segunda-feira, março 28, 2022

Em noite de Oscares, memórias de outros tempos e vídeos muito esclarecedores nomeadamente aquele em que se fala de uma certa ponte dourada.
A vida é múltipla, incoerente e misteriosa.

 



Um dos meus professores de História era o Reitor, um bacano, um bon vivant. Baldava-se à grande e à francesa às aulas. Aquilo não tinha seguimento. Nunca se percebia que matéria estava a dar, se é que estava a dar alguma. Num dos testes deu-me uma nota fraca que não compreendi. Pensava que tinha as respostas certas. Nunca fui de me ficar quando penso que tenho razão. Tentei falar com ele no liceu, tentei, tentei, mas não consegui. Como sabia onde morava, não fui de modas: fui a casa dele. Não me recordo exactamente dos pormenores mas o que me ficou é que ficou muito atrapalhado e surpreendido por lhe ter aparecido em casa. Lembro-me também que confessou que, na realidade, não tinha tido tempo para ler os testes com atenção. Disse que ia rever. Mas deve ter-se esquecido. Não reviu e tive uma nota abaixo da que me pareceria justa. Aquilo deixou-me arreliada, injustiçada. Tudo naquela disciplina, pela forma como era data, me soava a pouca coisa. Cheguei ao fim do ano com a sensação que não tinha aprendido nada.

Outra professora que tive a História era um desastre. Era muito enfática, teatralizava o que dizia mas tinha um problema: parecia que engolia ar a mais e ficava com a voz transtornada como se precisasse de dar um grande arroto. Como não o dava, ficava a disfarçar a aerofagia enquanto falava. Já antecipávamos quando aquilo ia acontecer, e acontecia várias vezes em cada aula. Aquilo dava-me uma terrível vontade de rir. De vez em quando tinha brutais ataques de riso que mal conseguia controlar.

Um desses ataques mais complicados aconteceu num dia de teste. Já o devo ter aqui contado. Apesar de ser aluna mediana a História, à minha volta havia quem soubesse ainda menos. Eu deixava copiar tudo. As mesas ('carteiras') eram individuais, em filas. A rapariga que estava na fila ao lado da minha era minha grande amiga e, naquele dia, estava mesmo atrapalhada. Perguntava-me e eu tentava bichanar-lhe a resposta mas ela não percebia. Fez-me sinal para eu escrever. Para além da folha de ponto, folha própria, eu tinha uma folha de apoio, como se fosse para me servir de rascunho. A professora estava desconfiada e eu não sou grande coisa a disfarçar o que quer que seja. Escrevi a resposta na folha de rascunho, meio às escondidas, sempre pronta para esconder a folha debaixo da folha de teste, e, mal apanhei a professora distraída, passei-lhe a folha. A professora sempre de olho. Então, quando vou continuar a fazer o teste, cai-me tudo: na atrapalhação, despassarada como sou, tinha-lhe dado a minha folha de teste e tinha ficado apenas com a folha de rascunho que continha apenas a resposta a uma pergunta. Quando recebeu o meu teste, a minha amiga olhou para mim espantada, assustada. E eu, ao ver o que tinha feito, desatei a rir. A professora perguntou-me o que se passava e eu, entre o assustado e o divertida, disse que não era nada -- mas cada vez me ria mais. A outra cheia de medo, sem saber o que fazer, com o meu teste nas mãos e eu, em vez de estar sóbria, para a professora deixar de olhar para mim, naquele despreparo. Às tantas, a professora já me perguntava se eu queria ser posta na rua. E eu a chorar a rir. A outra já em pânico e a professora intrigada, desconfiada, a julgar que eu estava a rir dela. Fiz um esforço enorme, pensando que se não conseguisse recuperar o teste, no fim estaria em maus lençóis. Ao fim de um bocado, lá consegui que a professora desviasse os olhos e a outra lá conseguiu restituir-me o teste. Devo ter tido uma nota meio da treta, pois não devo ter conseguido acabar. Não me lembro. Só me lembro do ataque de riso. Ainda hoje, enquanto escrevo isto, me rio.

