domingo, dezembro 30, 2018

Madrugar à conversa convosco






Não sei o que é isto hoje que a casa parece que não quer aquecer. Estou com um aquecedor a óleo aqui à minha beira e com a salamandra a queimar lenha como se não houvesse amanhã -- e a sala continua fria.

Ainda não há muito tempo tínhamos que comprar lenha. Mais recentemente comprávamos ao vizinho da ponta da estrada mas, antes de sabermos que ele tinha lenha a mais, íamos comprar a um lugar de que já uma vez aqui falei, um lugar muito estranho. Por vezes, algumas memórias minhas assomam como se quisessem que eu as revivesse mas algumas parecem-me improváveis, como se eu estivesse a ficcionar. Aquele homem silencioso e rude, aqueles cães enormes que ladravam e rosnavam ameaçadoramente sem que o homem tentasse acalmá-los, aqueles barracões cheios de lenha coberta por grandes oleados onde facilmente se poderiam esconder meliantes ou onde aquelas feras poderiam devorar presas indefesas sem que delas restasse algum vestígio é daquelas memórias que me parece saída de um filme de terror. Mas talvez aquele lugar, que existe na realidade, seja apenas um lugar muito pobre e o homem alguém a quem a vida não sorriu.


Mas isso era de quando as nossas árvores ainda eram pequenas. De repente, o lugar alterou-se. As árvores cresceram muito, a terra que, antes era castanha e seca, agora é fofa, escura, fértil e cobre-se de musgo, folhas secas, e dela brotam flores, arbustos, As pedras que antes tinham a superfície seca à vista agora também se cobrem de musgo, e nascem fetos, há heras a cobrir alguns rochedos. Toda a paisagem agora é outra. Estou a escrever e a pensar: do meu amor nasceu um bosque.


Temos, pois, lenha que não acaba. Levantei-me agora mesmo para ir pôr mais um tronco na salamandra. Cheira muito bem esta lenha. Quando chegámos, a casa estava gelada mas cheirava muito bem, a boa lenha queimada. Azinheira, cedro, pinheiro. Não sei se aroeira. Há madeiras que não queimam bem. Por exemplo, o meu marido não quer aproveitar a madeira da figueira, tenho ideia que diz que não arde. Mas deve arder, se calhar leva é mais tempo a pegar-lhe o fogo. Não sei.


Fico muito contente, orgulhosa mesmo, como se as árvores terem deitado tanto corpo fosse um pouco obra minha. Mas não quero parecer pretensiosa. A natureza não se deixará influenciar pelo amor de uma mulher. E, no entanto, as árvores sentem, comunicam entre si e são, acredito nisso, seres sábios, fortes e sensíveis, seres superiores. Quem sabe não se sentem mesmo felizes por se sentirem tão amadas e, como as pessoas que são felizes e criativas quando se sentem estimadas, também elas, as minhas queridas árvores, desataram a crescer e agora chamam os pássaros e dão abrigo a musgos, arbustos e flores? Quem sabe?


Faço perguntas cuja resposta desconheço. Sou bicho inferior, só sei fazer perguntas, não descubro resposta para quase nenhuma.

Estive a fazer o tapete enquanto via televisão mas está a dar um filme que não é adequado ao meu estado de espírito e as alternativas não são muito melhores. Por isso, voltei aqui para escrever e para plantar mais algumas fotografias que fiz durante a tarde. Fotografo tudo porque tudo me maravilha. Enquanto não levar um susto de algum javali, continuarei neste meu doce flanar.


Hoje de manhã fui cortar o cabelo à cabeleireira. Queria coisa mais profunda e estruturada do que as tesouradas que lhe dou em casa. Estou com uma grande vontade de fazer uma coisa nova, apresentei uma proposta, coisa arrojada, ousada mesmo, e tenho que estar preparada para a defender. No meu íntimo sei que joguei uma cartada arriscada, dir-se-ia de improvável sucesso. E, no entanto, sei que quero que aconteça e sei que, quando quero assim uma coisa, não descanso enquanto não a tenho nas minhas mãos. Perguntei ao meu marido: 'E se não consigo?'. Ele disse: 'Se não consegues sabes o que tens a fazer'. Sei.

Mas porque sinto que, de uma maneira ou de outra, alguma coisa vai mudar, decidi que tinha que mudar de corte de cabelo para melhor sentir que aí vem uma vida nova.


