Uma das crónicas do Gabo n'O Escândalo do Século' era sobre não ter nada sobre o que escrever e, claro, lê-se do princípio ao fim com o interesse que a sua escrita sempre desperta. Não tenho a sua arte, a sua graça, a sua mestria pelo que, não tendo também sobre que escrever, fico hesitante. Ninguém me obriga. Poderia, simplesmente, fechar o computador e ler o relatório sobre o qual vou ter uma reunião à primeira hora da manhã ou poderia ir ouvir alguns dos trechos de Wagner referidos por Shaw. Mas é aquilo de os dedos sentirem a impaciência da dança sobre o teclado, mesmo sem um propósito eles querem por aqui andar a saltitar de tecla em tecla.
Portanto, sem saber ao que venho, entregue ao improviso a que eles queiram dedicar-se, aqui estou. Pode a coisa soar-vos desalinhada, sem tema, voo sem rumo, que estarão certos: assim será, certamente.
Hesito em falar do Mário Nogueira que deu uma bicada ao Marcelo ou do Marcelo que parece que não gostou ou do Marques Mendes que apenas vi agora reaquecido, em excerto. Mas nada disso me interessa nem um pouco. Zero.
Bocejo tal o tédio que sinto por não ter assunto. Aliás, não é bem isso. Ter, talvez até tivesse, mas não quero. Há coisas que correm dentro de nós ou sob a terra que pisamos e que andam a tal profundidade que não são umas simples palavras que conseguem trazê-las à luz do dia. Que fiquem por lá onde delas apenas nos chega aquele subtil murmúrio que mais parece uma normal respiração.
No outro dia andei à procura de umas calças que me estavam justas demais para ver se estavam bem à minha filha. E estavam-lhe boas de perna e de anca mas largas na cintura. Levei-as para a minha mãe as apertar, umas brancas e umas azuis escuras. Estão como novas, ficar-lhe-ão bem. Duas blusinhas brancas que me estavam um pouco à tira também mudaram de mãos. Se pudesse andar sempre de branco, ela andava. Mas com isto de andar a revolver roupa para ver coisas que estão melhor a ela que a mim, hoje, quando aqui cheguei e entrei no quarto que era dela e que virou meu special closet, já nem me lembrava da desarrumação em que tinha deixado aquilo.
Portanto, hoje, para além do assado no forno (a que juntei ameixas que trouxe lá da minha big ameixeira pela qual a parreira trepa alegremente) e da máquina de roupa e de uma roupa de lavar à mão e das arrumações habituais tive mais esta, andar a arrumar as roupas que ficaram de fora naquela experimentação, no outro dia antes de irmos para a festa de anos.
De cada vez que acontece uma destas, convenço-me que preciso mesmo de fazer uma reforma de fundo, desfazer-me de alguma roupa pela qual tenho alguma estima mas que, porque a moda mudou muito ou porque eu mudei muito ou porque as circunstâncias mudaram, será pouco provável que as volte a vestir. Mas eu, quando faço arrumações, preciso que sejam de fundo, tudo cá para fora, tudo reorganizado, tudo repensado do zero. E onde é que agora tenho tempo para isso? Nem pensar.
No outro dia, num desfile, quando foram os grandes desfiles em Paris, vi um casaquinho que me pareceu mesmo a minha cara. Como a minha mãe andava a dizer que andava sem o que fazer, mostrei-lhe o casaquinho e disse que me candidatava. A candidatura foi aceite. Pensei que, para ela, seria piece of cake e, ao princípio até parecia ser. Afinal foi uma dificuldade terrível. Matemática pura. Soubesse ela de trigonometria talvez se sentisse melhor guiada mas, assim, foi na base da tentativa e erro, tentativa e erro, tentativa e quase desepero. Na fase inicial, quando ela pensava que a dificuldade residia apenas na combinação de cores, eu alertei que a curva do decote devia ser um desafio. Afinal foi tudo um desafio, em especial as mangas. Todo em crochet, todo em rosetas às cores. Ia dando em doida para conseguir que tudo batesse certo mantendo um tamanho uniforme nas rosetas. Trouxe-o ontem e está espectacular. Ela diz que foi o trabalho mais difícil que alguma vez fez. E se já fez trabalhos complicadíssimos. Por alguma razão o casaquinho desfilou como haute couture numa das casas de moda mais prestigiadas. Claro que não é exactamente igual, seria impossível, mas é inspirado e ficou uma maravilha. Uma obra de arte. Estou orgulhosíssima deste trabalho da minha mãe.
