sexta-feira, outubro 01, 2021

A vida e o amor dos pouco normais

 



Quando deixei o ensino e entrei no mundo das empresas sofri um choque monumental. Vinha fresquinha da faculdade e do mundo civilizado e fui parar a um antro de velharias. Havia gente nos escritórios em número que me parecia irracional, trabalhavam de maneiras que me pareciam irracionais, falavam uma língua que, toda ela, me parecia irracional. 

Do terreno, de manhã cedo, chegavam resmas de papel com os 'apanhados' do dia e noite anterior. Os papéis eram distribuídos por aquela gente toda que os 'tratava' noutros mapas. Tudo manual. 

Para mim tudo aquilo era um pesadelo. O ambiente era óptimo, muita gente nova, mas os novos encaixavam naquela máquina trituradora a que os mais velhos se tinham fortemente apegado. Toda a gente a fazer 'mapas' à mão, quanto muito com a ajuda de máquinas de calcular. Os 'mapas' finais eram enviados para a dactilografia para seguirem em letra de forma para os escritórios centrais. 

Quando me viam mais aborrecida com aquele atraso de vida, diziam-me que era mesmo assim mas que, rapidamente, eu seria transferida para os escritórios centrais onde me esperava um daqueles desafios que aparece uma vez na vida, aquele para o qual tinha sido contratada. 

Nessa altura conheci pessoas incomuns. Uma das mais estranhas era o Doutor Figueiredo. Avisaram-me que era uma pessoa difícil, que não valia a pena contar muito com ele. Mas, para um determinado assunto, só ele me poderia elucidar. 

Fui ao gabinete dele. Era um homem estranho. Amorfo. Um vago sorriso. Praticamente não falava. Pedi que me explicasse o assunto. Fazias pausas longas e desconcertantes, falava de forma vaga, outras vezes entrava num pormenor tão exaustivo que se perdia a noção do que se estava a falar. Ao fim de horas, exausta, saí dali sem perceber qual era o problema dele.

Todos os dias a meio da manhã e a meio da tarde juntávamo-nos na copa e era uma risota, um mundo de histórias para comentar. Os mais novos animavam o grupo mas por lá passavam todos, incluindo os mais velhos. Quem nunca lá punha os pés era o Dr. Figueiredo. Chegava de manhã, estava fechado no seu gabinete até à hora do almoço, depois ia almoçar ao refeitório, sempre sozinho, regressava ao gabinete e saía sempre à mesma hora. 

Enquanto lá trabalhei, raramente o via. Ninguém falava dele. Penso que toda a gente se esquecia da sua existência. 

Anos depois, quando alguém me falava daquelas instalações da empresa, eu perguntava: 'Que é feito do Dr. Figueiredo?'. E a resposta era sempre a mesma: 'Lá está'. Mil reestruturações se faziam, mudanças, promoções, transferências. Toda a gente, de uma maneira ou de outra, toda a gente mudava. Excepto ele. Acho que se esqueciam da sua existência. 

No outro dia uma ex-colega ligou-me. Falámos de mil coisas e, às tantas, diz-me ela: 'O sogro do meu filho é que teve Covid. Ninguém sabe como ele a apanhou pois nunca sai de casa e não se dá com ninguém.' Depois lembrou-se: 'Se calhar, lembra-se dele. É o Dr. Figueiredo' Fiquei banzada. 'O Dr. Figueiredo? Mas casou-se? Teve filhos? Como foi isso possível?' Ela riu-se: 'Agora está viúvo. Mas a mulher ainda era pior que ele... Uma coisa mesmo estranha... Quer dizer... a gente acaba por se habituar àquilo... Mas tiveram uma filha. A minha nora. Uma rapariga inteligente, bem disposta. É professora.'. Eu estava pasmada: 'Não falava, não interagia. Como arranjou mulher?' Ela ria. Confirmou: 'Um mistério. Não fala, nisso está igual. Mas havia de vê-lo com os netos. Brinca, deixa-os arranjar o jardim com ele. Os miúdos gostam muito dele'. Disse-lhe: 'Nunca percebi como é que uma pessoa tão estranha foi capaz de tirar um curso'. Ela disse: 'Tirou. E lê muito. E, sabe lá, toca muito bem piano'.  Ainda fiquei mais espantada. 'É autista?'. Ela confirmou: 'Sim. Mas não há muito tempo que se sabe disso. Sempre passou por ter um feitio esquisito. Diziam que era autista mas era no gozo, sem saberem o que diziam. Afinal é mesmo.'.

Como a prima silenciosa do meu pai. Nunca falava. No verão, juntavam-se os primos no Algarve. Toda a gente falava, eu e os outros miúdos faríamos barulho, era uma animação. Grandes mesas com comida feita no fogão de lenha, uma alegria. E ela, sorrindo, muda. Cresci a pensar que ela não falava mesmo. Toda a família pensava que era atrasada. Foi mais tarde, quando teve cancro e esteve internada na Palhavã (como, na altura, se designava o IPO), que, indo a minha mãe lá visitá-la, ela a surpreendeu, falando. Afinal falava, afinal não era atrasada. A minha mãe disse que o que ela era, era autista e que nunca ninguém quis saber de procurar saber alguma coisa sobre o assunto. Achavam que ela era diferente, esquisita, e aceitaram isso sem querer aprofundar o assunto. Vivia fechada dentro dela própria. Mas sorria, um leve e ausente sorriso, ouvindo as conversas.

E uma coisa é certa: se tantas vezes não nos entendemos a nós próprios, se temos reacções que nos surpreendem, se tantas vezes não entendemos as voltas que a mente dos que nos são próximos dão, se o cérebro é ainda um território por descobrir, imagine-se a dificuldade em perceber os que preferem não comunicar. 

Claro que o autismo já não é hoje o mistério que era há uns anos. Mas, ainda assim, não deixa de ser difícil lidar de perto com quem não segue o padrão de comportamento dito normal, sendo, tantas vezes, emocionalmente inalcançável.

O vídeo abaixo, que muito vivamente recomendo, é emocionante, em especial nos momentos em casal. Há ali uma comovente fragilidade mas, ao mesmo tempo, uma extraordinária força. 

Que sabemos nós do que é ser ou não ser 'normal'? 

How Autism Feels, From the Inside


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Pinturas de Leonora Carrington ao som de Brightside pelos The Lumineers

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Desejo-vos uma sexta-feira à maneira. 
Tudo de bom. Dia de borga.
Peace and love.

1 comentário:

Estevão disse...

Recentemente apareceram na televisão uns senhores e uma senhora a falar de autismo. Fiquei estarrecido ao saber que nos anos 60/70 a psicanálise associava a causa do autismo às mães com postura fria e distante ..