sábado, setembro 26, 2020

Ao fim do dia, um Natal avant la lettre
--- e um receio, uma little sombra, a pairar

 


Como sempre que podemos, ao fim da tarde vamos fazer uma caminhada. Porque sou encalorada, fui de manguinha curta. Jeans, ténis de verão, blusinha ligeira. Todos os dias seguimos um percurso diferente. Vamos conhecendo as redondezas. Começou a escurecer e a fazer frio. Vento e frio. Não senti frio, ou seja, não resfriei, mas sentia o ar frio na minha pele, sensação agradável. O vento nas copas das árvores, o ar fresco na minha pele, a penumbra a descer devagar sobre o dia. Gosto mesmo. As luzes das casas começaram a acender-se. De vez em quando, um cão vem lá do fundo e chega-se aos muros para ladrar. Tenho ideia de que, ao princípio isso acontecia muito mais do que agora mas acredito que seja impressão minha pois, se não passamos pelas mesmas casas, os cães não podem reconhecer-nos. Digo eu.

Vamos conversando, por vezes eu falando ao telefone, vendo as casas, olhando para tudo. Hoje passámos junto a uma casa que não parecia de verdade. Tenho que tentar voltar a passar por lá. Não faço ideia onde terá sido. Vamos andando ao acaso, afastamo-nos, por vezes já nem sabemos onde estamos nem qual o melhor caminho para voltarmos para casa. Esta casa tinha umas árvores que tenho ideia que eram pequenas. Talvez arbustos ou talvez árvores cortadas como bonsais. E tinham luzinhas ínfimas pelo meio. Quase parecia iluminação de natal. Mas luzes mais pequenas. Pontinhos de luz dourada. Tinha escurecido, o ar cada vez mais frio, e ali, do nada, aquela casa de brincar com o jardim iluminado daquela forma irreal, como se saída do sonho de uma criança. 

Tive um dia muito intenso, com reuniões prolongadas e duras, e, de repente, saio para caminhar ao fim do dia e tudo se dissipa, sou apenas alguém que caminha por caminhos desconhecidos, observando casas desconhecidas, que se prepara para entrar numa casa até há pouco desconhecida. 


No outro dia, esteve cá, de novo, a antiga proprietária. Veio buscar o correio. Simpatizo muito com ela. Em muitas coisas identifico-me com ela. Começamos a conversar e a conversa flui como se nos conhecêssemos há muito tempo. Eu tinha saído de uma reunião. Como era dia de semana e sabe que estou a trabalhar, tem receio de me tomar tempo demais. Mas estava a entrar na hora de almoço, não tinha problema. Contou-me muitas coisas e eu ouço com curiosidade. É sempre muito intrigante isto: pessoas que mal me conhecem, confiam imediatamente em mim e contam-me muitas coisas da sua vida, coisas muito pessoais, íntimas até. E eu ouço com gosto, quero que contem mais. Talvez por isso, por sentirem que me interesso mesmo, as pessoas me contam tantas coisas. Ela também é encalorada. Diz que, tal como eu, atravessa quase todo o ano com roupa de verão. Perguntou-me se me sentia bem, se já me sentia em casa, e eu disse-lhe que sim, desde o início. Ela confessou que, na sua nova casa, ainda não se sente bem 'em casa' e que pensa muitas vezes nesta. Percebo-a. Esta casa tem história, tem vivências, sente-se que é uma casa com muitas memórias dentro, foi feita por eles. Contei-lhe que as minhas coisas eram absolutamente compatíveis, que tudo encontrou o seu sítio, que rapidamente tudo se acomodou, que o espaço rapidamente se familiarizou com as minhas coisas. Ela conta-me que, com ela, não. Tenho pena, deve ser uma sensação desagradável. Esta é uma casa com recantos e em cada recanto ela tinha as suas coisas. Diz que agora há coisas que não consegue pôr na casa nova, faltam-lhe paredes, falta-lhe o chão certo para os seus tapetes -- e se ela os tinha lindos. 

