sexta-feira, fevereiro 22, 2019

Pensamentos de uma mulher míope




O que se passa é que da actualidade política portuguesa nada tenho a dizer. A nível internacional também. Mas sei que é preguiça minha, indiferença. Não é que falte assunto, a mim é que falta a vontade de assuntar.

Poderia achar que não é só coisa minha, desculpar-me, esconder-me atrás da abstracção. Ou dizer que vivemos tempos de spleen. Mas talvez não seja correcto, spleen não. Talvez mesmo tédio, que não é a mesma coisa que spleen.

Mas talvez isso de não haver nada de relevante -- ou de, pelo menos eu, não ver nada que me me desperte entusiasmo -- seja verdade apenas numa visão macro. Quando se vê de longe, os contornos esbatem-se, as imperfeições perdem relevância ou tornam-se invisíveis. De perto, aparecem os poros, os capilares, os folículos. Conduzindo na cidade, vendo-se os sorridentes e saudáveis passeantes, as árvores a verdejarem, o ar da tarde a amornar, a luz do dia a avançar pela noite adentro, tudo parece feliz e perfeito. As pequenas dores de cada um não se vêem pelo lado de fora.


No outro dia, uma conhecida teve um problema de saúde, um acidente daqueles que tanto temo e que acontecem quando menos se espera. Mais nova que eu, sem problemas que fizessem suspeitar o que estava para vir. Contou-me em pormenor, talvez porque percebeu o meu interesse. Acordou e percebeu o que estava a acontecer. Percebia que não estava a falar bem, que as frases lhe saíam distorcidas, mas não conseguia endireitá-las. Já no hospital, percebia que as pessoas olhavam para ela com alguma perplexidade e apreensão e percebia que havia motivos para isso mas o mundo circulava em torno de si como uma realidade vaga. Metade do corpo estava morto. Via que lhe picavam a mão, o pé, mas não sentia nada. Não ficou em pânico pois parecia que tinha entrado num outro comprimento de onda. Assusto-me enquanto ouço. Penso: é a valsa lenta. De profundis. Ela diz-me: não podemos dizer que estamos bem -- num momento estamos, no momento seguinte deixamos de estar, toda a nossa vida muda. Ao fim de poucos dias parece que está recuperada. Quem a veja não se apercebe de nada. Mas ela sabe que é outra. Sente-se outra. Ouço-a e sinto quase o que ela sente. Poderia dizer que tenho pena mas não é pena, é empatia, é perceber bem o que ela sente, é perceber que podia ser eu.


Também por estes dias, uma conversa a dois com um jovem. Trabalho, contratempos, obstáculos. Ouço-o, digo-lhe o que espero dele, ele fala, enquadra alguns temas para que eu melhor perceba as suas dificuldades, ouço-o, combinamos como fazer para ultrapassar os constrangimentos. No fim, pergunto-lhe pela mãe. Ele conta-me. Conta-me como foi tão inesperado. Relembra a conversa que tínhamos tido na véspera, eu e ele, os planos dele para resolver a situação, eu a contar a experiência com o meu pai mas a não querer que ele pensasse que tinha que ser esse o percurso, que o pai dele se calhar ia recuperar. Afinal, aconteceu o pior. Ouço-o. Sorri ao de leve para disfarçar o desgosto. Quem não saiba, não desconfiará do que se passou nem do que se passa dentro dele. Mas eu sei. E sinto que hoje é ele, amanhã sou eu, somos nós. Nenhum de nós é invulnerável. Não percebo como é que há gente arrogante.


E outra coisa. Uma pessoa simpática, prestável, sempre sorridente, muito eficiente, sempre pronta a resolver tudo, sempre disponível, genuinamente simpática. E, de repente, descobre-se o impensável: mau carácter, má, pérfida, falsa. Deu um passo em falso e desmascarou-se. E eu e toda a gente ficámos de queixo caído: como é possível? Como nos enganámos todos durante todo o tempo? Como nos enganámos tanto? Como foi possível que uma coisa assim fosse tão invisível? 

Tudo sempre tão intangível, tão impossível de ver a olho nu. 

Por vezes penso que é bom ser como sou, míope, ter do mundo uma visão impressionista. Por vezes não, quase sempre.

Melhor seguir no carro, janela aberta, a música a sair da rádio, olhar en passant, sem prestar atenção aos pormenores, sonhando com coisa boa, o mundo sem defeito, tudo na maior perfeição.


Tirando isso, nada. A lua tem estado grande e branca e luminosa e eu queria fotografar e, afinal, esqueci-me. Daqui a nada começa a perder o viço e eu nisto. Podia ir agora à janela ver se ainda está debruçada no espelho das águas do rio. Mas tenho preguiça. Ando assim, querendo apenas que a serenidade não escorra da minha pele, que continue a proteger-me. 

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Estive a ver aqueles vídeos que mostram gente tranquila que vive com vagar, gente que mudou de vida, que respira paz, que se rodeia de arte, de beleza. Gosto de ver. Talvez pense que deve ser bom viver assim. Talvez pense mesmo.

[Não se esqueçam de activar as legendas no vídeo  -- isto, claro, se não compreenderem a língua]

厭倦了和名人打交道的日子,他搬到山中獨居


[Cansado de lidar com celebridades, ele mudou-se para as montanhas, sozinho]


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As imagens que acompanham o texto são composições digitais de Phonsay Phothisomphane e vêm ao som de I found you pelos Ag Silver

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa sexta-feira.
Saúde e alegria

3 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Quando diz que ninguém é invulnerável a UJM explica brilhantemente o Princípio da Realidade.

Um belo fim-de-semana.

Um Jeito Manso disse...

Pois é Francisco,

Causa-me espanto a tolice das pessoas que se acham as maiores, que lutam com unhas e dentes para defenderem a imagem de poderosos, que se acham mais importantes, num patamar acima do comum dos mortais.

Mas, enfim, também é da natureza humana ser-se parvo... não é?

Um bom domingo, Francisco!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Não é por acaso que os narcísicos necessitam imperiosamente de afirmar independência e invulnerabilidade, pois quando se cria uma autoimagem de grandeza procura-se fugir à depressão por contacto real com a natureza humana ou mesmo à descompensação psicótica tendo em conta que há uma estruturação identitária difusa, são pessoas nas quais foram projetadas fantasias de grandeza como auxiliar à sobreviência emocional de uma mãe e/ou de um pai, o que se traduz numa terrivel usurpação existencial.

Uma rica semana.