terça-feira, junho 04, 2019

Agustina


Fotografia in Folha de S. Paulo



Não posso dizer que hoje tenha tido um desgosto quando soube da notícia. Não tive.

Não que seja fria de coração porque, por vezes, ajoelho de desgosto. Como, por exemplo, o que senti, grande, quando vinha no carro e ouvi que o Bernardo Sassetti tinha caído de uma ravina, tinha morrido. Nem queria acreditar. Gostava tanto de o ouvir e gostava tanto das suas composições que a morte surgiu como um alçapão tenebroso que ia impedi-lo de continuar a compor e a tocar para nós.

Mas de Agustina, hoje, não. Nela eu gostava do que ela escrevia e, mesmo assim, não de tudo. Gostava também de a ouvir falar mas isso era quando ela falava e há alguns anos que não falava. Diz a filha que já antes do AVC ela parecia querer ausentar-se. Isso pareceu-me natural. Depois de uma vida a esgotar-se em palavras pareceu-me legítimo e compreensível que buscasse o silêncio das palavras não ditas. E de escrever também se desligou. Tinha-se despedido com a Ronda da Noite. Anos de palavras a correrem nas veias também cansa. 

Excerto de foto da Impala
Depois do AVC, deixar as palavras a sossegarem numa caverna profunda e inacessível sempre me pareceu nela uma coisa normal. Os AVCs são buracos negros que sugam a matéria e, nela, a matéria era a carne das palavras.

Levantar-se, ter a sua higiene tratada, escolher a toilette do dia, ir passear no jardim, ir para a sala, ficar em silêncio, parecia-me um programa mais do que suficiente para uma soberana em repouso.

E das suas palavras escritas e ditas antes disso eu não preciso de me despedir. Tenho-as perto de mim, sempre terei. Umas estão ali na estante, outras estão num livro que tenho aqui. E há vídeos.

De palavras novas já eu não esperava, pois, há uns bons anos e, no entanto, milagrosamente, elas continuaram a aparecer-me. E sendo, afinal, a caverna -- onde, durante anos, as palavras se acomodaram como letárgicos bichos do mato -- como um rio sem princípio nem fim estou em crer que as palavras continuarão a aparecer, a espreitar o sol, ficando por aí.

E é dessas que eu tenho gostado mais.

Sempre fui mais dada a petiscos que a grandes pratadas. Apanhados de ensaios, de crónicas, de textos, de cartas. Ou biografias que não são nem um bocadinho convencionais sobre pessoas de quem ela gostou muito e onde se perde em memórias, em observações à toa, onde mistura biografia e autobiografia, onde brinca, onde faz voos rasantes sobre a personalidade dos amigos. De tudo isso eu posso petiscar sem ordem definida, banquete informal, dim sum em que posso passar de uns para outros sem quebra ou adaptação, sempre em puro deleite e desconcerto. 

Houve a Sibila, claro. Inaugural. Dolorosa, visceral, telúrica, mística. Mas depois os outros romances não me prendiam. Tenho-os, alguns: debiquei-os. Há alturas da vida para tudo. Se a escrita requer vagar, vida ou tolerância e a lemos entre preocupações por filhos pequenos e depois adolescentes ou entre horários à justa, com certeza que as nossas trajectórias não convergem. Hei-de voltar a estes livros que contam histórias para perceber qual a minha sedimentada opinião.

Agora aquela insolência, aquela ironia truculenta, aquelas observações tão próprias de uma mulher da terra, aquela sabedoria desprovida de laços, venturosa, aquela carnalidade madura que se metamorfoseia em palavras, aquele riso escarninho, aquela farpa oblíqua, aquele despudor tão característico daqueles a quem tudo se permite, aquele desbocamento elegante, pérfido, atraente, tão próprio de quem sabe da inteligência extrair a beleza --- isso eu encontro nos textos avulsos, nos pequenos livros, nas opiniões, nas recordações, nas entrevistas. 

E tudo isso é eterno e cada vez o há-de ser mais pois mais pessoas a irão descobrir e amar e venerar o seu indomável espírito que sempre se manterá moderno e presente entre nós.

Já muitas vezes aqui falei dela e mais vezes haverei de falar pois há em Agustina aquela sedutora fractura, aquele desalinhado e descontraído comportamento e aquele gosto em enterrar as mãos nas vísceras ainda quentes daqueles a quem disseca -- que me são irresistíveis.

--------------------------------


Não sou de saber de cor citações ou de guardar de memória referências que agora me poderiam ajudar a escolher um texto a preceito que fundamentasse na perfeição os meus humílimos encómios. Por isso, fui à estante e puxei o Caderno de Significados, um livro fininho que, lá dentro, teria certamente textos pequeninos, fáceis de copiar. 

E é assim que, sendo que decorre agora mais uma edição da Feira do Livro e relembrando o tempo em que eu começava a visita pelo stand da Guimarães, cá em baixo, á esquerda de quem subia, para ver os livros de Agustina, soberana das letras portuguesas, soberana do seu reino da fantasia, transcrevo:

Feira do Livro

É possível imaginar uma tarde mais doce debaixo dos céus de Lisboa, mas eu não quero imaginar. O Parque Eduardo VII onde se inaugura a Feira do Livro está todo fechado em copas de árvores onde goteja uma promessa de chuva. Há muita gente conhecida e desconhecida. Os bonecos da Contra-Informação recebem os seus amigos e outros. Paira um bom presságio que está às vezes onde menos se espera. Saramago, mais sorridente do que é costume, Lobo Antunes aparece e desaarece. Eu, com os meus pés tenros como espargos, sento-me na cadeira que há no Pavilhão e dizem-me, de vez em quando, que a guerra foi declarada entre editores e livreiros. Napoleão tinha razão, a guerra é o estado natural do homem. Venho verificar isso no Parque Eduardo VII. que é um lugar como outro qualquer para avaliar o mundo e os seus problemas. Um vento carinhoso protege-nos de tudo como se fosse a benção dos escritores que nos olham dos seus placards mais ou menos esvaídos em tinta simpática. Começa a estação da Feira, que em geral coincide com a estação das chuvas. Como se diz em português corrente, 'estes são os gravos da ladeza em que estes lugares da terra de Lisboa daquém mar Ociano hapartam da linha equinocial da ladeza conta o polo' que é o meu Volkswagen.

---------------    --------------

5 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Sempre com as palavras certas!
Adorei a crónica da Feira do Livro, esse trocadilho com o VW Polo está muito bom.

Partiu eternizada com a bela idade de 96 anos.

Aqui onde moro há uma senhora da mesma idade que ainda conduz, e até hoje teve sempre o mesmo carro que comprou novo quando tirou a carta há 33 anos (com 63 anos) nos Estados Unidos.

Um rico dia.

Isabel disse...

São mulheres inspiradoras!

Beijinhos e continuação de boa semana:))

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

É o que a a escrita de Agustina tem de especial: a rasteira, o golpe de rins, a surpresa, a ironia, a inteligència, o não se levar a sério. E a elegância na escrita.

Como mulher era desconcertante e divertida, como escritora era única, talvez mesmo genial.

Viveu uma vida feliz.

Um dia feliz, Francisco.

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Sim, inspiradoras, com vontade de conhecermos melhor as suas palavras, com vontade de vermos as coisas sob aquela especial perspectiva.

Beijinhos e que o seu canarinho cante muito para si. O canto dos pássaros transmite felicidade.

Isabel disse...

Tem cantado. É tão bonitinho:))

Beijinhos:))