi uma referência que me despertou interesse. Fui ver. Era ela. Falava no cancro que lhe tinha sido diagnosticado e do que estava a sentir. Não é inédito: não é a primeira pessoa a quem isso acontece nem a primeira que escreve sobre isso. Mas gostei. Comecei a seguir. Não se armava em vítima nem em heroína. Não se apresentava como uma pobre coitada nem como invulnerável. Não escondia o medo mas também não ficcionava o sucedido. Atravessou a dor de perder o cabelo, atravessou a quimioterapia, está a atravessar a radioterapia, está a passar pela rotina da angústia e da esperança por que passam as pessoas a quem é diagnosticado o cancro, que são operadas, que têm que fazer tratamentos, que têm que seguir em frente esperando que todo o medo e sofrimento não sejam em vão. A minha mãe já passou pelo susto de saber que tinha cancro e pelo medo dos exames e pelo pânico dos veredictos. Correu bem. Ficou sem um bocado e não foi preciso mais nada, ficou bem. Mas isto, de se estar bem, é sempre dito sob reserva, sempre com medo de 'atrair'. O meu sogro passou pelo mesmo. Não foi inesperado. Fumava demais. Tinha bronquites, teve pneumonias, tinha uma respiração que antecipava problemas sérios. Os pulmões anunciavam o que era quase mais que certo. Mesmo quando bastante doente, fumava às escondidas. Fez quimio, fez radioterapia. Penou um bom bocado e, algum tempo depois, o corpo não aguentou mais. Várias outras pessoas próximas têm passado por isto, cada uma à sua maneira. E o que penso é que são situações que põem a coragem das pessoas à prova. E esta blogger de que falo é corajosa. Mas é corajosa de forma realista. De vez em quando com medo, outras vezes com revolta, outras com esperança, frequentemente com um agudo sentido de observação, muitas vezes com um fantástico sentido de humor. Andando metida em guerras, não perde a compostura nem a sua graciosa feminilidade. Não a vou perder de vista pois sei que irá sempre enternecer-me, surpreender-me e/ou fazer-me sorrir.

Linda Blue in Linda Blue

Alguns exemplos:

Chego à sala de espera — que é mais um salão, dadas as suas medidas, talvez uns cem quadrados, dava para um belo bailarico, não fora as circunstâncias — e apercebo-me de que está bastante compostinha. Faço aquela matemática básica, um terço são lugares vagos, metade das gentes podem ser acompanhantes. Mesmo assim, imagino que vou ali passar o resto do dia e uma parte da noite e pergunto à do balcão se está muito demorado, ao que ela me responde a frase que está ex aequo com “só há o que está exposto”, “esse artigo foi descontinuado” e “isso é com a minha colega”: “A senhora tem que esperar a sua vez”, logo a mim, que adoro retóricas. “Claramente, isso não responde à minha pergunta”, “Mas é que eu não sei”, “Acabou a conversa”, e ficámos por aqui. Pena que também só haja o que está exposto nestes lugares, que não descontinuem estas azedas que estão sempre em modo de frete no seu local de trabalho e, efectivamente, tudo deve ser assunto para a colega, que não está à vista porque nem sequer existe.

A Radioterapia é detestável desde que entro até que saio. O pessoal não tem a noção que trata exclusivamente com pessoas com cancro, como acontece na Oncologia. Já lá dentro, em vez de enfermeiras e assistentes, existem técnicas, com a simpatia de um empregado de mesa. Zero empatia, zero humanidade, é um corre-corre de despe, deita, posiciona milimetricamente para que os raios que partam a possibilidade de o cancro voltar funcionem, luzes e máquinas a toda a nossa volta, uma placa redonda, uma placa rectangular, uma outra que parece um ovo de avestruz, as técnicas saem da sala e uma delas transforma-se numa voz, “Dóna Maria, suspenda a respiração”, “Agora tranque”, e a p. da centrifugadora a fazer girar as placas à minha volta até à asfixia, “ai, que morro da cura”, parece que estou numa daquelas competições absurdas que fazíamos em miúdos, de atravessar a piscina debaixo de água até ouvirmos um gemido que nos saía da garganta, a mim só me apetece fugir dali a bater o dente e correr para os braços da minha mãe, que me espera com uma toalha seca e macia, como macio era o abraço dela.

in Radio Gaga

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Andava há cinco semanas a fazer penso pós-cirúrgico, uma vez, duas vezes por semana, e esta minha mania de me aconchegar nas rotinas, já estava a ser um programa qualquer, as enfermeiras amorosas, o médico um prato cheio, todos os meus pensos foram uma paródia pegada, cada vez que me lembro que de uma das primeiras idas a enfermeira me disse: “Eu sou a Mónica das mamas” — por ser especialista em amamentação —, e eu, que já conhecia aquele nome e alcunha de outro lugar, escancarei olhos e boca, “O quê? A Mónica das Mamas da Bumba na Fofinha? A mesma que mexeu nas mamas da Bumba está a mexer nas minhas!?”.

Então hoje o cirurgião disse-me que já não era preciso voltar lá, deu-me alta e aquilo pôs-me em baixo. A enfermeira igualmente desolada, “Espero que tudo lhe corra bem, foi das pessoas mais simpáticas que por aqui passaram”, e eu de beiça caída, “E agora, senhor doutor?”, ele de braços abertos para mim, “Agora…”, e abraçámo-nos quase longamente, “Vai tudo correr-lhe bem, é muito querida, gosto muito de si”. 