O jardim também. Árvores, arbustos, flores escolhidas por eles. Vejo que olha em volta, certamente recordando quando cuidava deles. É estranho: se eu a compreendo tão bem, como sou eu tão desprendida em relação à casa em que morei até há tão pouco tempo? É estranho. Mas sou assim. Estou sempre disponível para ir em frente, para o que aí vem, e desprendida em relação ao que foi. 

Ontem dizia ao meu marido que é engraçado como me identifiquei tão de imediato com esta casa. Se andar às escuras dentro de casa, é nas calmas, dou com tudo, é como se o meu corpo conhecesse desde sempre os seus quatro cantos. 

Tenho lido muito, aqui. Os dias correm rapidamente entre afazeres profissionais mas, mal me despacho, agarro num livro. Sinto-me tão feliz. É daquelas felicidades maiores: agarrar num livro e tocar a transcendência. São palavras, bem sei, nada mais do que palavras. Mas a forma como um fio as percorre, desenhando tramas, pontos, enlaces é tudo. Esse fio transforma-se em seiva ou sangue e as palavras tornam-se árvores ou carne e nelas o vento e o tempo esculpem formas, chagas, flores, lágrimas. Página após página recupero o prazer de me entregar à leitura. De vez em quando, volta a vontade de me sentar a fazer tapete de arraiolos. Mas já não teria onde pô-los e é tão absorvente como escrever num blog. Por isso, aqui estou, tecendo conversas de nada. No fim, não tenho uma carpete para estender no chão, tenho palavras que por aí andam esvoaçando, numa rede invisível que une oceanos e continentes.


Ah, é verdade, quando regressámos da nossa caminhada, uma lua crescente iluminava o céu e um pássaro piava bem alto, o seu lamento atravessando a noite que, entretanto, já se tinha mesmo instalado. Ia a pensar que, um dia destes, inauguramos a lareira e que vai ser bom estarmos em volta da mesa, a madeira a crepitar, o calor bom a aquecer os nossos corações, eu a carregar tabuleiros de comida, toda a gente a protestar que é demais mas todos a atirarem-se a eles com um apetite de dar gosto. Mas logo me lembrei que, com isto, os números que não param de aumentar, se calhar não vai poder ser este inverno -- e isso arrefeceu-me a boa disposição. Bolas, que tristeza, isto. Mas não disse nada porque, quando se fala, parece que as coisas ganham forma. Por isso, guardei para mim na esperança que, um dia destes, já não haja problema, nem distanciamento, nem máscaras: só abraços, beijos, risos, conversas boas, cantorias, alegrias. Tomara, tomara, tomara. Façamos figas, caraças, façamos figas a toda a hora. Façamos figas para fazer sentido que eu ilumine a minha casa, acenda a lareira, ponha cânticos de Natal, ponha a melhor toalha sobre a mesa toda aberta e mais outra mesa, também aberta, e faça tabuleiros e tabuleiros de comida. 

[Senão, quando chegar o já tão próximo 25, haja chuva, vento, trovoada, granizo ou neve, ponho a mesa na rua e tento convencer a toda a gente a vestir casacões, botifarras, gorros e o que for preciso para festejarmos a alegria de estarmos juntos.]

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E sai um moon river para levar a apreensão para bem longe...?

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E, esperando que gostem das minhas flores, tentativamente tingidas com as cores do luar, 
desejo um belo sábado a todos os que aí estão desse lado

1 comentário:

MARIPA disse...


Gostodas suas flores, do verde do seu jardim, das suas fotos, das suas palavras. Leio-a como se estivesse a ouvi-la. Sabe-me bem entrar de mansinho quando está a ler ou a tratar das suas plantas... um pouquinho de mim está consigo.

Quanto ao Natal, vou fazer figas, figas e mais figas. Pode ser que resulte. Ainda bem que tem os seus por perto! Desejo~lhe tudo de bom e que possa ter muitas luzinhas acesas.

A esperança tem que ser a última a morrer!

Abraço amigo