domingo, março 10, 2019

Escuta-me





No outro dia, para guardar a lenha mais recente, resultante dos infindáveis desrames, o meu marido andou a limpar a mais antiga e, para despachá-la mais rapidamente e para aquecer a sala, encheu a salamandra. Acontece que aquilo desatou num fogaréu dos diabos, fez quase imediatamente um calorão insuportável, num ápice aqueceu esta sala e todas as divisões da casa e, tanto o calor, uma prateleira vergou e derramou a pilha de livros que tinha em cima, aqueceu-me estupidamente o estojo da máquina fotográfica que estava a mais de um metro e, de repente, percebemos que, se não interrompessemos rapidamente aquilo, todas as coisas da sala e, se calhar, também nós próprios derretíamos.


Então, o meu marido abriu a porta da salamandra e a porta da sala e, com uma daquelas pinças de lareira, tirou, um a um, todos os troncos que estavam a arder e pô-los lá fora. Depois, foi buscar a mangueira e apagou-os. Assunto resolvido. A casa manteve-se quente até ao dia seguinte, até nos irmos embora.

Hoje voltou a acender a salamandra mas com uma quantidade normal de lenha. Estávamos aqui sossegados, no sofá, eu a escolher umas lãs e a estudar a progessão do bordado, ele a ver televisão, quando começámos a sentir o cheiro da madeira mais intenso do que o costume, depois os olhos a quererem arder. E, de repente, olhámos em volta e reparámos que a sala estava a encher-se de fumo. E, ao mesmo tempo, vimos o que estava a acontecer. O tubo que leva os fumos da salamandra e que atravessa o tecto até à chaminé tinha-se desencaixado e o fumo saía livremente para a sala. Num salto, em simultâneo, abrimos porta da sala e ele, de imediato, voltou a tirar os troncos e a pô-los na rua. 


Presumo que, com o calor excessivo da semana passada, o tubo deve ter dilatado demais e, ao arrefecer, rachou e, ao rachar, desencaixou e deu no que deu. 

O que acontece é que, durante o tempo em que durou até que dessemos por isso, não foi apenas a sala que se encheu de fumo: foi toda a casa. De repente, por todo o lado, uma nuvem densa, o ar irrespirável. Portanto, tivemos que estar com portas e janelas todas abertas, o frio da noite a entrar para a casa, tivemos que ir para o lado de fora abanar as portas para ajudar a sair o fumo. No meio disto, uma coisa boa: a noite límpida, estrelada, um céu planetário, luminoso, lindo.

Até fui buscar a máquina e disparei-a contra a noite. Quando olhei as fotografias, não estavam as estrelas, estavam, sim, os ramos nus das árvores. Mas, uma vez mais, a preguiça impede-me de me levantar para as importar para aqui.


Agora ainda cheira imenso a fumo e temo ficar com as roupas e os livros e tudo o mais a cheirar a fumo mas, pelo menos, já não se sente, não se me choram os olhos, já não há névoa dentro de casa.

De tarde, depois de termos vindo de casa dos meus pais, estivemos, de novo a cortar ramos de árvores. Um dia ainda as árvores ficam descaracterizadas, apenas um penacho no alto da cabeça. Antes gostava de ter um bosque denso. Agora, com a consciência do risco dos incêndios, transformámos a nossa floresta num conjunto de seres disciplinados, aperaltados. Custa-me um bocado. Mas contra factos não há argumentos e eu adapto-me à força das circunstâncias. Tem que ser, pois que seja. Heaven pode ser lindo e, ao mesmo tempo, um lugar seguro, onde não cheguem as chamas dos infernos.


Agora temos um mar de ramos cortados e não os vamos poder queimar enquanto não nos inscrevermos no site das queimas. Tentámos mas a aplicação ainda não está afinada, identificou o local como se estivessemos no portugal insular. Sugeri que ligássemos para os bombeiros mas o meu marido não lhe apeteceu. Espero que consigamos resolver isto a tempo. 

Enquanto escrevo, estou a ver a Proposta Indecente. Apesar de já o ter visto há séculos, estou, na mesma, a achar-lhe piada. Ainda por cima, é uma história de amor e eu gosto de histórias de amor.

Tenho tantos assuntos atrasados para falar. Por exemplo, gostava de vos falar de um tema que está na base de um filme sobre o qual vi a entrevista com a actriz principal. É um tema meio misterioso, coisa muito fruto dos tempos actuais, coisa pela qual já me fizeram passar. Mas a verdade é que muito hard work no campo, algumas contrariedades no dia a dia da cidade, tudo muito longe umas coisas das outras, muito trânsito, muita agitação -- tudo junto faz com que, aqui chegada, não tenha grande vontade de navegar em águas profundas. Por isso, sobrevoo de mansinho, saltito por entre folhagens, palavras breves, aflorações, não mais que isso. Os temas da actualidade vão passando, pouco rasto deixam e eu mal lhes toco, apenas espreito e é quando é. Hoje, à vinda, pensei: um dia deixo-me disto, um dia, em vez disto, escrevo só para mim, escondo a escrita, escrevo sobre desactualidades, sobre suposições, ficções, pensamentos à toa, sobre coisas cá minhas, só minhas.