Devia ter saído do hospital aos pulinhos, mas nunca achei graça nenhuma a despedidas. Flutuei até ao carro, embargada, apesar do quase doce sabor de mais uma pequena vitória.

https://youtu.be/ifm00JEjSeo

in deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.

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Entrei no gabinete e toda eu era sombras e tempestades: sentei-me sem convicção, os ombros denunciando desalento, um pequeníssimo suspiro imperceptível, ou, melhor dizendo, talvez o mundo inteiro tenha ouvido, pois a médica perguntou-me por que é que estava tão desanimada, se dias antes havíamos falado pelo telefone e eu era a personificação do optimismo. Falei-lhe do tempo, das nuvens, do quão isso influencia o meu estado de espírito, depois, perante a descrença dela, que podiam ser efeitos químicos, por fim ainda tentei a desculpa das hormonas, até que confessei num fio de voz, os olhos pregados no chão por uma culpa e um medo que me esmagavam sem piedade — imerecida —, que, na sala de espera, tinha estado perto de mim uma senhora da minha idade, a barriga enorme semelhante à de uma gestação de seis meses, um gemido baixinho e contínuo, e não fui eu — porque endureci ultimamente — que lhe perguntei se precisava de ajuda, como faria sem hesitar noutros tempos que sei lá se voltam, foi outra senhora que também ali estava e, certamente, feita de massa melhor do que a minha. Ela que não, que a enfermeira já vinha, até que lhe percebi o corpo inteiro a sacudir-se, eram soluços como os de uma criança magoada, Tenho dores, e eu, endurecida, saí dali para fora quando vi chegar duas médicas e a mim me chegavam, cobardes, duas míseras — miseráveis — lágrimas aos olhos, duras como pedras.

in Ultimamente endureci

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Tenho uma comadre que só não é minha irmã porque não nasceu de obra de nenhum dos meus pais. Todos os dias, sem excepção, liga ou manda mensagens, a saber de mim. (Em contrapartida, tenho uma outra que me manda mensagem à segunda-feira a desejar boa semana.)

A minha comadre Madalena — que não podia ter um nome e um coração mais bonitos — baptizou a minha cabeleira (cansei de chamar peruca ao meu novo cabelo) de Natércia. Disse-me: “Arranjámos uma amiga para a vida: a nossa peruca!”. Assim, tal e qual. Eu uso, mas ela é nossa, faz parte deste caminho de pedras pontiagudas que percorremos descalças, de mãos dadas. Não vamos sozinhas, pois está connosco uma pequena multidão disposta a trilhar o túnel comigo, sem permitir que eu caia de todas as vezes que tropeçarei.

Nossa Natércia é da melhor qualidade: bati o pé por uma de cabelo natural, pois o nome diz tudo. Faz-me confusão ver as pessoas com cabelo de boneca e temi que me voltasse em forças a vocação para cabeleireira que tive entre os quatro e os sete anos, em que não houve boneca nenhuma — e tive dezenas, filhas de médico são cruel e profusamente brindadas no Natal e em datas aleatórias — que não ficasse escalpada até à “raiz”/implante, julgo que por estar convencida de que aquilo crescia. Mais tarde, apurei a técnica (ou talvez tenha levado três anos a perceber que “aquilo não crescia”), passei a usar rolos ou escova de enrolar e secador, e passei também a queimar/ encolher/ trilhar o cabelo às bonecas. Em suma, a técnica estava toda lá, o material é que era fraco. Por estas e outras razões, decidi deixar um rim na loja das cabeleiras, mas trouxe o cabelo da outra, que agora é meu. “Ah, é porque podes”, dirão as inflamadas da vida. Biafine.

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Natércia passou a prova de fogo — longe vá o agoiro — numa ida ao hospital. Perguntei ao segurança da oncologia onde é que podia fazer análises clínicas e ele indicou-me um laboratório a cinquenta metros dali, também pertencente ao hospital, porém para outras especialidades. Assim fiz, e só quando a enfermeira me perguntou por que é que estava a fazer análises ali e não no laboratório próprio para oncologia, é que percebi que, para variar, havia batido pela enésima, porém não última vez nesta vida, à porta errada. Já que tinha que voltar ao edifício para ter consulta com o giro, perguntei ao segurança por que é que me tinha mandado para o outro laboratório, sendo que havia um ali mesmo ao lado. Olhos escancarados, “Oncologia?”, “Sim.”, mãos unidas em oração, “Ai, ó minha senhora, desculpe, mas é que não se percebe nada, ninguém diz!”. E eu, tão feliz, peguei numa mechinha de nossa Natércia e disse: “Isto não é meu.”, fazendo aquele gesto de vitória com o punho fechado, baixando o cotovelo, e, melhor que tudo, fazendo com que ele se risse do meu riso.

Gosto sempre mais de me ver despenteada, nem Natércia escapa

in A nossa Natércia

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Espero que a Linda Blue, a quem desejo uma vida longa e feliz, se um dia se vir aqui, não leve a mal eu ter transcrito estes seus textos tão pessoais nem ter colocado aqui a sua bela fotografia. Se não quiser estar aqui, é só dizer-me que, logo que possível, farei como me disser. Contudo, o seu testemunho é tão íntimo, tão genuíno, tão enternecedor que tenho que aqui lhe agradecer a generosidade da partilha dos seus dias.

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Desejo-vos, a todos, uma boa sexta-feira.

Saúde. Boa sorte. Alegria. Paz.

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