segunda-feira, abril 01, 2019

Memórias à beira mar





Uma pequena enseada. Quase não havia, nem há, areia. Seixos, conchas, restinhos da faina pesqueira, pequenhos brilhos. Do lado esquerdo de quem olha o mar umas rochas marcam a divisão. Não são muito altas. Sobem-se bem. São rochas cobertas de pedrinhas. Nas zonas mais escondidas, estavam, e estão ainda, cobertas de limos verdes. Há reentrâncias onde se junta a água. Lá dentro há ínfimos seres que se agitam. Eu subia e andava por lá a explorar aqueles mistérios com denso perfume a maresia. Se passássemos para o lado de lá íamos ter a um pequeno recanto, uma praia minúscula invísivel de qualquer outro lado, excepto de frente, uma zona inacessível e onde antes nunca havia ninguém.


Um pouco mais à frente havia, e se calhar há ainda, uma escada na pedra que vai dar à estrada.

Das rochas que fazem a separação eu via o irmão mais novo do meu pai a nadar. Nadava para muito longe, nadava muito bem. Eu ficava a olhá-lo, admirada, um pouco preocupada. Disfarçadamente, chamava a atenção ao meu pai. Queria que ele visse como o irmão se afastava. O meu pai olhava-o, sem preocupação, apenas alguma admiração, e dizia: 'Nada bem'. Depois regressava à praia, o cabelo preto e liso escorrendo. Não me lembro de o ver limpar-se. Se calhar ia assim mesmo. Talvez fosse de bicicleta para casa. Afinal os meus avós não moravam muito longe.

Lembro-me tão bem.


O cheiro da maresia é igual, as pocinhas de água são as mesmas, o mar limpo e tranquilo é o mesmo, os reflexos e a luz feliz sobre as águas são também os mesmos. 

Mas se calhar só eu me lembro desses tempos de total liberdade e inocência. O meu tio tem agora as costas um pouco curvadas, a pele do rosto já enrugada. O cabelo é ainda liso mas já é grisalho. Duvido que se lembre. O meu pai já pouco comunica e, embora saibamos que guarda memórias muito antigas, tem cada vez mais dificuldade em falar. A minha mãe não se lembra mas é natural pois, ali, ela pouco ia connosco. Ali íamos apanhar amêijoas, isco para a pesca, coisa que era só do meu pai e que eu ia porque lhe pedia para me levar.


Agora a menina ali já não sou eu, eu sou a que tem memórias de tempos que parecem tão próximos. Agora a minha filha terá a mesma idade que a minha mãe teria naquela altura, talvez até um pouco mais. Agora há outros meninos que andam nas rochas, que espreitam os mistérios das rochas e do fundo do mar.


A minha mãe olha-nos a todos, vê como de si partiram as gerações que à sua volta se juntam e, feliz da vida, conta-nos histórias, fala-nos de memórias da sua infância.

[Este domingo disse-me que tinha dormido profunda e descansadamente, que adormeceu no sofá, que à uma da manhã acordou e nem percebeu bem o que lhe tinha acontecido, que lá foi para a cama e que foi até de manhã, que o ar do mar a deixou assim. Tão bom.]

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