Tive uma outra professora, uma já com uma certa idade, que usava umas roupinhas muito curiosas. Lembro-me de um vestido justinho de malha que lhe ficava deveras bizarro. As aulas consistiam na sua leitura do livro. Ao fim de um bocado, já ela estava a perder a mão na turma. Ela lia monocordicamente, enquanto toda a gente se portava mal, ria, contava piadas, pregava partidas. Ela bem tentava ter mão em nós mas era impossível. De vez em quando enchiam a sua cadeira de pó de giz. Quando ela depois andava a ler o livro entre as filas de carteiras, a saia tinha duas manchas brancas no rabo e toda a gente ria a bom rir. Nos testes, queria que repetíssemos quase palavra por palavra o que estava no livro. Se omitíamos uma linha ou uma palavra, ela marcava incompleto. Por essa altura eu era apaixonadíssima pelo bad boy da turma. Num dia de testes, ele foi apanhado com o livro em cima do tampo da carteira a copiar as respostas. Ela, quando viu, ficou histérica: 'O que é isto? A copiar? Seu descarado? A copiar à descarada? O que vem a ser isto?!' E ele, sereno, desafiador: 'Como quer respostas exactamente iguais ao livro, resolvi certificar-me de que não falhava uma palavra'. Ela enraivecida e todos nós perplexos. Furiosa, mandou-o entregar a folha de ponto e sair da sala, ameaçando-o de que ia anular o teste. Eu com o coração disparado, querendo que ele tivesse juízo. Mas ele, descaradão e descontraído, levantou-se e saiu, nas calmas, sorridente. No entanto, movimentámo-nos todos e ela teve que arrepiar caminho. Com esta professora, eu, que sou péssima a decorar o que quer que seja, desliguei. História não era comigo, definitivamente.

Com estes professores nunca consegui, pois, que me ensinassem a gostar de História e isso ficou-me para o resto da vida. Tenho a sorte de ter cá em casa uma pessoa que gosta e sabe de História e que me ilumina quando estou às escuras. Mas é uma lacuna que nunca conseguirei ultrapassar.

[E estou a escrever isto enquanto as estrelas entram na cerimónia dos Oscares e se apreciam os vestidos que desfilam na passadeira (parte deles deixando os seios praticamente a saltar-lhes de dentro) e, ao mesmo tempo, leio notícias e vejo vídeos sobre a situação da Ucrânia e recrimino-me por misturar, no meu tempo e no meu espaço, o medo e o sangue com a volubilidade e o glamour da moda e da festa do cinema e com recordações que não têm nada a ver. Mas a minha cabeça deve precisar de manter compartimentos para cada emoção e, por isso, nem vale a pena eu fingir que não: ao mesmo tempo que me preocupo e me angustio e que me revolto com a bandidagem do Putin, mantenho via verde para as minhas memórias e, en passant, para ir acompanhando l'air du temps. A mente é um lugar tortuoso com labirintos, abismos, clareiras, pontos de luz.]

Mas esta conversa sobre a minha ignorância sobre História para dizer que, enquanto confesso o meu desconhecimento sobre matérias que explicam a raiz de muitos conflitos, a verdade é que, no que se refere à actualidade, tento compreendê-la nas suas diferentes vertentes. O que se passa na Ucrânia parece-me de tal forma aberrante e condenável que tento espreitar os acontecimentos sob diferentes ângulos. Evito fontes que podem ser discutíveis e procuro órgãos de comunicação social idóneos nos quais a informação é validada.

Hoje partilho vídeos que me parecem muito esclarecedores. Sendo todos interessantes, vi com especial atenção o último. Como sempre, não existem versões com legendagem em português...

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What untruths is Russia spreading about Nazis in Ukraine? - BBC News

One of President Putin’s justifications for his invasion of Ukraine is that he wants to "denazify" the country.