E assim é que, sendo duas da manhã e nada tendo de concreto para vos falar, vou apenas partilhar um vídeo que me pareceu bonito e que aborda um tema que me interessa: o da tolerância inclusiva. Segregar alguém ou, pior ainda, parodiá-la, menosprezá-la ou, de qualquer outra forma, fazê-la sofrer não apenas me parece indesculpável como, na medida das minhas possibilidades, faço tudo para o evitar.
Apenas tenho dificuldade em ser assim com os estúpidos, os cagões, os burros armados em doutores. Com esses, se puder, sou tudo menos inclusiva. Provavelmente, quando atravessar a célebre parede de luz branca e me crescerem asinhas etéreas nas costas, a entrada no céu ser-me-á barrada como paga por todos os pecados que cometi, nomeadamente por cada um dos estúpidos relativamente a quem fiz de tudo para guardar distância. Mas não faz mal, mais vale ficar in hell, de shortinho e alcinha (por causa do calor), do que ficar sentada em cima de uma nuvem a receber medalhas por ser boazinha para gente que não vale uma casca de caracol furada.

Mas da gente boa que é posta de lado apenas por ser diferente, da gente que sofre por não se sentir integrada, dessa eu quero estar perto, quero escutá-la mesmo quando a sua voz não se faz ouvir. 

Listen to me



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As imagens mostram arte japonesa e Camões aparece-nos através da voz de Amália

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A todos desejo um belo dia de domingo

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5 comentários:

Unknown disse...

Tanto fumo que mais parecia um fumeiro. Tenham também vocês um bom Domingo

Isabel disse...

Penso exactamente como a UJM, em relação à diferença e em relação à estupidez de algumas pessoas.

Gostei das imagens escolhidas e a primeira deixou-me intrigada, porque me pareceu uma foto de uma instalação...será? Mas não consigo perceber bem como terá sido feita a instalação. É intrigante.

Adoro a Amália. Adoro fado.

Mas o que mais me agradou foi o filme. Lindo e emocionante. De certa maneira vem ao encontro daquilo que comentei anteriormente: a forma de reagir às contrariedades da vida. O jovem, que até, aparentemente, tem menos, materialmente falando, conseguiu reagir de forma mais positiva do que a menina, que (também aparentemente) tem mais, materialmente falando. Claro que isto é apenas um filme para nos pôr a pensar. Mas há algum egoísmo na atitude desesperada dela, que tal como ele diz, não pensa nos que gostam dela, só pensa na sua solidão e no seu sofrimento. E aqui é que somos diferentes: uns conseguem ultrapassar o sofrimento, fazer coisas úteis e seguir em frente, outros, desistem ou auto-destroem-se de diferentes formas.

Creio que de alguma forma também é uma coisa genética, como o ser positivo ou negativo.

Mas no limite, são escolhas.

Escrevi imenso, mas são temas que me tocam. Se calhar estou a dizer coisas sem sentido, sem nenhum fundamento, mas é o que me parece.

Gostei muito deste post:))

Beijinhos e bom domingo:))

Isabel disse...

PS: Lamento o que aconteceu com a salamandra, mas ainda bem que está tudo resolvido!

Victor Barão disse...

Minha amiga, incidentes como os que relata aludindo aos fumos em casa, com as suas causas e consequências, são duma ou doutra forma parte integrante desta nossa existência humana. Eu mesmo faço hoje uma partilha derivada dum incidente que se deu comigo, que sendo muito diverso ao por si aqui relatado, não deixa de fazer parte integrante da mesma existência e/ou condição humana _ já agora eu pensava que tinha escrito muito, mas ao ler todo o seu relato fico um pouquinho mais aliviado com relação à extensão do que eu mesmo escrevi. :-)

Quanto a dizer algo como: _ "um dia deixo-me disto, um dia, em vez disto, escrevo só para mim, escondo a escrita, escrevo sobre desactualidades, sobre suposições, ficções, pensamentos à toa, sobre coisas cá minhas, só minhas.". Face ao que digo que que sei como foi o seu percurso para aqui chegar, mas no meu caso comecei precisamente a escrever só para mim, o que fiz consecutivamente durante quase duas décadas consecutivas, até começar a comunicar com o exterior, também e não raro até acima de tudo pela via escrita. O que não invalidada e nem implica com que eu continue a escrever só para mim, até porque por exemplo nas ultimas semanas tenho escrito tanto, que maioritária parte do mesmo sequer caberia extensiva/qualitativamente neste meu espaço virtual e das partes passíveis de aqui publicar teria de possuir mais disponibilidade temporal e interior para rever, corrigir, complementar, no fundo editar e logo partilhar muito do que e como vou escrevendo. Com tudo isto para lhe dizer que se deixar de aqui escrever, para mim será uma perda, porque gosto de a ler!

As imagens a ilustrar intercaladamente o texto são simplesmente adoráveis, mas gostaria de ver algumas de sua fotográfica produção própria, das que refere ter sentido preguiça de partilhar.

O vídeo ainda não vi, porque tenho um plafond de Internet não muito propício a ver vídeos, mas ainda assim, por minha própria e positiva curiosidade, procurarei mais tarde dar uma espreitadela.

Em suma fica a minha gratidão pela sua presença aí desse outro lado, com respectivo reflexo escrito, fotográfico, pictórico, cinematográfico, musical, etc., aqui para este outro lado, com ainda e por si só acrescida gratidão pelos seus votos de bom Domingo, que neste último caso, no que a mim me couber, retribuo à minha humilde medida!

Bom Domingo, extensível a toda uma boa semana

VB

Anónimo disse...

Belíssimo (e comovente) filme!
Obrigado por partilhá-lo, UJM!
P.Rufino