Acho que devo estar de ressaca. Nada de mais mas, ainda assim, de ressaca.
E, calma, não é do punch.
O meu filho, quando lhe disse que o cocktail que o pai me tinha arranjado estava uma delícia, avisou-me para o teor de álcool do rum não é brincadeira; mas o meu marido disse que de rum tinham sido apenas dois dedos. Informei que não me tinha dado qualquer abalo. Já não me lembro se foi o meu filho ou a minha filha que, no gozo, me disse que estou uma verdadeira esponja. Mas ainda não.
Mas, portanto, a ressaca não é do punch Ou é coisa da PDI ou tem a ver com o culminar de obras, trabalhos, limpezas, arrumações, aventuras diversas incluindo passagens pelo hospital, exames médicos e consultas, reuniões, reorganizações e, sobretudo, sobretudo, sobretudo, falta de férias. O que sei é que hoje não apenas estou podre de sono como com a sensação de que não vou conseguir escrever sobre o que quer que seja.
Diria o bom senso que, não havendo nada a dizer, me mantivesse calada. Mas não. Bom senso não é comigo, pelo menos nestas paragens. Portanto, a espaços, dormitando in between, vou tentar.
O dia foi sossegado, bom, agradável. Conversa tranquila no jardim. Depois, o tempo toldou-se a meio da tarde.
Viemos para o campo e, a contragosto do meu compagnon de route, desviámo-nos até ao centro da cidade para eu ir satisfazer o meu capricho habitual. O de sempre: cone de duas bolas. Gianduja (que sabe a chocolate e que tem avelãs ou amêndoas e passas), e, desta vez, um novo. Tenho ideia que se chamava Taermina. Mas poderá não ser bem isso. O que sei, e disso não tenho dúvida, é que é excelente. Perguntei de que é e agora já não sei tudo. Tenho ideia que tem nozes de macadâmia, licor de flor de laranjeira e outra coisa de que não me lembro. Tão boooommm. Claro que em vez de um modesto cone de duas bolas deveria era ter pedido um copo com o equivalente a dez bolas. Uma de caramelo salgado, outra de ananás, gengibre e hortelã, outra de arroz doce, outra de cheesecake de frutos vermelhos, outra de chocolate preto com laranja... e por aí vai.
Não sei quanto mais tempo viverei nem em que circunstâncias morrerei. Mas de uma coisa eu gostava: quando chegar a hora -- que, tal como nos partos, era bom que fosse pequenina --, se der tempo, se eu ainda estiver capaz para engolir e se não for um grande transtorno, muito agradeceria que alguém fizesse a delicadeza de me levar um belo geladão. E aí, livre da chatice de não comer demais para não engordar, poderia mesmo ser um copão a deitar por fora. Isso é que seria morrer regalada. Quanto ao resto, também agradeço que não se ponham a dizer que gostam muito de mim senão vou logo perceber que o momento é de despedida. Prefiro que contem piadas ou se desatem a rir porque, comigo, o riso é contagioso. Morrer a rir à gargalhada depois de uma barrigada de belo gelado, isso é que era. Direitinha para o céu, santa, risonha e consolada.
Hesito entre o enterro tradicional, debaixo de terra, ou ser transformada em cinza. Se calhar é mais rápido e melhor para toda a gente se a coisa se resolver logo ali. Lareira com ela. Assim nem haverá a dúvida sobre o que escrever na lápide. Podia ser: aqui jaz a maluca que morreu a rir depois de uma barrigada de gelado mas já sei que haveria sempre um bicho careta que acharia que isso não me representaria bem. Assim, apenas teriam que atirar as cinzas para um lugar qualquer. Claro que gostava que fosse aqui, in heaven. Mas às tantas, se um dia quisessem desfazer-se disto, não se sentiriam com sentimento de culpa: será que, ao vendermos isto, não vamos estar também a vender a maezinha? (ou a avozinha, consoante quem fossem os vendedores). É certo que haveria de aparecer uma voz pragmática; Eh pah.. mas onde é que a maezinha já lá vai... Mas há sempre os românticos, os que achariam que a alma da maezinha (ou da avozinha) ainda andaria por ali a pairar e far-lhes-ia impressão que o espírito da maezinha, quando quisesse atazanar a cabeça a alguém, já só desse de caras com desconhecidos. Portanto, o como, quando e onde não sei, que resolvam como acharem melhor.
