sábado, agosto 21, 2021

Comer o bolo ou ficar com ele

 


Nunca sei se devemos desfazer-nos do que, na altura, nos parece dispensável ou se deveremos guardá-lo para ocasião posterior. Muitas vezes, na dúvida, guardo. E sou censurada por guardar tralha inútil. Anos depois, alguém (frequentemente alguém que antes me censurou) se lembra disso ou as circunstâncias o fazem relembrar e, graças à minha persistência, as coisas voltam à cena.

Mas não sei se faço bem pois, se já tivesse ido fora, tirávamos daí o sentido e não vinha daí morte ao mundo. 

Por isso, não sei. A Marie Kondo tem aquele critério de guardar apenas o que nos faz feliz mas acho isso redutor: o que não me faz feliz num dia pode fazer no outro. No outro dia, a minha menininha, ao ficar toda molhada, pediu-me roupa para se trocar. Fui à gaveta de blusas que já mal me cabem e foi só escolher uma. 

Quando nos mudámos pensei: se calhar não faz sentido guardar roupa que não voltará a servir-me. Mas, à última hora, pensei: e se alguém aqui em casa precisa de uma blusinha ou coisa do género, como resolvemos a situação? E é o que tem estado a acontecer.

Mas, ao mesmo tempo, de vez em quando, por revoadas, apetece-me viver entre coisas novas, espaços mudados. Acho que é coisa congénita: preciso com frequência de alguma mudança na minha vida. Ainda hoje de manhã, estando eu a propor uma alteração em casa da minha mãe, ela disse: 'detesto obras, não consigo, se puder evitá-las, evito'. Bem sei: sempre assim foi. Sempre achei que a minha mãe, apesar de poder ser tomada pelo contrário, no fundo, no fundo, o que é é muito conservadora. Eu sou o oposto. Fico furiosa quando penso que uma intervenção é para estar acabada até fim de Junho (isto no máximo dos máximos) e se prolonga por Agosto adentro, quiçá mesmo início de Setembro. Mas, tirando esse pormaior que acaba sempre por me enfurecer, parece que só estou bem a pensar no que hei-de fazer para melhorar os espaços, o que, muitas vezes, requer obras.

Acho que já contei: quando era miúda, a minha mãe temia ficar de férias só comigo. As nossas férias quase coincidiam mas o meu pai tinha menos dias que nós. Por isso, parte delas estávamos só nós duas  ou me entretinha por ali, em casa ou com amigas. Mas, fosse como fosse, a primeira tentativa era fazer mudanças em casa, o que, para minha frustração, a minha mãe abominava. Queria era descansar depois de um ano lectivo a aturar alunos, queria que eu a deixasse dormir a sesta em vez de andar a moer-lhe a paciência.

E parece que isso ainda hoje me acontece: olhar à volta e só ver coisas que bem poderiam ser melhoradas. Estofar cadeiras, pintar móveis, mudar os bibelots de sítio -- por exemplo.

Quando às vezes, ao falar com a minha mãe, relato algumas dificuldades ou algumas decisões difíceis de tomar, ela diz: o que faz isso é ter muito, quem tem pouco não sente essas dificuldades.

E concordo. A abastança nem sempre é sinónimo de felicidade. Não sei se há um ponto de equilíbrio, um break-even point. Aquele ponto de equilíbrio perfeito em que a gente percebe como mais favoravelmente resolver o dilema: come-se o bolo ou fica-se com ele? Não é fácil. Quantas vezes queremos desfazer-nos de uma coisa ou de uma pessoa e, ao mesmo tempo, não perder a função que essa coisa ou função representa. Qual o ponto em que se percebe: já era? Ou como perceber se é coisa que valha a pena ainda o esforço de uma reparação ou se o desgaste já é tanto que mais vale partir para outra....?

No outro dia, ao trazer os bibelots do estúdio para a casa principal in heaven, peguei numa taça verde de que gosto muito, com tartaruguinhas à volta. Quase parece um laguinho com tartaruguinhas à volta, em terra firme. Em tempos partiu-se. Fiquei desgostosa. Apanhei cada pequeno bocado e consegui concertá-la. Agora o meu marido, ao vê-la, perguntei: não será altura de deitares isso fora?

- Obviamente que não. Fica bonita na sua imperfeição.

Mas, sobre isto, não sei que dizer. Os anos passam e não me trazem sabedoria. Não consigo estabelecer regras que algum tempo depois ainda sejam inequívocas ou defender teses que, com o passar do tempo, continuem a parecer-me intemporais. As certezas vão ganhando matizes com o tempo e sei agora que apenas os estúpidos acham que sabem tudo. Conheço alguns. 

Na realidade, comovo-me mais, sou mais tolerante, reconheço cada vez mais o valor das pequenas coisas mas, ao mesmo tempo, sou mais impaciente com o que não me agrada, com o que diminui a minha qualidade de vida. Tenho aquela sensação que o que falta da minha linha do tempo não deve ser gasta com o que não vale pena. Mas como saber o que não vale definitivamente a pena? Como saber se a imperfeição com que unimos os pedaços já não torna aquilo uma aberração a que mais vale pôr fim?

Diria que o nosso coração sabe a resposta mais depressa que a mente. Sabemos com as emoções primeiro do que com o raciocínio se há espaço na nossa vida para o que, de momento, nos parece estorvo ou inutilidade ou, se pelo contrário, precisamos é de reconquistar espaço para que coisas ou pessoas novas ocupem o espaço entretanto deixado livre.

[PS: Claro que o que acima escrevi não se refere a livros. Livros são livros são livros]


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Make Mistakes - Abandon your 'Perfect Life'


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Pinturas de Wolfgang Lettl ao som de Vanessa Paradis em Walk On The Wild Side

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Desejo-vos um belo sábado

1 comentário:

Pôr do Sol disse...

Guarda o que agora não presta lá virá tempo que te sirva. Dizia minha avó e tinha sempre razão.

Tenho-o verificado ao longo dos anos. Contudo os tempos/modas mudaram tanto e o espaço é tão caro, que torna isso impraticável.

Guardei, por recordação ou só porque sim, algumas roupas da minha filha e o que sinto agora ao ver a minha neta adolescente usá-las, é comovente.

Por graça juntei na mesma moldura, fotos da filha e neta vestidas com a mesma roupa o que por vezes confunde quem vê.

Continuação de boas mudanças. Renovar é sempre refrescante, pena é que, o que não depende de nós, demore mais do que gostariamos.

Um beijinho e bom domingo.