quarta-feira, outubro 03, 2018

Praxar e ser praxado


Quando as crianças voltam à escola, as ruas de Lisboa (e, provavelmente, de todas as cidades onde há universidades) enchem-se de adolescentes a fazerem figuras tristes. São rebanhos e rebanhos de carneiros um pouco por todo o lado. Rebanhos de caloiros. Podem ser visto sentados no chão, penico na cabeça, cumprindo ordens e dizendo baboseiras, desfilando pelas ruas, a toque de caixa, cantando asneiras, palavrões, auto-humilhando-se. Se calha cruzar-me com eles sinto-me envergonhada.

Quando estudei não havia praxes. Ao libertarem-se dos tempos e das práticas fascizantes, os estudantes aboliram as praxes. 

Se as houvesse, se me conheço bem e se bem recordo a minha irreverência sem freio, jamais eu me sujeitaria a macacadas destas. Vingassem-se como quisessem que porem-me a fazer figuras infelizes ou humilharem-me ou violentarem-me é que não fariam. Sempre tive bem vivo dentro de mim o orgulho na minha dignidade. Não vergava na altura tal como hoje não vergo. Mas não era só eu. Conheci o meu marido quando andava na faculdade, em cursos diferentes, e jamais eu imaginaria que ele se prestasse quer a armar-se em verdugo quem em cordeiro sacrificial. Mas eram outros os tempos.

Como renasceram estas práticas é coisa que não entendo. Que semente é esta que sobreviveu?

Porque se sujeitam estes jovens a isso, porque aceitam ser tratados com indignidade, porque gostam de se portar como criaturas acéfalas é coisa que jamais poderei perceber. Que adultos serão eles? E que pessoas são aquelas, os mais velhos, que humilham, violentam e desrespeitam os mais novos quando deveriam era acolher, orientar?

Todas estas praxes que se vêem pelas ruas são estúpidas, violentas, indefensáveis. Mas depois ainda há as que são piores: as que são feitas na calada da noite ou em lugares escusos. De vez em quando as coisas correm mal. Lembro-me do que aconteceu no Meco. Ou há denúncias. Agressões, humilhações sérias.

Agora ouve-se falar em seitas, em rituais iniciáticos. Há jovens universitários que se prestam a isto e eu fico preocupada. Os jovens são o futuro dos povos e nem quero imaginar um mundo em que as elites são constituídas ou por gente malvada ou por gente submissa e acéfala.. 

E custa a perceber como é que coisas destas perduram, como é que são abafadas. Quem pratica actos de violência ou que humilha outras pessoas deveria ver-se a braços com a Justiça. E as Universidades ou Institutos deveriam proibir liminarmente que alunos seus pratiquem actos desta índole, quer como praxados quer como praxantes (não sei se se diz praxante ou praxador). Podem dizer que são actos que decorrem no exterior da Escola e que, no exterior, a Escola já não tem autoridade. Não interessa.  Se não pode ser aplicada a Justiça, pode invocar-se a Moral, a Ética. São alunos que, nas imediações da Escola, podem ser vistos quer a fazer figuras tristíssimas, feitos carneiros, paus mandados, palermas, descerebrados, quer como pequenos ditadores, torturadores ou simplesmente prepotentes e, com base nisso, a Escola deveria agir.

E se nos casos mais ligeiros pode não haver lugar a denúncia criminal, a Escola pode e deve ter sempre uma acção pedagógica, mostrando que ser assim é a antítese do que se espera de um adulto livre, culto, bem formado, inteiro, justo, digno.

Que raio de descaminho está a levar isto com cada vez mais violência entre namorados, com um número assustador de jovens a abusarem do álcool ou das drogas, com esta adesão enorme a praxes, com um número crescente de jovens que não pega num livro, que acha que vale tudo e que a impunidade parece ser generalizada? 

Ou, caneco, serei eu que estou a ficar velha?!

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Para levantar o meu ânimo, permitam que mude de registo. Permitam que me deixe transportar nos maravilhoso braços de Sergei Polunin. Desce, meu anjo.


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3 comentários:

Janita disse...

Olá, UJM.

Também me interrogo qual será a razão que leva os jovens caloiros a deixarem-se praxar de forma ignominiosa e humilhante. Penso e repenso, e das duas uma, ou até ambas, ou é a vontade de pertencer e ser aceite no seio dessa ‘seita’, ou a falta de coragem de os enfrentar e dizer não. De uma forma ou de outra, penso se esta geração em que depositamos o futuro do país, não será uma geração de fracos e cobardes. É ver o que aconteceu, recentemente, na Universidade da Beira Interior, na Covilhã.
Felizmente, há excepções. Tem de haver! Caso contrário, entre verdugos e carneiros, sacrificados, não escapava ninguém…

Escrevo ao som desta bela melodia e agora vou rever o vídeo. Vale a pena deixarmo-nos embalar pelo bailado magnífico deste jovem bailarino. Bons ventos sopram de Leste!

Um abraço com votos de um excelente dia! :)

Anónimo disse...

Fala-se tanto que é preciso coragem para dizer "não", mas na verdade basta não comparecer... Conhecem-se colegas e amigos à mesma na faculdade, sem ter de passar uns dias a lamber a relva no parque eduardo vii a mando de uns broncos em saias e calças pretas (vi isto ontem à hora de almoço). Basta não comparecer... E, no entanto, as pessoas vão e sujeitam-se a isso...
JV

Um Jeito Manso disse...

Olá Janita,

Se visse as ruas de Lisboa desde há umas duas semanas... Só estupidez, ignorância, infantilidade, macacadas. Jovens a humilharem-se, a fazerem-nos descer no futuro.

Mas tem razão: há excepções. Forçosamente!

Abraço, Janita!