E outra coisa que não vem nada, nadinha, a propósito mas, pronto, à falta de melhor assunto, refiro agora. Li no The Guardian que parece que as cenas de sexo estão a desaparecer de Hollywood e, admirada, estive a saber porquê. Aquilo do #MeToo, sobretudo. Fico com pena. Não que um filme para ser bom, mesmo se de amor, tenha que ter sexo explícito. Mas o sexo faz parte da vida e quando devidamente contextualizado e bem filmado, é sempre uma coisa que dá graça a um filme. Parece que estamos a caminhar para o politicamente correcto, asséptico, limpinho, sem sal nem pimenta, sem açúcar, sem beijo de língua, sem piropo, sem malandrice, sem subentendido. E, se isso vier mesmo a acontecer de vez, o mundo perderá a graça, será como o desaparecimento dos insectos que deixará o mundo sem polinização, como livros cegos, sem palavras, mãos que não sabem que devem procurar outras mãos, olhos que não sabem procurar outros olhos, um vazio absoluto. Podia agora colocar aqui algumas das cenas calientes que o artigo refere mas o tema merece uma cama vazia, não um post já cheio de confusão. Talvez outro dia.
E se calhar agora é que não tenho mesmo mais nada para dizer, a não ser pedir desculpa por estar para aqui nisto, apenas a tomar o vosso tempo.
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Espero que tenham gostado de ver a Maria João Pires a tocar quase de olhos fechados numa gravação recentíssima e, embora num nivelzinho cá bem mais abaixo, que tenham também gostado das minhas fotografias feitas este domingo in heaven. Numa delas, pode ler-se parte de um poema de David Mourão-Ferreira que se foi num outro, longínquo, 16 de Junho.
A vestir-te
o corpo nu
ou a sede
que é minha
ou a seda
que és tu.
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E uma boa semana a todos, a começar já por esta segunda-feira.
5 comentários:
Eu não digo que certas meninas do #metoo podiam era desfilar junto das beatonas que acham que tudo é pecado. Esta gente é um atentado à expressão do amor, pois nunca foram amadas e construíram a ideia de amor como algo que constitui uma machadada nos seus "selves" grandiosos iludidos pela tanga narcísica de que o auge da existência é a autossuficiência afetiva.
Aqui vai um filme da procissão, para poder dar umas vistas (eu sou um dos que leva o andor da imagem de São Pedro Gonçalves Telmo, que tem um barco na mão) https://m.youtube.com/watch?v=zFjxwaQR3RU
Um bom serão.
É a maldita moral anglo-saxónica, aos poucos, a vingar (sobretudo com um forte pendor norte-americano). Inacreditável! Oxalá que o mal não se espalhe por cá. Tenho dúvidas, mas quem sabe! Os EUA Têm uma rede de prostituição inconcebível, vendem armas a menores, exportam para os Sauditas criminosos, etc. Mas, depois têm destas moralidades fingidas. Enfim, este Mundo está a ficar hipócrita a um nível que nunac se imaginou!
Olá Francisco,
Pois é, essas meninas fundamentalistas são mesmo isso, umas beatonas do pior que há.
E tão bonita a procissão. Deve ser emocionante. Um dia ainda vou numa para perceber o que é sentir por dentro, estando lá (e não, no passeio a fotografar, que é a minha especialidade).
Mas, oh Francisco, diga-me lá a que minuto é que aparece. Não consegui ver nenhum barco na mão de nenhum santo. Se calhar não percebi que era barco.
E uma vez mais apanhou-me na curva... sabe que nunca tinha ouvido de tal santo? Nunca. Até fui ver à wikipedia.
E obrigada por partilhar o vídeo. O nosso país tem mil acontecimentos fantásticos (e tocantes).
Abraço, Francisco.
Olá Anónimo/a,
Tem toda a razão. O EUA é, em parte, um país bronco, inculto, moralista -- e alarve, violento, brutal.
E vamos importando isto. E vamos replicando isto. E vamos, bovinamente, aceitando isto.
Uma coisa chata, isto tudo.
Mas olhe: dias felizes para si!
Com todo o gosto em partilhar.
Vou ver onde apareço e dir-lhe-ei mais logo.
Um abraço.
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