E, na cabeleireira, foi aquela diversão de sempre. Disse ao meu marido: 'Se lá pusessem uma câmara a gravar e difundissem via televisão, haveria de ser programa líder de audiências'. O que aquelas mulheres dizem, o que riem, a forma como dizem que dão a volta aos maridos, a forma truculenta como falam umas das outras ou como relatam as suas pequenas rebeldias do dia a dia, fascina-me. Tudo demasiado irreal, tudo extremamente divertido. Eu estava a ler as revistas que não perco por nada quando lá estou mas com um olho nas celebridades e outro naquelas fantásticas conversas. O mundo real é surreal. Tenho pena quando vejo que estou quase despachada.


No carro, à vinda para cá, adormeci completamente. Sabem-me mesmo bem estes sonos que me desligam do mundo. Só acordei quando já estavamos a caminho do supermercado da cidade mais perto aqui da aldeia. Há lá peças de carne que não encontro na 'minha' cidade e já estou a aprovisonar mantimentos para o almoço de Ano Novo. O meu marido, como é um apressado e gosta de planear tudo, até já sugeriu que eu cozinhasse já algumas coisas ou que, pelo menos, adiantasse já as cozeduras. Claro que não vou fazer isso, ia lá servir comida a saber a coisa já feita? Vou congelar e faço no dia, excepto uns petiscos que são de demorada confecção que, esses, farei de véspera.

E estou a sentir que preciso de férias. Aliás, estamos os dois. Mas nem eu nem ele podemos agora. O que me vale é que quando me apanho com um ou dois dias de descanso, aproveito muito bem, estico o tempo, sorvo cada instante com vagar, contemplo com minúcia a beleza de cada pequena coisa.


E agora vou dormir. Já viram bem isto? Estou para aqui a escrever de gosto, nem dou pelo tempo a passar. O lume espevitou, a sala finalmente parece mais quentinha. Estou com uma manta quentinha nas pernas e sinto-me confortável. Em contrapartida o Leonardo DiCaprio, coitado, continua ali naquela dolorosa labuta, a rastejar no meio do gelo e de sangue.  E, quem sabe, a esta hora, ali fora,  sob o belo céu estrelado, andam javalis a revolver a terra à procura de bolotas.

... e eu, se não me detenho, continuo nisto. Daqui a nada são três da manhã, não tarda começa a madrugar e eu ainda para aqui nesta conversa vadia convosco. Santa paciência para mim mesma.

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16 comentários:

Anónimo disse...

Olá bom dia🌞

Estou cheia de pressa, mas não quero deixar de lhe dizer que isso das árvores é verdade: se nós sentirmos que é verdade, então é mesmo verdade - as simple as that!
And you're not alone, you know.

E tenho pena que não seja um veado...

Dia Feliz.⚘

🌲L

Isabel disse...

Também acredito que de certa forma as plantas podem sentir essa dedicação. Há pessoas que dizem que faz bem falar com as plantas. Eu não o faço, porque me sinto ridícula a fazê-lo, mas quando ando mais de roda das plantas, cortando uma folhita aqui e ali, limpando o pó (às maiores), olhando simplesmente para elas...ficam mais bonitas e viçosas, que quando as deixo um pouco ao abandono(mesmo que as regue). Enfim, quase tontices, mas gosto de pensar assim.

Os javalis podem ser perigosos, se estiverem feridos ou quando têm crias; as fêmeas, podem ser muito perigosas se se sentirem em perigo, com as crias. Não será aí o caso, mas vale mais ser prudente.
Esperemos que não tenha nenhum encontro desagradável.

Gostei muito das fotos do In Heaven:))

Bom domingo:))

AV disse...

A flora do seu heaven está um encanto (a fauna também parece interessante, nos seus mistérios). Também acredito que as plantas sabem e sentem. Pelo menos, desde que li ‘O rapaz de bronze’, um dos livros da minha infância.
Um abraço e dias plenos in heaven,

Ana

António Ferreira disse...

"pretensiosa" e não "pretenciosa"

Bom Ano!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Que beleza a sua flora!
Quanto à fauna estou a ver que andam movimentações interessantes por aí, aqui há dias também fiquei a saber que aqui para os meus lados há veados.

Quase quase em 2019!

