terça-feira, março 29, 2022

Os que sobrevivem

 



Um conhecido hoje dizia-me que tem discutido com a mulher e com as filhas sobre se devem receber alguma família ucraniana em casa. Por ele receberiam mas a mulher, que também trabalha, diz que lhe faria impressão, durante o dia, deixar a casa nas mãos de estranhos. As filhas indignam-se, perguntam de que é que a mãe tem medo. O meu conhecido diz que, de certa forma, compreende mas que, ao mesmo tempo, acha que são preocupações sem razão de ser pois são pessoas que deixaram a vida para trás e que apenas precisam de um amparo enquanto não conseguem ter a sua independência financeira. Depois, com lágrimas nos olhos, falou-me de uma imagem que não lhe sai da cabeça, a de uma criança a chorar enquanto se despedia do pai. Nessa altura, desviei o olhar. Os homens não gostam que a gente lhes perceba a emoção.

O tema do acolhimento de famílias é um tema que também me perturba. Qual a melhor maneira de integrar estas pessoas que fogem da guerra?

Uns amigos de Lisboa tiveram durante anos um casal de ucranianos a viver numa sua herdade no Alentejo. Tinham vindo da Ucrânia num outro êxodo. Tinham a herdade por sua conta e gostavam muito de lá estar. Quando os donos e amigos lá iam, ficavam todos contentes por terem companhia, era como se estivessem a receber convidados. Eram pessoas simpatiquíssimas. Tinham uma filha na Ucrânia e, na última vez em que lá estive, tencionavam lá ir visitá-la. Não sei o que é feito deles, tenho ideia que regressaram há algum tempo. Se assim foi, devem estar outra vez a viver um pesadelo. Não sei que profissão tinham na Ucrânia nem sei como chegaram ao contacto com esses meus amigos mas imagino que sentissem aquela sua estadia ali como uma bênção. Tinham alojamento, largueza de acção, um ordenado e, sobretudo, paz.

Quando a minha sogra teve um avc estando o meu sogro já doente, tivemos que arranjar, quase de um dia para o outro, uma pessoa para os acompanhar em casa a tempo inteiro. Lembro-me que um dia, do hospital, me ligaram a dizer que mandássemos uma ambulância buscá-la. Eu estava no norte, o meu marido estava não sei onde e os meus cunhados estavam também na sua vida. Ela não andava, estava completamente dependente, e não tínhamos a casa minimamente adaptada à sua nova condição. Nunca imaginámos que lhe dessem alta estando ela ainda assim. Fiquei preocupada, sem fazer ideia do que fazer. Um colega ouviu os meus telefonemas e, percebendo a minha aflição, sugeriu que contactasse o Serviço Jesuíta aos Refugiados. Assim fiz. Expliquei a situação. Pouco depois, ligaram-me a perguntar se estaríamos disponíveis para acolher uma médica moldava que o pouco que sabia de português tinha sido aprendido numa breve passagem por Angola. Contactada a família, obviamente aceitámos. Pareceu-me que melhor não poderia ser. Ajudou-nos em situações complicadas, nomeadamente despistando, de forma certeira, alguns sintomas que requeriam atenção urgente. Queria aprender português e gostava de ali estar. Infelizmente, naquela altura, os meus sogros ainda não estavam bem conscientes do seu estado de saúde e preferiam alguém mais vocacionado para o tratamento da casa do que da sua saúde. O facto dela pouco saber de português também lhes fazia confusão. A minha sogra queixava-se que ela não sabia pôr a mesa como devia ser ou que não arrumava a roupa a seu gosto. Tentei de tudo para que percebesse que isso era de somenos. Importante era ela saber vigiar a saúde deles, saber ajudar na sua recuperação, acompanhar a fisioterapia, etc. Terem uma médica a viver com eles era mesmo uma sorte. Mas a minha sogra não valorizava isso e queixava-se que ela queria era aprender a falar português, não ligando nenhuma para aprender a tratar da casa como devia ser. Eu reconhecia que era bom também para a médica pois tinha um tecto e um ordenado mas que os maiores beneficiados eram eles os dois, que estavam doentes. Mas não tive sorte. Ao fim de algum tempo tinham-na mandado embora, coisa de que ela também não se deve ter importado muito pois já devia estar saturada de quererem uma empregada doméstica quando estava mais do que na cara de que precisavam mesmo era de apoio clínico.

E penso que deve ser muito isto que por vezes acontece no acolhimento de pessoas de outra nacionalidade com fraco domínio da língua, em especial quando as expectativas mútuas não convergem. Ter alguém em casa com quem não se tem empatia deve ser horrível.

Esta segunda-feira, na empresa, em diversas situações, recomendei que se tentasse recrutar refugiados ucranianos: se calhar conseguir-se-á encontrar pessoas com as habilitações adequadas e, se falarem minimamente inglês, já estará bem. Numa das vezes, notei uma certa desconfiança, quase como se houvesse o risco de que os ucranianos viessem 'roubar' o trabalho aos portugueses. Receio infundado. Neste momento, pelo menos em funções técnicas, não existe desemprego em Portugal, existe é escassez. Por isso, nem que fosse apenas por isso e não por razões humanitárias, já era bom haver a possibilidade de se poder recorrer a mão de obra que hoje nos falta. Mas, ao darmos trabalho a novos cidadãos com os quais não tivemos que investir na sua formação e que vão ser novos contribuintes, estaremos a ter um ganho líquido para o país. 

Portanto, a integração de refugiados, em especial se estiverem aptos a trabalhar, é sempre uma coisa boa. E crianças...? Que bom para o país. Claro que ainda melhor será se por cá acabarem por ficar: que boa injecção demográfica isso seria... Isto, claro, para não falar na prática da generosidade e na multiculturalidade que são gratificantes sob qualquer ponto de vista.

E isto vale para refugiados e/ou imigrantes de qualquer nacionalidade ou raça. Que se sintam bem, que queiram cá ficar, que integrem a nossa realidade, que nos ajudem a desenvolver o país.


Mas se um dia regressarem ao seu país, se quiserem ir ajudar na sua reconstrução, se quiserem ir em busca das suas raízes, cá estaremos para os receber sempre que quiserem voltar para virem matar saudades.
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O que não podemos, penso eu, é deixar de sentir compaixão e solidariedade pelos que perdem entes queridos, que perdem a casa e a sua vida. Sobrevivem às perdas mas o que devem sofrer... E, ao mesmo tempo, a esperança que devem sentir em melhores dias, em felizes reencontros. São uns heróis.

'My mother was still alive while she was on fire': Teen describes horrific attack

15-year-old Andriy recounts to CNN's John Berman the moment his family was forced from their home at gunpoint in Chernihiv, Ukraine, and the attack that claimed his mother's life


Ukraine war creates largest refugee crisis since WW2 - BBC News

Four weeks since Russia invaded Ukraine and the lives of millions have been turned upside down.

"Children were killed and teenage girls were raped, we had to leave, they were shooting at the cars as we tried to escape," Ukrainian mother Yulia Kirienko said.

Almost a quarter of Ukraine's population has fled their homes, with around 60% going to Poland.


Ukraine War: Town of Izyum hit by heavy shelling

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Fotografias de John Dykstra na companhia de June Tabor interpretando Music of World War I

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Desejo-vos uma boa terça-feira
Saúde. Boa sorte. Esperança. Paz.

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