Esta pequena mesa aqui ao meu lado está uma bagunça. DVDs: House of Cards que o meu filho nos ofereceu, o Scoop dado pela minha filha e o documentário sobre a Paula Rego feito pelo filho dela. O meu telemóvel. O comando da televisão. O meu molho de chaves. O livro que acabei e ler e que adorei, 'Quem me dera ser onda' e outro que comecei no outro dia, depois esqueci-me dele cá pelo que ficou interrompido, 'Alguns preferem urtigas', uma folha branca com desenhos e carimbos, obra dos meninos, um dedal de plástico.
Temos andado lá por fora e a arrumação cá dentro acaba por ficar descurada. Só quando saímos é que varro, limpo e arrumo para, quando regressarmos, não darmos com uma casa desarrumada.
Durante a tarde trabalhámos tão intensamente que o meu compagnon the route, que ainda por cima se levanta quase de madrugada, já dorme a sono solto. E eu própria, há pouco, dei por mim a acordar. Durante quanto tempo estive a dormir nem faço ideia.
Quando as nossas árvores eram mínimas, tínhamos que comprar lenha. Íamos a uns lugares por vezes estranhos. Estou a lembrar-me de um, no fim de uma aldeia aqui perto. Num sítio alto, havia uma espécie de barracão, e era um barracão muito grande e alto, cheio de lenha. Havia lenha também cá fora, coberta por oleados. E, em volta, uma espécie de jaulas onde uns cães ferozes pareciam querer atirar-se a nós. Quando lá chegávamos não víamos ninguém. Era um lugar um bocado assustador. Depois, vindo de trás das jaulas dos cães, aparecia um homem muito mal encarado. Não me tomem por preconceituosa mas a sensação que eu tinha era que esse homem encarnava a figura do mostrengo. Uma corcunda acentuada, todo ele torto, meio coxo, muito feio, de poucas falas. Por cima das roupas velhas, usava um avental grande e mal feito do mesmo oleado preto. As mãos eram rudes e nunca esboçava o mais leve sorriso. Havia uma balança antiga, uma espécie de plataforma. Ele ia buscar lenha num carrinho de mão, depois passava-a para essa balança. Não dizia nada. No princípio é que nos perguntava se era azinho ou sobro. Pedíamos tanto de uma como de outra. Depois, enchia-nos o porta-bagagens e dizia quanto era. Mais tarde passámos a comprar ao vizinho lá da ponta da rua. Esse vinha na sua camioneta e descarregava um monte de lenha. O meu marido perguntava quanto era e pagava. Era a olho, não havia pesagens. Mas era mais lenha e mais barata do que a daquele lugar sinistro.
Agora acontece-nos o contrário: deveríamos era vender lenha.
Tanto desramamos as árvores que não sabemos o que fazer a tanta lenha. E como o meu marido, ao fim de horas de desbastes, acaba por já nem ter braços para cortar mais lenha, pomos para a fogueira ramos inteiros, alguns cujos troncos dariam bons bocados para a salamandra e para a lareira.
Tirando isso.
Este inverno está outra vez sem vergonha nenhuma, todo ensolarado. Dizem que vem aí alguma mudança de tempo mas, para já, o que vi foi sol, temperatura amena e flores arrebitadas como se já fosse primavera.
Agora estou a ver um filme português, The Kiss. Aqui as alternativas não são muitas. Acabo por ver coisas que, de outra forma, não veria.
Aliás, passo o tempo todo a ver coisas que, por pouco, não via.
A vida pode ser simples.
E eu encanto-me com coisas simples. Flores perfeitas, cores primárias, os cheiros da natureza, o canto dos pássaros, um gato que se esgueira, um fumo branco ao longe, a tranquilidade de uma consciência limpa.
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Abri o YouTube e, como sempre, é com curiosidade que vou à espreita do que ele tem para me sugerir e, como sempre, há sentido de oportunidade nas escolhas do meu amigo : um bailado com Polunin e logo com uma coreografia fantástica.
Não sei se é coisa que deva dedicar a todos os meus Leitores ou a um em particular. Enfim, cada um de vós que o tome como seu.
Narcisse
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