quarta-feira, junho 19, 2019

Gestos, essa arquitectura do nada





As minhas sobrancelhas não têm história. São como são de nascença, sem depilação, sem desenhos por cima, sem reformatação, sem coloração. 

Quando vejo que se usam sobrancelhas bem definidas, até a atirar para o farto, bem penteadas e marcantes, sobrancelhas que são, em si, um statement, e olho para as minhas, tão o oposto, tão discretas, tão claras e despercebidas, penso que um dia hei-de experimentar escurecê-las um pouco, engrossá-las -- tudo na base do efémero, claro, com um lápis castanho para poder sair com a lavagem -- só para ver se a minha personalidade muda. E depois olharia de frente e inclinaria levemente a cabeça a ver se impunha respeito. Li que sim, que produz bom efeito.

Deveria fazê-lo primeiro em casa, ao espelho, ensaiar a pose, testar se resulta.

Só que sou fútil por natureza. Se reconfigurasse as sobrancelhas e me olhasse com sobranceria ao espelho estou em crer que, em vez de me sentir intimidada pelo respeito que o olhar e a atitude imporiam, haveria de me pôr a prestar atenção a pormenores que não vinham nada ao caso: que talvez o tom de castanho devesse ter sido mais arruivado em vez de tão soturno, que talvez as devesse ter alongado mais em vez de manter a curvatura original, que devia era ter disfarçado a cicatriz, que devia era ter apanhado o cabelo, quiçá posto um chapéu, talvez aquele chapéu basco com a fita encarnada. 

Portanto, porque intimamente ainda não acreditei que seja interessante impressionar alguém com base em situações não naturais e espontâneas, ainda não mexi nas minhas sobrancelhas. Também receio que, sem querer, ao mudar algo em mim, sem querer desvende um ser misterioso que me habita e que só estava à espera de uma oportunidade para se revelar.

Mas, agora que escrevo isto, penso que mal também não fazia e que talvez fosse mesmo interessante perceber se me sentiria diferente se me olhasse ao espelho e me visse com umas sobrancelhas à Frida. Como se sente uma mulher que tem umas sobrancelhas espessas e insolentes como asas de bicho peludo, descarado, mal intencionado?

Vou ali fazer isso e já venho. Um momento, por favor. Só espero é que não aconteça nenhum bruxedo.

Tenho medo. Tenham medo.

Já fui e já estou de volta, quase horrorizada. Para começar, não encontrei nenhum lápis castanho ou, sequer, preto. Encontrei um verde e um azul escuro. Optei pelo azul que é marinho. Pintei-as e juntei-as. À medida que as ia pintando, quase horrorizada ia vendo que parecia estar a deixar de ser eu. 

Quando as acabei e ficaram azuis espessas e escuras, juntas ao meio, eu era outra. Impossível ser eu, manter a mesma maneira de ser, com tais sobrancelhas. Fiquei com um ar mais do que rural, um ar primitivo. A mulher primitiva que, com ar sério, me olhava não era eu, era alguém saído de outro tempo, com uma outra maneira de ser, perigosa, castigadora. Ainda pensei fotografar mas não consegui. Peguei numa toalhita e limpei tudo. Aquela podia ter sido eu há muitos anos, a viver numa gruta, talvez na minha misteriosa gruta, alimentando-me de bagas e frutas e dormindo no meio de lobos. Aliás, talvez seja isso. Talvez fosse isso que vi quando me vi ao espelho, uma mulher lobo, com umas sobrancelhas azuis prestes a voar.

E tudo isto é uma conversa que parece não ter sentido, eu sei -- mas, por acaso, até acho que tem. O nosso corpo condiciona a nossa maneira de estar. Talvez não seja por acaso que, em algumas línguas, ser e estar se dizem da mesma maneira. E, portanto, quero eu dizer, o nosso corpo condiciona a nossa maneira de estar e, logo, de ser. E poderia dar alguns exemplos. Só não os dou porque, sem querer, iria descrever-me fisicamente e, francamente, tenho mais que fazer -- e vocês certamente também.


E apeteceu-me escrever isto depois de ouvir a crónica de Fernando Alves, 'O segredo está nas sobrancelhas' que me foi enviado e que muito agradeço. Tanta a gentileza.

[Um dia ainda gostava de ouvir um texto meu lido pelo Fernando Alves. Será que iria ficar presa à voz dele, esperando o desenlace, o arrepio final, o poema a varrer-me a pele? Como se as palavras estivessem a nascer dele?]