Agora que o escrevo, penso que, na volta, no mar é capaz de ser a solução mais prática. A malta à beira de água, a comer um gelado, e, na maior descontra, a atirar as cinzas da maezinha ao mar. E a dizerem simplesmente: ...Já foste! E, no maior folguedo e despautério, tudo a desatar a rir e a fugir das ondas.
Bem. Isto vinha a propósito de quê? Ah, já sei do gelado.
[É que, a sério, uma coisa que me chateia é pensar, quando for desta para melhor, se for coisa com tempo e não de repente como deveria ser, em vez de fazerem com que vá divertida, ainda se lembrem de me porem com vontade de chorar ou com vontade de me pôr a consolá-los a eles, os que cá ficam. Não haveria pachorra. É que posso não ter força para os mandar irem carpir para outro lado e ter que ficar ali a gramar com a choradeira. Seca maior não deve haver.]
(Se bem que seca das valentes devem ter que gramar os que tiverem que dar destino à tralha que por cá vou deixar. Coitados. )
Bom. Adiante que esta desconversa não aproveita a ninguém..
A questão é que praticamente não vejo televisão nem leio notícias. Por isso, não tenho assunto que interesse aos outros.
Há bocado, ao entrar no youtube constatei aquilo que parece ser a prática corrente. Excertos de programas de televisão, os mais variados, em que os entrevistados vão fazer confissões: uns foram drogados, outros sofreram depressões, outros estiveram desempregados, outros têm baixa autoestima, outros são homossexuais mas só se assumiram dois dias antes, outros foram obesos, outros magros demais. Parece que os produtores de televisão em Portugal andam por aí a farejar desgraça ou mania da grossa ou parvoíce aguda. E a malta, desde que tenha um microfone ou uma camara apontada, confessa tudo, se calhar até empolando ou dramatizando a infelicidade ou a macacada. Provavelmente há quem ache que isto é bom, que exorcizar fantasmas ajuda e que, sobretudo, encoraja os que escondem a exorcizar também. Eu tenho muitas dúvidas. A malta que for de miolo mole vai é ficar com pena por não ter um segredo ou uma desgraça para contar. Aos poucos pode criar-se a ideia que o normal é ser psicopata, alcoólico ou drogado, ter batido na mãe, ter sido abandonado pelo pai, ter sido violado pelo senhor padre, comer raspas todos os dias a todas as refeições, tomar banho num alguidar e, não menos importante, ter sido casado com a mulher do primo da cunhada e, aos sessenta anos, descobrir que, afinal, o tal não era primo mas avô e que não casou com uma mulher mas com um homem com uma pilinha tão pequenina que durante uma vida inteira nunca deu por ela.
Volta e meia aviso a minha mãe para se livrar desses programas não vá, algum dia, converter-se ao culto da parvoíce encartada. Diz que não mas tenho para mim que, volta e meia, deve lá estar caída pois, a propósito de banalidades, vem com medos sobre coisas terríficas e, quando lhe digo que está a viajar na maionese, diz que não, que ouviu na televisão relatar caso idêntico.
Fazer o quê? É assim a vida. Ou, pelo menos, é assim que a vejo quando estou ressacada e a cair de sono. Portanto, com vossa licença, por ora vou pregar para outra freguesia.
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Pinturas de Cruzeiro Seixas ao som de In hell I'll be in good company numa interpretação de Nice Price Acoustic Band
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E, mal por mal, vai um pezinho de dança, pessoal?
1 comentário:
… e foi então que alguém disse, é pá, empurra com o dedo !!
Se coubesse o dedo ia mais cone de duas bolas, imaginava ela.
Uma doce semana !!
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