quarta-feira, outubro 13, 2021

Do que sinto mais falta na minha vida?

 


Não sei se o título deveria ser como o escrevi. Em inglês é: What do you miss most about yourself? Não sei se 'acerca de mim' é sinónimo de 'na minha vida'. Mas, vá, fica como está. Acho que vai dar ao mesmo.

No vídeo abaixo, várias pessoas que não se conhecem nem conhecem Thoraya Maronesy respondem a essa pergunta perante uma câmara que as vai mostrar ao mundo. E, como sempre, sem dúvidas ou hesitações, respondem. Surpreende-me isso tal como me surpreende que apareçam tantas pessoas com depressões ou outras perturbações do foro mental. A gente olha e vê-as a sorrirem. Quem sofre, sabe disfarçar. 

Como me acontece quando vejo estes vídeos dou por mim a pensar no que responderia eu. 

E ocorrem-me muitas coisas. Algumas creio que são irrepetíveis pelo que não é apenas sentir falta, é mesmo a nostalgia de as considerar perdidas para sempre.

Vou enunciar algumas:

- Sinto saudades de saltar a fogueira nos santos populares. No fim da minha rua, no sítio em que se subia para outra rua, os rapazes crescidos faziam fogueiras com troncos de árvores e ramos de alecrim. O perfume era muito bom. Estava muito calor em volta. E nós tomávamos balanço na rua que descia e saltávamos por cima. Aquele medo de não ser capaz de saltar suficientemente alto e de me queimar estava sempre presente mas a vontade de vir a correr, de saltar, de sentir que estava a saltar sobre o fogo era mais forte. Noites de emoções boas, quentes, perfumadas.

- Sinto saudades de dançar muito agarradinha ao meu namorado, naqueles ambientes de garagem carregadinhos de hormonas a despontar, de descoberta, de aventura, de transgressão. Tenho saudades do momento em que descobri que o amor era uma mistura de muita coisa até então desconhecida entre as quais a atracção física, essa coisa mais boa.

- Sinto saudades da emoção que sentia quando o carteiro trazia uma carta para mim, ainda mais se o envelope mal fechava de gordo que vinha, ainda mais se mal conhecia quem estava a escrever-me. Sinto saudades das cartas que escrevia à mão num papel bonito que tinha desenhos abstractos e suaves como se fossem uma aguarela. Sinto saudades da inquietação que sentia até receber carta de resposta.

- Sinto saudades de sentir aquele abalo nas estruturas, aquela rasteira fatal, o chão a desaparecer debaixo dos pés, aquele coup de foudre fatal que leva a que um não passe sem o outro e que se sinta, sem sombra para dúvida, que aquela pessoa é a pessoa da nossa vida (sem querer saber se é ou não para sempre, que isso é pormenor para o qual não há tempo). 

- Sinto saudades da praia, da parte de trás das dunas e das giestas como dosséis. Sinto saudades de um certo apartamento e do que nele fazíamos, deitados numa cama que não era nossa, ouvindo uma música que não era nossa, dançando numa sala que não era nossa. Em cima da cama havia uma manta feita de pele de raposa, uma pele macia e quente, e havia Janis Joplin para nos fazer cantar e para me dar vontade de dançar e lá fora havia nevoeiro, estava frio e cheirava a castanhas assadas. E mal saíamos já estávamos com vontade de para lá voltar.

- Sinto saudades de sentir uma vida a formar-se no meu ventre, umas pessoazinhas pequenas a mexerem-se dentro de mim. O joelho espetado aqui, um pezinho ali, agora está a virar-se, agora está já tão grande que os movimentos são mais lentos, a mão sobre o ventre tentando adivinhar o que fazia e como era a pessoa lá dentro. Sensação única, maravilhosa, transcendente. 

- Sinto saudades do momento único e mágico em que conheci cada um dos meus filhos e, mais tarde, cada um dos meus netos, aquele momento em que o meu coração transbordava de amor e de agradecimento. E isto apesar de ainda hoje, todos os dias, sentir o mesmo amor e o mesmo agradecimento.

- Sinto saudades de sentir um serzinho esfomeado a beber o meu leite, saudades de o sentir agarradinho a mim, quentinho, cheirosinho. Sinto saudades de ter cada um dos meus netos, bebés, no meu colo. Sinto saudades de cada minuto que vivi com os meus filhos e com os meus netos.

- Sinto saudades de chegar a um campo de pedras e mato e, com os olhos quase fechados, imaginar os caminhos e os recantos ainda por fazer, as sombras das árvores ainda por plantar, os passeios que haveria de dar ouvindo o canto dos pássaros.

- Sinto saudades do dia em que dei uma entrevista na qual o jornalista, a meu pedido, não me identificou, que foi tema principal, de capa, do jornal que, na altura, mais se vendia. Tenho saudades de ver toda a gente conhecida a dizer que só podia ter sido eu a dar aquela entrevista e eu nem aí, como se não fosse nada comigo. Tenho saudades das ameaças que recebi e do risco enorme que corri. Tenho saudades do meu descaramento a desafiar os que poderiam prejudicar-me seriamente a provarem o que diziam. Tenho saudades do nervosismo que sentia nos outros ao verem-me exposta, desafiadora, descarada, a pisar brasas quentes.

- Sinto saudades de conspirar, de me reunir clandestinamente, de delinear estratégias, de arranjar apoios, de desenhar acordos, de partir para a luta com um secreto frio no fundo do estômago mas com a adrenalina a bombar, a impelir-me para o perigo.

- Sinto saudades de fazer o que não devia, de colocar em risco a minha carreira, o meu emprego, o meu bom nome, sinto saudades de arriscar até ao limite. Sinto saudades de enfrentar a acusação, a dúvida, de desafiar quem tinha o poder de acabar comigo se viesse a confirmar-se que o tinha feito. Tenho saudades de andar no fio da navalha. Sinto saudades de sobreviver a tudo isso e, mal acabada uma, ter vontade de o repetir.

- Sinto saudades das piadas ditas por meias palavras e que se adivinhavam brejeiras, acanalhadas, impróprias, politicamente muito incorrectas ditas por outros quando eu não podia rir, quando tinha que tentar disfarçar, quando morria de vontade de rir, quando chorava a rir e a ter que fingir que não, situações que ainda hoje me fazem rir. 

- Sinto saudades de viajar em wagon-lit, o comboio cruzando serras e atravessando rios, aproximando-se das cidades, eu deitada numa cama confortável enquanto via as brumas da noite, a alvorada despontando. 

- Sinto saudades de tantas coisas que o que me vale é que não fico agarrada a elas.

Mas, agora que penso melhor, coisas de que se sente saudades não é forçosamente coisas de que se sinta falta ou que se queira voltar a viver. Umas serão, outras nem tanto assim -- até porque a idade e as circunstâncias da vida foram mudando.

[E bola para a frente].

______________________________________________________

Pinturas de Celso Orsini enquanto Janis Joplin interpreta Mercedes Benz

_________________________________________________________

E este é o vídeo de que acima falei.

What do you miss most about yourself? -- Thoraya Maronesy



_______________________________________

Desejo-vos um belo dia
Ânimo. Saúde. Motivação. Esperança.

Sem comentários: