terça-feira, junho 18, 2019

Com incansável inteligência e alguma ocasional petulância






Ao longo do dia, andei de umas para outras sem que nada, durante todas aquelas vastas horas, me tivesse agradado especialmente. Muita reunião, muito roadmap, muito business plan e business case, muita mitigação, muita coisa nessa base e sumo que é bom e eu gosto, pouco e, o que há, fraquinho, fraquinho. Pior: no intervalo, nada. Um compacto de cenas desinspiradas.

Vão rareando as pessoas que me fazem rir ou com quem se consiga ter uma conversa variada sobre temas pouco sérios. Quanto mais pessoas conheço mais me convenço que as pessoas muito sisudas e que só sabem falar de trabalho, por muito que aparentem ser eficientes e ultra zelosas, são, na realidade, umas perfeitas nulidades, fazendo muito bem coisas que geralmente não servem para nada. Acresce que são chatas, muito chatas.

Tenho saudades dos longínquos tempos de grande irreverência, de muito mau comportamento. Tenho saudades de quando me diziam que o meu colega e grande amigo tinha saído do gabinete a apertar a portinhola, isto depois da secretária ter de lá saído segundos antes toda afogueada e sorridente. Tenho saudades dos relatos mirabolantes de um colega que contava histórias inverosímeis e que, quando eu o confrontava: 'Não acredito em nada disso, deve ser tudo mentira' me respondia com ar divertido e gaiato: 'Tudo não, que exagero. Tem um fundo de verdade'. Tenho saudades de quando a minha secretária me contava que tinha pressionado outro meu colega e amigo, dizendo-lhe: 'Se está à espera de ser velho para deixar a sua mulher e vir viver comigo, tire daí o sentido, ou é agora, enquanto somos novos, ou esqueça'.  Tenho saudades daqueles dias divertidos em que a arquitecta que ia comigo ver as obras, saia étnica até aos pés, me dizia: 'Viste como os gajos não tiravam os olhos das minhas pernas? É que a saia é transparente e eu ponho-me em contraluz para os gajos ficarem vesgos'. Tenho saudades daquele presidente, amicíssimo, um mestre, que contava que a vizinha da moradia contígua, no Estoril, era italiana, fogosa e andava nua no jardim... e que ele inventava desculpas para não ficar na casa da cidade, onde vivia com uma namorada vinte e cinco anos mais nova, para ir pernoitar ao Estoril e, mal lá chegado, saltar a cerca e pernoitar com a italiana, sexagenária como ele. Tenho saudades daquele outro colega que, quando chegava à ponta do corredor, dava um salto batendo os pés de lado como se a seguir fosse dançar como o Fred Astaire.
Um paradigma do homem sadio, criado para confiar totalmente nos seus próprios impulsos, graças a uma intensa e jubilosa vitalidade imune ao medo, à má consciência, à malícia e aos expedientes e muletas morais da lei e da ordem que os acompanham.
Eram todos assim, eu a única mulher no meio de um bando de doidos. Mas uns doidos inteligentes, competentes, arrojados, irreverentes, bem sucedidos no seu trabalho, na sua vida. Divertíamo-nos à brava. Só um é que se levava a sério e, portanto, ninguém tinha paciência para ele. Uma vez metemo-nos todos numa bravata que, como todas as bravatas, comportava riscos. Esse tal apertadinho teve medo, acobardou-se, saltou fora. Todos os outros mantiveram-se unidos até ao final, apesar das ameaças, apesar de sabermos que haveríamos de pagar pela nossa insolência (e coragem e coerência). E pagámos, de peito feito, alegres da vida.

O ambiente profissional que conheço, aqui e ali, hoje não tem disso. É tudo muito calculado, muito bem comportado,  muito politicamente correcto, ninguém ousa uma piada mais brejeira, ninguém ousa pisar o risco. Hoje ninguém tem tempo para maluqueiras, anda toda a gente muito ocupada a cumprir objectivos, a atingir os kpi's e a mostrar-se muito eficiente junto do chefe.

Até certa altura, não estava ainda tudo automatizado, não havia mails desde que despertamos até que nos deitamos, não havia telemóveis a levarem o trabalho até nós: e, no entanto, não havia qualquer necessidade de trabalhar até às quinhentas, e, durante o dia, nem sei como, havia tempo para falar de livros, para falar de cinema, para anedotas, para fofocas divertidas, para risotas boas.

Quando penso nisto parece ficção. Ou coisa que aconteceu num outro mundo, numa outra época.

E não sei como é que isto se perdeu. 

Aliás, sei. Houve uma época tenebrosa, dos yuppies, gente muito pseudo-eficiente, gente muito ao sabor de modas, gente que não sabia nada de nada a não ser papaguear jargões em consultês, gente que muito menos sabia da vida, e que apareceu a querer normalizar a diversidade.
Lembro-me de um que apareceu nem sei de onde. Tinha trinta e picos e portava-se como se fosse um grande magnata. Fumava charuto e um dos meus amigos, à socapa, gozava com ele, dizia que parecia aquele bebé, o Baby Herman, semblante autoritário, charuto na boca e... de fraldas. Vi-o depois naquilo dos empresários qualquer coisa de Portugal, que iam refundar Portugal, acho que se chamava Compromisso Portugal. O João Miguel Tavares é que, nessa altura, mesmo andando ainda de fraldas, devia ter aproveitado as causas. Aqueles lá tinham causas. Muito parvalhão acreditou nos el dorados que prometiam amanhãs que cantavam, muito parvalhão lhes deu palco, muitas entrevistas. Muito se assistiu à sua pesporrência fútil e bacoca. O Baby Herman por lá andou a fazer não se sabe bem o quê. Certamente alguém o fez Comendador. Deve ter falido a empresa mas isso não interessa, a memória da malta é curta. 

Mas, enfim, é assim. Os tempos mudam e nem sempre mudam para melhor. E somos todos nós, colectivamente, que deixamos que isso aconteça. Vamos deixando, vamos contemporizando. E, quando damos por ela, o mundo mudou, alagado em mediania... e, quando queremos mudar-nos daqui para um lugar melhor, percebemos que perdemos o pé.

Mas, na volta, sempre assim foi desde o princípio dos tempos: toda a gente sempre a achar que tudo isto não passa de um devir a caminho da nulidade.
Nenhum de nós alcançará a terra prometida: morreremos todos no deserto. O intelecto, como alguém já disse, é uma espécie de doença: incurável.

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Pinturas de Kim Heungsou na companhia de Yiruma com Maybe. Em itálico, excertos de O wagneriano perfeito de Bernard Shaw (incluindo o título)

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Já agora, a propósito de Bernard Shaw, o discurso em louvor de Einstein 
-- e que bom quando as pessoas gostam de rir, de se rir


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E, que nem de propósito, abaixo uma evocação de um mundo transacto, um mundo que já nada tem a ver com este nosso mundo -- um mundo de reis, rainhas, príncipes e princesas, duques e duquesas, caleches e penachos a enfeitar as belezas. Bem podem as ruas protestar e os noticiários falar de brexits, de autodeterminações, de crises políticas, ambientais, sociais que, numa outra dimensão, num tempo que parece pretérito, os soldadinhos vestidinhos com os seus fatinhos bonitinhos continuam a bater o pezinho e a subir as escadas quase aos saltinhos e as realezas continuam a desfilar cheias de capas e capelines. Uma real gracinha.


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E, no meio disto, tudo de bom para vocês: peace and love.

9 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Viva a gente gira!
Abaixo a normopatia.

Um rico dia.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Rica UJM,

Aqui vão os momentos em que apareço:

1:15-1:24 (na frente do andor, de calções castanhos e camisa "de pescador" em tons de guernat)
7:47-7:49
24:57-25:30 (a sair do barco e a pegar o andor pela frente)
28:30-28:36 (de relance).

Também vou por umas fotos na pastinha do costume.

Abraço.

Lucy disse...

...um dia chegaram os inspectores (os das malas -como lhes chamávamos) um era pequeno, pequeno
quando desampararam -eu, de joelhos a fazer do maneirinho ía á secretária dos meus colegas batia com um volume de papel de fotocopia com toda a força que tinha e repreendia-os. Eles assustavam-se com o bater do calhamaço, choravam de tanto rir, pediam para parar de os chatear, tudo ao mesmo tempo. Quando parecia que todos tinham esquecido aquelas almas eu relembrava-os com o maço de papel e as admoestações.Sim, depois os novinhos portavam-se melhor....

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Pois a minha filha já se zangou, que parece que faço a apologia do adultério, que parece que não penso nas famílias que às vezes ficam destruídas. Mas não é nada disso. É que escrevo como observadora, não tecendo juízos de valor. Se for ao cinema e houver cenas de sedução ou malandrice vou ficar a dar lição de moral? Eu não. Cada um que se preocupe com a sua vida amorosa. Eu observo, divirto-me.

A vida pode ser leve ou pode ser pesada se nos pesarem os nossos pesos e mais os pesos dos outros, mesmo daqueles a quem a vida não pesa.

Mas lá está: isto sou eu a achar de que. Além disso, não sou exemplo para ninguém.

E já agora, já aqui neste comentário, a procissão. Pois já lá o vi. Muito bem. Aquilo era pesado, não era? Como é que consegue? E vejo que vai ali todo contente. Deve ser mesmo engraçado ir na procissão, ainda por cima, sendo interveniente tão directo. Gostei mesmo de ver.

Uma feliz quarta-feira!

Um Jeito Manso disse...

Olá Lucy,

Vejo que também se divertiu e que ainda se ri quando se recorda. Não é bom a gente rir-se de momentos de brincadeira e partidas...? Eu gosto.

Sem juízos de valor, sem falsos moralismos, apenas recordando factos, apenas rindo com o lado risível dos factos.

Beijinho, Lucy

[E veja como segui direitinho a sua recomendação, mandando o h às malvas... :)]

Maria disse...

Posso não vir diariamente ler os seus posts mas quando por aqui passo é com tempo e para me deleitar seja lá qual for o conteúdo ou "modus operandi"
ultiamente passo quase sempre em silêncio porém hoje não resisti é que pôs-me a rir e ainda não parei há uns 30 minutos com essa do baby harman e tenho para rir até ao resto dos meu dias
Um bem haja, santa ujm

Um beijo repenicado ai nas bochechas
:)

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Aquele nem por isso, especialmente para quem nos anos anteriores levou o da imagem do Sagrado Coração em grupos mistos.

Ainda bem que gostou! É muito giro, qualquer dia tem de aparecer por lá de máquina em punho.

Um rico dia.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Um dia destes, ainda abre o Jeito Manso e vê-se aqui, fotografado por mim... Nunca se sabe...

Abraço!

Um Jeito Manso disse...

Olá Maria,

E se soubesse de quem estou a falar e visse a fotografia naquela altura ainda mais se ria. Pena tenho que naquela altura não houvesse telemóveis com máquina fotográfica incorporada pois, se tem havido, tantas as figurinhas que fazia, a fazer voz grossa e a armar ao pingarelho, alguém haveria de registar aquilo para a posteridade.

:)