Um abraço.

Um Jeito Manso disse...

Olá Ms Tree Lover

É verdade. As árvores são seres especiais e sensíveis. Tenho um livro muito bonito, de um botânico, que fala sbre isso.

E ainda me lembro de uma tia do meu marido me dizer quando eu me mostrava admirada por uma coisinha de nada que parecia raquítica ter desatado a dar pêras: Sentiram que eram estimadas.

Uma boa véspera de Ano Novo.

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Eu tenho pena de, quando descobrimos aquele terreno pedregoso e de mato rasteiro com uma casa triste, não haver máquinas digitais senão mostrava como era isto antes de termos começado a afeiçoar-nos à terra e ela a nós. Uma diferença que não imagina. Alguma coisa foi. Talvez a nossa persistência, talvez o meu sonho de ali ter um pequeno bosque. Em casa tenho uma violeta que está viçosa, arrebitada. E ofereceram-me um pé de bambu que quero pereber no que se pode tornar para ver o que hei-de fazer.

As suas flores também reconhecem a estima que tem por elas. Por isso estão tão bonitas.

Beijinhos, Isabel!

Um Jeito Manso disse...

Olá Ana, Senhora de Vazconcellos,

Tudo aqui se agiganta. Tenho pena que o meu pai já não consiga cá vir para ver a diferença. Foi ele que plantou os primeiros pinheirinhos, dois mansos e um de Flandres. Duvidava que medrassem, não achava nada bem que tivessemos escolhido terreno tão mau, dizia que nunca aqui haveríamos de conseguir plantar batatas.

Se ele aqui viesse agora não o reconheceria.

Mesmo eu que acompanho esta prodigiosa mudança tenho alguma dificuldade em acreditar sem usar a palavra milagre.

Abraço, Ana

Um Jeito Manso disse...

António, obrigada!

Pois é, tem razão, já fui alterar. Ontem, quando escrevi, pareceu-me mal e era para ter ido ao Priberan confirmar mas depois, dado o adiantado da hora, passou-me.

Eu, que me passo quando vejo calinadas, devo dar com cada uma. Estou a escrever num computador pequeno cujas letras no teclado mal se vêem. Como o n está ao lado do m, há bocado fui reler o texto que tinha acabado de publicar e dei com um m antes de um d. Até me arrepiei. Tomara que haja sempre um Leitor caridoso para me ajudar.

Sinceramente agradeço a atenção e o cuidado.

Um bom 2019 também para si, António!

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

O meu terreno não tem nada de um jardim de Versailes, aparado, organizado, cosmopolita e bem comportado: o meu é quase selvagem. Mas acho que todos os animais que aqui vivem se sentem felizes (eu incluída).

E bora lá começar os preparativos para o réveillon.

Anónimo disse...

Dear tree lover too,

Desculpe meter-me na conversa, mas que importância tem uma letra trocada ou uma vírgula fora do lugar?
O que interessa mesmo é o que escreve e o que nos quer transmitir - e isso fá-lo sempre de forma irrepreensível.
O resto são "amendoins".

Bons sonhos!
🌲L

PS: Lembro-me muitas vezes daquele banquinho do seu pai...

Unknown disse...

Querida UJM, muito obrigada pela partilha do seu qoutidiano tão verdadeiro e sentido.
A Natureza os netos a família.
Um ano de 2019 muito bom.
Sua Amiga.



Isabel disse...

Tenho ideia de nos primeiros tempos em que comecei a vir aqui, há uns anos, esse espaço ainda ter pouca vegetação e a UJM mostrar aqui cada rebento que ia aparecendo.Lembro-me dessas árvores que se partiram quando houve aquela tempestade, e da sua tristeza com a que se partiu.

Portanto, já acompanhei alguma evolução no In Heaven! :)))
Beijinhos:))

Anónimo disse...

Olá ⚘

E podemos saber o título do livro?
Gostava de tentar encontrá-lo...

Abraço
🌲L

Um Jeito Manso disse...

Olá,

Não fui reler o post para ter a certeza mas, se era o que falava de árvores, era A Vida Secreta das Árvores de Peter Wohlleben, silvicultor, guarda florestal e etc.

Tem coisas interessantes.

Anónimo disse...

Muito obrigada.
Vou ver se a Bertrand tem.

Dia Feliz!
🌲L