Ros Atkins looks at the distortions and untruths that Russia is spreading about Nazis in Ukraine - including about the role of the Azov regiment, who are based in Mariupol and are part of Ukraine's national guard.

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'Could be a big problem for you': Security analyst's warning to Putin

CNN's Peter Bergen reviews the implication of the Soviet Union's invasion of and withdrawal from Afghanistan, and how it could draw parallels to Russia's war in Ukraine today

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The Psychology of an Isolated Russia | The New Yorker

David Remnick and the historian Steve Kotkin discuss Vladimir Putin and how authoritarian regimes are pushed into misguided foreign wars.
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Pinturas de Nathan Altman na companhia de Valeria Kurbatova (Harpa) e de Davina Clarke (Violino) que interpretam o Romance de Dmitri Shostakovich

[Caso ainda não tenham reparado, este blog não gosta de assassinos, nomeadamente, de um dos mais cruéis de que há memória nos tempos recentes, mas acolhe de braços abertos a arte e os artistas russos]
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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira
Saúde. Boa sorte. Paz. E que o milagre não se faça esperar.

3 comentários:

Maria disse...

UJM devo confessar que fiquei com "dó" dos professores que refere. Conseguiu acordar o meu bichinho adormecido pela aposentação, dos muitos anos que fui professora!
Nem sabe como é, foi e será sempre difícil esta profissão.
E a motivação, ah a motivação, tem muito que se lhe diga ...
Mas, no final, acho que não lhe fez grande falta essa lacuna, pois pelo seu blog que sempre leio e aprecio, revela além de conhecimento dos factos, uma boa capacidade de análise e relacionamento dos mesmos. Afinal professores tivemos muitos, mas a melhor mestra é a vida.
Uma boa semana. E afinal como se chama a fera, little bear que aí mora? Ou não quer revelar publicamente?!

Um Jeito Manso disse...

Olá Maria,

Ser professor é exercer uma nobre e ingrata profissão. Sou filha de uma professora e eu própria o fui durante dois anos e tal. Sei o que é. E a questão da motivação foi a que me levou a sair assim que pude. Receava que me faltasse a motivação e que não conseguisse transmitir entusiasmo ou gosto pela matéria.

É preciso ter uma forte vocação para conseguir encontrar motivação para conseguir ultrapassar diariamente as muitas dificuldades da profissão.

Vai perdoar-me mas não vou dizer o nome do canito. E sabe porquê? Há leitores que me dizem que se me virem saberão quem eu sou. Há alguns que tentam por todos os meios descobrir (não sei para quê). Imagine que me ouvem a chamar pelo animal... e confirmam pelo nome que não tem que enganar.

Claro que sou uma pessoa normal, sem nada a esconder. Mas há malucos para tudo e escuso de me pôr a jeito...

Dir-lhe-ei apenas que tem um nome inventado. Desde que comecei a contar histórias aos meus netos, e já lá vão uns anitos, inventei uma princesa que anda metida em aventuras e no meio das quais aparece um cão maluco e desobediente mas do qual ela e os primos e amigos gostam muito.

Quando fomos ao Alentejo buscar esta fera cabeluda, ocorreu-me que era o cão saído das minhas histórias. E assim ficou. É tal e qual o cão terrível e amoroso que põe a cabeça da princesa em água.

Mas, entretanto, vou-lhe mudando o nome conforme me apetece e não sei se é pelo tom se porquê, ele percebe que é com ele que estou a falar. Se lhe chamar Zequinhas ou Zililinsky ou Gordolini ele dá na mesma ao rabinho e vem a correr ter comigo.

Um abraço, Prof. Maria. Uma boa semana também para si!

Maria disse...

Ora,ora, compreendo-a perfeitamente. O que importa é que é tão lindo, encaixa tão bem nessa família e eu, que adoro animais e também os tenho, derreto-me, quando leio sobre as diabruras desse queridinho...