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E, claro, fui conhecer o poema por ele referido 


Amo-te por sobrancelhas, por cabelo, debato-te em corredores
branquísimos onde se jogam as fontes da luz,
Discuto-te a cada nome, arranco-te com delicadeza de cicatriz,
vou pondo no teu cabelo cinzas de relâmpago
e fitas que dormiam na chuva.
Não quero que tenhas uma forma, que sejas
precisamente o que vem por trás de tua mão,
porque a água, considera a água, e os leões
quando se dissolvem no açúcar da fábula,
e os gestos, essa arquitectura do nada,
acendendo as lâmpadas a meio do encontro.

Tudo amanhã é a ardósia onde te invento e desenho.
pronto a apagar-te, assim não és, nem tampouco
com esse cabelo liso, esse sorriso.

Procuro a tua súmula, o bordo da taça onde o vinho
é também a lua e o espelho,
procuro essa linha que faz tremer um homem
numa galería de museu.

Além disso quero-te, e faz tempo e frio.

[Júlio Cortázar]


E dias felizes para quem aí está desse lado. 

[E saibam que estou a olhar para vocês com a minha cabeça levemente inclinada na vossa direcção]

10 comentários:

Maria disse...

Gosto de Júlio Cortazar
Um bom dia para si, ujm
:)

Anónimo disse...

Com muita pena, porque tem uma bela voz, não consigo ouvir o Fernando Alves. Parece que estou a ouvir o Passos Coelho. Terror.
Abraço
JV

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

As sobrancelhas são mesmo um elemento central das feições de uma pessoa. Imagino o seu experimento para se ter sentido uma mulher das cavernas.

Um belo dia.

Anónimo disse...

Parece-me que se trata de um problema de mulheres... e fofinhos! 😂🙂😁

Anónimo disse...

Boa tarde UJM!
Imagine a minha surpresa que foi crescendo à medida que ia avançando na leitura, especialmente quando se referiu de novo à Frida Kahlo, e terminou com o agradecimento pelo link que lhe enviei. Apesar ter idade suficiente para poucas coisas me surpreenderem fiquei em euforia pela distinção que me conferiu! Eu é que lhe agradeço.
Entre 2005 e 2007 usei o google reader como agregador de notícias até que, subitamente, foi "descontinuado" como agora se diz e fiquei órfão até surgir o Feedly (https://www.publico.pt/2014/01/07/tecnologia/critica/feedly-para-grandes-consumidores-de-informacao-1618642) que continuo a usar com a mesma finalidade: ler os jornais e blogues que me interessam e é aí que consigo aceder, entre outros, ao Fernando Alves.
Cumprimentos.

Um Jeito Manso disse...

Olá Maria,

Bom gosto, portanto.

Um bom dia feriado para si.

Um Jeito Manso disse...

JV, olá!

Credo! Alguma vez....? A voz do Fernando Alves a lembrar a o Láparo...? Não, não, não! De onde lhe vem essa ideia, credo?

Tem que ouvir com atenção, sem ideias sinistras na cabeça, apenas ouvir. Tem uma voz linda, ele. Tenho que convertê-la...

Abraço, JV!

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Fiquei outra, acredite. Medonha. E como devo ter ficado petrificada, ao ver-me ao espelho, vi-me com ar sisudo, sobrolho carregado, capaz de sacar da faca ou de emborcar um copo de três. Acho que para disfarçar a minha identidade não precisaria de muito mais.

Um bom dia feriado, Francisco.

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo/a

Não sei não. Então as mulheres não podem ser fofinhas...?

E não sabe daqueles homens muito machões que depilam e arranjam as sobrancelhas...?

Pois muito bem: acho que vai ter que rever esses seus conceitos. Isto anda tudo mudado, sabe lá...

:)

Um belo feriado para si!

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo dos Feeds Simpáticos,

Um dia que me dê para me organizar e fazer as minhas escolhas de forma metódica, também verei como se faz isso. Na volta, é de caras.

Mas muito obrigada: fica registado.

E ainda bem que gostou de eu me ter mostrado agradada pelo seu presente e inspirada pelo respectivo conteúdo. Espero que, pelo menos, tanto quanto gostei de receber a crónica do Fernando Alves.

Um belo dia feriado para si.